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Nocturno da Graça
Há um rumor de bosque no pequeno jardim
Um rumor de bosque no canto dos cedros
Sob o íman azul da lua cheia
O rio cheio de escamas brilha.
Negra cheia de luzes brilha a cidade alheia.
Brilha a cidade dos anúncios luminosos
Com espiritismo bares cinemas
Com torvas janelas e seus torvos gozos
Brilha a cidade alheia.
Com seus bairros de becos e de escadas
De candeeiros tristes e nostálgicas
Mulheres lavando a loiça em frente das janelas
Ruas densas de gritos abafados
Castanholas de passos pelas esquinas
Viragens chiadas dos carros
Vulto atrás das cortinas
Cíclopes alucinados.
De igreja em igreja batem a hora os sinos
E uma paz de convento ali perdura
Como se a antiga cidade se erguesse das ruínas
Com a sua noite trémula de velas
Cheia de aventurança e de sossego.
Mas a cidade alheia brilha
Numa noite insone
De luzes florescentes
Numa noite cega surda presa
Onde soluça uma queixa cortada.
Sozinha estou contra a cidade alheia.
Comigo
Sobre o cais sobre o bordel e sobre a rua
Límpido e aceso
O silêncio dos astros continua.
Sophia de Mello Breyner
Este Nocturno é a fala do luarão que há tantos meses tento fotografar.
Mas como? Não tinha como. Como se fotografa a cidade alheia que brilha? As luzes em traço abstracto de obturador aberto já não cintilam, arrastam-se. A lente é insensível ao alheamento. E a cidade? Como se fotografa uma cidade que se nutre de segredos inconfessáveis e que deve a sua beleza a indizíveis toques de mão, campainhas e sinos?
Custa reconhecermo-nos na nossa impossibilidade de fixar o sublime, mesmo quando o temos a passar, como uma brisa, por entre os dedos e os cabelos. É terrível o confronto com a simples humanidade, incapaz de fotografar a cidade alheia que cintila. E, no entanto, somos nós próprios a cidade cintilante. Há horas atrás, tivemo-la a nossos pés: e ao tempo alheio, e às colinas de luz difusa e doce. Aceitar o infotografável e ousar sê-lo, talvez isso baste. O luarão de Sapadores continuará sempre, serenamente.
D'Arc
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