quarta-feira, 1 de maio de 2013

A estátua decapitada do ditador.






 

 
 
 

O Diário de Notícias de 18-II-1975, debaixo do cabeçalho “DECAPITADA A ESTÁTUA/ DE OLIVEIRA SALAZAR/ EM SANTA COMBA DÃO”, publicava uma foto do monumento vitimado pela decapitação, relatando em seguida o acto ocorrido na véspera: “Desconhecidos decapitaram a estátua de Salazar erigida no largo fronteiro do Palácio da Justiça de Santa Comba Dão, durante a madrugada de ontem, levando consigo a cabeça de bronze do sinistro ditador que mergulhou Portugal no obscurantismo que ainda hoje subsiste em muitas regiões.

Testemunhas tinham visto três indivíduos, que se deslocaram de automóvel, perto da estátua, cerca das 4h, mas o acto não foi, aparentemente. presenciado por ninguém. O corte, que se julga, foi efectuado com uma serra eléctrica, dada a sua perfeição. A «decapitação» foi feita imediatamente acima do colarinho da camisa.

A estátua do ditador foi colocada no local em 1965, aquando da inauguração do Palácio da Justiça, por iniciativa do então ministro Antunes Varela, e não é a primeira vez, depois do 25 de Arbil, que é alvo de acções diversas. Para além de epítetos pintados no pedestal, já foi coberta de tinta vermelha, numa ocasião, e de tinta amarela, noutra, além de ter também aparecido uma vez envolvida num pano negro” (p. 3, a duas colunas).










A nossa imprensa ocupar-se-ia abundantemente do caso nos dias imediatos seguintes, assim como nos anos que se seguiriam, sobretudo em Fevereiro de 1978, quando o restante bronze da estátua decapitada foi estilhaçado por uma explosão, em órgãos como A Luta, Primeiro de Janeiro (5-III-1978), Diário de Notícias (11-II-78), 87-II-78), Expresso (11-II-78), Opção (16-II-78), etc. Desse modo se punha definitivamente fim, quatro anos após o 25 de Abril, ao derradeiro vestígio monumental do nosso Ditador, uma vez que as poucas outras estátuas suas que existiam, nomeadamente no pátio interior do Palácio Foz (por algum tempo local do Ministério da Comunicação Social) tinham sido recolhidas para armazéns que os guardaram sem ninguém mais se lembrar delas. Ou de repor diante do palácio da Justiça o monumento pulverizado por anónimos autores que têm tido a modéstia democrática ou o talento discreto de não se ufanar do acto que varreu do país a única presença estatuária do nosso Ditador, mesmo na sua região natal.

Quanto a Leopoldo de Almeida (1899-1975), falecido dois meses antes, no mesmo ano em que a sua estatificação de Salazar era decapitada, foi um escultor que estudou inicialmente em Paris e Roma (1926 a 1929), onde se imbuiu de neoclassicismo, evoluindo depois para uma estilo de frieza académica de que expurgaria todas os seus alardes modernizantes anteriores, e que fora exemplo o Fauno exposto em 1929 no SNBA. Recorde-se que este artista ficaria muito ligado à estatuária heroicizante do Estado Nono, como no Padrão dos Descobrimentos, feito de colaboração com Cottinelli Telmo, o monumento a António José de Almeida (1937) à frente duma República toda máscula, em Lisboa (com a colaboração do arq.º Pardal Monteiro), ou ainda a estátua equestre de D. João I na Praça da Figueira, em Lisboa (1972), além dum monumento a Nuno Álvares Pereira, na Batalha e de três estátuas de escritores na Avenida da Liberdade, na capital, Castilho (1950), Herculano (1950), Oliveira Martins (1952) e ainda a de Eça na Póvoa do Varzim (1950), sem esquecer diversas outras obras de cariz religioso em diversas igrejas do país. Mais do que Francisco Franco (1885-1955), Leopoldo de Almeida representou a estatuária comemorativa oficial do Estado Novo.
 
 
 


 
 
 

Foi nomeado mestre de Escultura da ESBAL (1957) e subdirector dessa escola, para a qual entrara, por concurso, em 1934, como professor de Desenho de Figura do Antigo e do Modelo Vivo. Uma derradeira nótula sobre a estátua de Salazar decapitada e pulverizada em Santa Comba Dão: ela não deixa de ter alguma sugestão colhida num dos monumentos mais excelsos da estatuária mundial, o monumento a Lincoln esculpido pelo americano Daniel Chester French (1859-1931). A verdade, porém, é que a versão do nosso Ditador sentado peca pela pobreza simbólica, pela postura rígida e quase catatónica, enquanto que a de French, inaugurada em 1922 no Mall de Washington, é animada por um sopro democrático grandioso e empolgante que suscitaria várias utilizações deste impressionante ícone em grandes filmes norte-americanos.[1]

A terminar, lembremos que outra estátua de Salazar togado, de borla e capelo, a cabeça pensativa e ligeiramente inclinada para a frente, feita pelo artista funchalense Francisco Franco 1885-1955), destinada a figurar no pavilhão português na Exposição Universal de Paris em 1937, de que se fizeram diversas cópias, teve uma réplica que, erecta no átrio do Liceu Salazar de Lourenço Marques (hoje Maputo), seria destruída pelos rebeldes moçambicanos nos derradeiros anos da nossa colonização naquele país do leste africano.[2]

 

João Medina










 [1] Veja-se o nosso livro A minha América, Guimarães, Opera Omnia, 2012, pp. 207-309 (os filmes são de Frank Capra e John Ford).  

 


                 [2] Sobre esta estátua de Salazar feita por Francisco Franco e a sua destruição em Moçambique, veja-se o que dizemos no nosso livro Salazar, Hitler e Franco. Estudos sobre Salazar e a Ditadura, Lisboa, Livros Horizonte, 2000, pp.192-198. Fala-se aí também das estátuas de Salazar feitas por Leopoldo de Almeida e do destino que depois tiveram (op. cit., pp. 198 e 209-10).

7 comentários:

  1. A estátua de Salazar togado, de borla e capelo, sei eu onde está. Está em Lisboa, junto ao rio, num armazém.

    ResponderEliminar
  2. Bem assinalada a imitação canhestra da bela estátua de Lincoln. Canhestra em todos os sentidos: no material, no artístico e no simbólico.

    ResponderEliminar
  3. A estátua em bronze de Salazar togado que estava em Lourenço Marques em frente do Liceu Salazar, igual à que foi retirada em 1974 do Palácio Foz em Lisboa, não foi "destruída pelos rebeldes moçambicanos nos derradeiros anos da nossa colonização". Também não foi destruída depois do 25 de Abril, nem mesmo depois da independência. Está hoje precariamente arrumada num recanto exterior da Biblioteca Nacional do Maputo, ostensivamente virada para a parede. Veja-se: https://delagoabayworld.wordpress.com/category/historia/a-estatua-de-salazar-em-maputo/
    ou ainda:
    http://www.tvi24.iol.pt/internacional/estatua/salazar-virado-para-a-parede-de-castigo-em-maputo

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Segundo Aurélio Valente Langa (Memórias de um Combatente da Causa), a estátua foi destruída por democratas brancos nos primeiros nos da década de 60.

      Eliminar
    2. Foi destruída uma primeira versão em pedra, inaugurada em 1952 e decapitada com explosivos, em 1962 ou 1963. Foi depois substituída por segunda versão em bronze (mais difícil destruir? mais barato mandar vir da Metrópole?), colocada no mesmo lugar em frente do Liceu em 1964, e que é a que está na Biblioteca Nacional do Maputo. O Rui Nogar refere-se ao episódio em Vozes moçambicanas: Literatura e Nacionalidade (org. Patrick Chabal, Lisboa: Vega, 1994, p. 160–182).

      (Para eventuais interessados, remeto para a minha tese de mestrado -- onde erradamente digo que a segunda estátua de Salazar também foi destruída -- e um texto de 2012 -- "Monumentos coloniais em tempos pós-coloniais. A estatuária de Lourenço Marques" -- que podem ser vistos em https://independent.academia.edu/GerbertVerheij.)

      Eliminar
  4. Quem tudo faz para apagar a história, mais não faz que contribuir para que ela se repita.

    ResponderEliminar