Quando
eu disse numa roda de amigos, alguns deles antigos alunos do Liceu Filipa, que
vinha apresentar um livro do Prof. Adérito Tavares, muitos deles perguntaram:
quem, o nosso professor de História que punha música dos Pink Floyd nas aulas?
E,
passe o pleonasmo, todos foram unânimes em afirmar que Adérito Tavares foi o
melhor professor que tiveram na vida, coisa de que não ouso discordar, dizendo
também que ele foi – e é – o melhor professor que alguma vez tive na minha vida,
em todos os graus de ensino, universitário incluído.
Mas
Adérito Tavares não foi apenas o melhor professor que alguém pode ter na vida,
foi e é um professor de vida, um mestre da vida e do viver de uma forma sadia
e, por isso, feliz.
Este
livro tem por subtítulo «Crónicas do tempo que foge» e, no tempo que nos vai
fugindo a todos, a uns mais que a outros, o que Adérito Tavares tem de mais
inscrito e de mais admirável é o facto de ser um homem que se cumpriu, que se cumpriu como homem e como cidadão,
como professor e mestre, como pai e avô de uma Leonor, cujo nome me comunicou
com babado orgulho, quando eu lhe disse ser pai de uma Leonor, que fiz questão
que frequentasse o Liceu Filipa de Lencastre, na vã esperança de que ela tivesse
um professor como Adérito Tavares, que metesse música rock nas aulas, que a
levasse em visitas de estudo que eram um festim de intelecto e alegria, que
mostrasse slides com castelos e monumentos tendo o cuidado de advertir «o que
vêem em primeiro plano na imagem é o filho do vosso professor de História».
Com
variações e actualizações, as graças repetiam-se de ano para ano, tornaram-se
lenda, imagem de marca, passaram de geração em geração e assim o tempo nos foi
fugindo a todos, a uns mais que a outros, pela mão de um homem que se cumpriu a
si mesmo em convívio com os seus semelhantes, com um genuíno e vivíssimo
interesse por eles, pelas aventuras e misérias quotidianas das pessoas de carne
e osso, que são, ao cabo e ao resto, a matéria-prima de que é feita a História
e, creio eu, a razão de ser da sua paixão pela História.
Adérito
Tavares tem o dom de transformar a História numa infindável estória, e foi esse
engenho, agora transmitido ao auditório mais vasto dos seus novos leitores, que
lhe permitiu cativar muitas gerações de alunos em aulas ouvidas em fascinado
silêncio, tendo ainda outro dom, singular e raríssimo, que foi o de manter com
os seus alunos uma relação de enorme afecto e de extrema proximidade, que se
prolonga por décadas, como aqui vemos, mas, ao mesmo tempo, de enorme respeito
mútuo, de civilização posta em prática.
Há
uma outra coisa que gostaria de dizer, e perdoem-me o tom crepuscular de quem
vai sentindo o tempo a fugir-lhe, e essa coisa é a seguinte; apesar de tudo o
que acabo de afirmar, e de tão amplamente se ter cumprido na vida, Adérito
Tavares é um homem de desarmante simplicidade, bastando ver a forma telegráfica
com que se apresenta na badana deste livro, livro onde reencontramos muitas das
estórias que o ouvimos contar e que, para mim, foi tanto um exercício de
leitura, de gratíssima leitura, como de audição de um passado que não quer
passar – e talvez o professor Adérito, tão dado à música e às artes de Santa
Cecília, compreenda que lê-lo neste livro, escutar a sua voz Adérita e
pretérita, foi ouvi-lo nas suas aulas, ouvir alguém que foi e será sempre um
menino maravilhado com os reclames luminosos do Rossio à noite, alguém que
nunca perdeu o encantamento com o espectáculo do mundo e com o muito que a vida
merecidamente lhe deu.
Adérito
Tavares é um homem feliz, suave e contagiosamente feliz, que se cumpriu e
cumpre a si mesmo, mesmo que não faça alarde dessa condição feliz nem tenha a
jactância de nos exibir a sua evidente realização pessoal, profissional,
familiar e humana.
Adérito
Tavares é também um exemplo, que sempre calorosamente me impressionou, das
virtudes da meritocracia, pois é alguém que, pela sua curiosidade infantil, que
nunca perdeu, mas também pelo esforço e pela inteligência, pelo trabalho sério
e honesto, teve uma trajectória de vida que hoje nos parecerá fácil, à
distância de uma autoestrada rápida entre Lisboa e o interior do país, mas que
no seu tempo era imensa, tremenda, e nem contável sequer em quilómetros. Entre
a capital e a sua terra, Aldeia do Bispo, no Sabugal, existia um enorme abismo,
social e mental, que Adérito Tavares, como sempre, transpôs suavemente, passo a
passo, sem acotovelar nem atropelar ninguém e, sobretudo, sem perder a
fidelidade às raízes e a felicidade das origens, a que sempre regressa.
O
professor Adérito, o meu professor Adérito, devolve-nos a esperança de um país
democrático e meritocrático, mais justo e solidário, com um ensino público de
exigência e excelência, com professores que sabem que ter uma mão cheia de
alunos à sua frente nas aulas não é dever, é privilégio, é ter uma oportunidade
única, irrepetível, de lhes ensinar, mais do que a matéria de um programa, um
exemplo de vida, um exemplo de que é possível ser rigoroso e afável, de que os
melhores docentes são respeitados e amados em doses iguais, com vantagens para
ambas.
Há
uma frase de um grande poeta da Renascença, Guicciardini, que diz mais ou menos
isto: «vamos todos morrer; e, no entanto, portamo-nos no dia-a-dia como se
fôssemos viver para sempre».
Este livro bem assinala no subtítulo o
latino tempus fugit, o tempo que
foge, e essa consciência da transitoriedade do tempo, e da nossa finitude no
efémero tempo que ao viver se foge, essa consciência, dizia eu, permite-nos ver
de forma mais lúcida e clarividente aquilo que de bom e de mau existe no
pretérito de cada qual, e a que ousadamente chamamos «biografia».
Na minha biografia sentimental, e na
de todos os que tiveram o privilégio de ser seus alunos, a marca do Prof.
Adérito Tavares é mais funda e mais perene do que aquilo que ele, na sua
consabida modéstia, alguma vez poderia julgar. E, por isso, é isso que hoje lhe
venho dizer, aqui e em público, pedindo desculpa a todos pelo pedaço de tarde
que vos fiz perder.
Muito obrigado.
António
Araújo
(Feira
do Livro de Lisboa, 29 de Agosto de 2021)
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