Elizabeth Cady Stanton (1815-1902)
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Quando
Elizabeth Cady Stanton (1815-1902) resignou ao cargo de presidente da National American Woman Suffrage, em 18
de Janeiro de 1892, proferiu o discurso «The Solitude of Self», que considerava ser
«a melhor coisa que jamais escrevi». O discurso foi também proferido na United States House Committee on the
Judiciary e no United States Senate
Committee on Woman Suffrage. A United
States House Committee on the Judiciary determinou a realização de 10.000
cópias do discurso, que foram distribuídas em todo o país.
Nesta tradução, ainda provisória e sujeita a
aperfeiçoamentos e correcções (para o que agradecemos, desde já, as sugestões
dos leitores), foi utilizado o texto divulgado no The Woman’s Journal, de 23 de Janeiro de 1892. Publicada no Dia
Internacional da Mulher, esta é, creio, a primeira tradução portuguesa do
célebre discurso de Elizabeth Cady Stanton.
António Araújo
A solidão do eu
O tema que quero apresentar-vos nesta ocasião é o da individualidade de cada alma humana: a nossa concepção protestante da liberdade individual de consciência e juízo; a nossa concepção republicana de cidadania individual.
Ao
discutirmos os direitos da mulher, devemos ter em conta, em primeiro lugar,
aquilo que lhe pertence como indivíduo, no seu próprio mundo e enquanto árbitro
do seu destino, uma Robinson Crusoe imaginária, vivendo com uma versão feminina
de Sexta-Feira numa ilha isolada. Os direitos que possui, nesta dimensão,
correspondem ao uso das suas aptidões para alcançar a segurança e a felicidade.
Em
segundo lugar, se a virmos como cidadã, como membro de uma grande nação, ela
deve ter direitos idênticos a todos os outros, segundo os princípios
fundamentais do nosso governo.
Em terceiro lugar, encarada como
mulher, elemento promotor da civilização a par com os demais, os seus direitos
e deveres são também iguais: direito à felicidade individual e ao desenvolvimento.
Em quarto lugar, só algumas relações incidentais
da vida – como mulher, esposa, irmã ou filha – implicam deveres especiais e exigem
requisitos específicos. No debate corrente sobre a posição da mulher, homens
como Herbert Spencer, Frederic Harrison e Grant Allen são unânimes em
subordinar os direitos e deveres como indivíduo, como cidadã e como mulher às
exigências particulares daquelas situações, muitas das quais podem nem sequer
abranger uma vasta parcela das mulheres. Ao discutir o que pertence à esfera
dos homens, não concebemos os seus direitos enquanto indivíduo, enquanto
cidadão, enquanto homem, mas antes os seus deveres como pai, marido, irmão ou
filho, situações em que até pode nunca vir a encontrar-se. Além disso, um homem
poderá estar melhor preparado para cumprir esses deveres particulares, ou exercer
o trabalho que escolher como ganha-pão, se desenvolver na plenitude as suas
faculdades como indivíduo.
O mesmo acontece às mulheres. A
educação que for mais adequada para desempenhar os seus deveres ao serviço da
humanidade será também a mais útil para o exercício de qualquer outra tarefa
que venha a exercer.
O
isolamento de cada alma humana, e a necessidade de depender de si próprio,
devem conceder a cada indivíduo o direito de escolher o ambiente em que se
move.
A razão mais forte para atribuir a cada
mulher todas as oportunidades de acesso a uma melhor educação, ao pleno desenvolvimento
das suas capacidades físicas e mentais, à total liberdade de pensamento e de
acção, à completa emancipação de todas as formas de servidão, de dependência,
de superstição, à libertação de todas as influências paralisantes do medo – é a
solidão da responsabilidade pessoal pela condução da sua própria vida. Esse é o
motivo mais forte para exigir que uma mulher tenha voz activa no governo sob o
qual vive, na religião que é suposto professar, na vida social em que é uma
personagem principal, nos negócios e nas profissões onde possa ganhar o seu pão
– o direito natural à sua própria soberania; como indivíduo, deve contar apenas
consigo própria. Não interessa até que ponto as mulheres preferem submeter-se,
ser protegidas e apoiadas, nem até que ponto os homens desejam fazê-lo. Cada
qual deve percorrer sozinho a viagem da vida e, para garantir a sua segurança
em caso de emergência, tem de saber algo sobre as regras da navegação. Para
guiarmos o nosso navio, temos de ser capitão, piloto e engenheiro, estar aos
comandos com a carta e o compasso, observar os ventos e as ondas, saber ao
certo quando devemos navegar e, acima de tudo, conseguir ler os sinais do
firmamento. Não interessa se o viajante solitário é homem ou mulher. A
Natureza, tendo-os dotado a ambos com os seus dons, deixa-os entregues à sua
perícia e ao seu juízo quando chega a hora dos perigos e, se não tiverem as
aptidões adequadas nessas alturas, um e outro irão perecer.
Para termos consciência da importância
de preparar cada alma humana para agir de forma independente, pensemos por
momentos na incomensurável solidão do eu. Chegamos sozinhos a este mundo, ao
contrário de todos os que partiram antes de nós; partimos sozinhos deste mundo,
em circunstâncias peculiares a cada um de nós. Nenhum ser humano foi, ou será,
igual àquela alma acabada de lançar no mar da vida. Jamais haverá combinação
idêntica das influências pré-natais e das circunstâncias envolventes que tornam
absolutamente singulares a infância, a adolescência e a idade adulta de cada
um. A Natureza nunca se repete, e as possibilidades inscritas na alma de um ser
humano nunca serão encontradas noutro ser humano. Nunca se encontram dois
montes de erva iguais, como nunca se encontrarão dois seres humanos iguais.
Assim, ao observarmos a infinita diversidade do carácter dos homens, poderemos
avaliar, em boa medida, a perda que resultará para uma nação se uma vasta
parcela do seu povo não for educada ou se estiver sub-representada no governo.
Reclamamos o desenvolvimento completo
de cada indivíduo, desde logo para seu próprio bem-estar e felicidade. Ao
preparamos um exército, damos a cada soldado a sua mochila, a sua arma,
pólvora, o seu lençol, a caneca, a faca, o garfo e a colher. Providenciamos
para que cada qual possa ter tudo quanto necessita; depois, cada um carregará o
seu fardo.
Por outro lado, reclamamos o
desenvolvimento completo de cada indivíduo com vista ao bem comum. Para que
exista consenso sobre todos os interesses envolvidos quando estiverem em causa
questões de âmbito nacional, cada qual deve carregar a sua parte no fardo
colectivo. É triste ver como as crianças desprovidas de amigos são obrigadas a
carregar esse fardo antes sequer de poderem meditar sobre o que verdadeiramente
sentem; antes sequer de poderem partilhar as suas alegrias e tristezas são
deixadas a si próprias. A grande lição que a Natureza parece dar-nos, em todas
as idades da vida, é a da auto-dependência, da auto-protecção, da auto-ajuda. Pensemos
na solidão de uma criança, da fome de amor e de afecto que existe no seu
coração. Pensemos naquela rapariga que ajudou a enfeitar a árvore de Natal para
as crianças da família a que servia. Ao descobrir que não existia um presente
para si, fugiu para a escuridão e passou a noite fora, no campo, sentada sobre
uma pedra, e ao ser descoberta pela manhã chorava como se o seu coração se
tivesse desfeito. Nenhum ser humano pode saber que pensamentos terão percorrido
o espírito daquela rapariga sozinha, horas passadas numa noite fria, tendo
apenas por companhia as estrelas silenciosas do céu. A notícia deste caso nos
jornais levou muitos corações generosos a mandarem-lhe presentes. Mas, nas
horas de sofrimento mais profundo, só pôde contar consigo própria para
encontrar consolo.
Na juventude, as nossas mais amargas
decepções, assim como as nossas mais radiosas esperanças e ambições, são
conhecidas apenas de nós próprios. Mesmo a amizade e o amor nunca são
inteiramente partilhados com outrem. Há algo em cada paixão, em cada situação
vivida, que guardamos para nós próprios. O mesmo acontece nos triunfos e nas
derrotas. O candidato vitorioso à presidência, bem como o seu rival, cada qual
tem a sua solidão, e mandam as regras que nenhum fale do seu deleite ou da sua
mágoa. A solidão do rei no seu trono ou do preso na sua cela diferem de
natureza e intensidade mas, em ambos os casos, são solidão.
Não rogamos a compaixão dos outros
quando vivemos a ansiedade e a agonia de uma amizade perdida ou de um amor
desfeito. Quando a morte quebra os nossos laços mais próximos, sentamo-nos
sozinhos à sombra da nossa dor. Tanto nos grandes triunfos como nas tragédias
mais sombrias da nossa existência, caminhamos sozinhos. Quando alcançamos os
cumes divinos das grandes realizações humanas, sendo saudados como heróis ou
venerados como santos, permanecemos sozinhos. Na ignorância e na pobreza, ou
entregues ao vício, como pobres ou criminosos, sozinhos passamos fome ou
roubamos; sozinhos padecemos o escárnio e a rejeição dos nossos companheiros;
sozinhos somos perseguidos, capturados e levados através dos corredores escuros
dos tribunais; sozinhos nos sentamos no banco dos réus; sozinhos lamentamos na
cela os nossos crimes e infortúnios; sozinhos os expiamos no patíbulo. Em
momentos como esses apercebemo-nos da terrível solidão da vida de cada um, dos
seus sofrimentos, das suas penas, das suas responsabilidades. Ao vermos, pois,
que a vida tem de ser sempre uma marcha ou uma batalha em que cada soldado deve
estar equipado para sua própria defesa, compreendemos que é o cúmulo da
crueldade espoliar o indivíduo dos seus direitos naturais.
Colocar obstáculos à educação de cada qual
é como arrancar-lhe os olhos; negar o direito de propriedade assemelha-se a
cortar as mãos. Negar a igualdade política é tirar àquele que é ostracizado o
respeito por ele próprio. O mesmo sucede com o crédito no mercado, com a
recompensa no mundo do trabalho, com a voz daqueles que administram a justiça,
com a escolha do júri perante o qual deve comparecer quem é julgado ou com o
juiz que decide a pena. A peça de Shakespeare Titus Andronicus contém uma terrível sátira à situação das mulheres
no século XIX [sic]. Segundo a peça, um grupo de homens brutais raptou a filha do
rei, cortou-lhe a língu1a, cortou-lhe as mãos e mandou-a ir pedir água para
lavar as mãos. Eis um retrato expressivo da actual situação das mulheres.
Espoliadas dos seus direitos naturais, menorizadas pela lei e pelo costume em
todas as ocasiões, mas ainda assim obrigadas a lutar as suas batalhas e, nas
alturas de emergência, a contar apenas consigo próprias para se protegerem.
Uma
rapariga de dezasseis anos, lançada ao mundo para se sustentar a si própria,
para alcançar o seu lugar na sociedade, para resistir a todas as tentações que
a rodeiam e manter uma integridade sem mácula, tem de fazer tudo isto pela sua força
de vontade interior ou devido à educação esmerada que recebeu. Jamais adquirirá
capacidade para tanto se for ensinada apenas a acreditar nos outros e a descrer
de si própria. Se esta luta a abater, considerando ser excessivo o esforço de
nadar rio acima, e se se deixar levar pela corrente, encontrará muitos
companheiros, mas nenhum capaz de com ela partilhar a amargura na hora em que for
mais humilhada. Se tentar recuperar o seu estatuto, escondendo o passado, a sua
vida será atormentada pelo medo de que seja levantado o véu com que procura
ocultar-se. Jovem e sem amigos, conhecerá a amarga solidão do eu.
Até que ponto os pequenos gestos de
cortesia na vida em sociedade, considerados tão importantes no comportamento
dos homens para com as mulheres, se desvanecem e tornam insignificantes à vista
das tragédias bem mais profundas em que ela tem de desempenhar o seu papel
sozinha, em que nenhuma ajuda de outro ser humano é possível!
A jovem esposa e mãe que esteja à
frente de uma empresa, que tenha um marido que a proteja dos ventos adversos da
existência, com riqueza, fortuna e estatuto, tem algum porto de abrigo que a
defende dos revezes habituais da vida. Mas para governar uma casa, ter uma
certa influência na sociedade, manter as suas amigas e o afecto do marido,
educar os filhos assim como ensinar os criados, para tudo isso é necessário um
raro bom senso, sabedoria, diplomacia, e conhecimento da natureza humana. Para
tanto, ela necessita possuir as virtudes cardeais e os traços de carácter idênticos
aos que detêm os governantes mais bem-sucedidos. Uma mulher com pouca educação,
treinada na dependência, sem recursos próprios, irá certamente falhar na vida.
Contudo, a sociedade diz que as mulheres não necessitam possuir conhecimento do
mundo ou ter a preparação que, muito mais do que a educação formal, só a
experiência na vida pública pode dar; na verdade, sem isto a felicidade da
mulher estará comprometida, e terá de suportar sozinha a humilhação pelo seu
fracasso. A solidão dos fracos e dos ignorantes é lamentável uma vez que, na selvagem
competição pelo sucesso, são sempre reduzidos a pó.
Imagine-se quando os prazeres da
juventude se desvaneceram, quando os filhos cresceram, casaram e partiram, quando
a agitação e o ardor da vida se perderam, quando a velha cadeira de braços e a
lareira se tornam os recantos favoritos para repouso. Então, homem e mulher
voltam a contar apenas consigo próprios. Se não encontrarem companhia nos
livros, se não tiverem interesse pelas questões da actualidade, se não
acompanharem a concretização das reformas para as quais contribuíram,
rapidamente entrarão na velhice. Quanto mais as faculdades mentais forem
treinadas e usadas, mais duradouros serão o vigor e a curiosidade por tudo
quanto nos rodeia. Se, devido a ter dedicado a vida aos assuntos públicos, uma
mulher se sentir responsável pelas leis que regem o nosso sistema educativo,
pelas regras disciplinares nas prisões, pelas condições sanitárias nas residências
particulares e nos edifícios públicos, ou tiver interesse no comércio, na
finança, nas relações internacionais, ou em qualquer dessas questões, a sua
solidão será, pelo menos, respeitável, e não se dedicará aos mexericos nem se
entreterá com escândalos.
A principal razão para abrir a cada
alma as portas do vasto mundo dos deveres e dos prazeres humanos consiste no
progresso individual assim alcançado, nos recursos assim fornecidos para que,
em todas as ocasiões, seja minorada a solidão que, por vezes, nos assalta a
todos. Numa ocasião, perguntei ao Príncipe Kroptokin, um niilista russo, como conseguiu
suportar tantos anos na prisão, privado de livros, de caneta, tinta e papel. “Ah!”,
disse ele, “Pensei em muitas coisas que me interessavam. Na busca de uma ideia,
não notava a passagem do tempo. Quando me cansava de resolver problemas
complicados, recitava todos os trechos de prosa e verso que aprendera. Tornei-me
íntimo de mim próprio e dos meus talentos. Tinha o meu próprio mundo, um grande
império, que nenhum carcereiro russo ou nenhum czar poderia invadir”. É esse o
valor do pensamento liberal e de uma cultura vasta quando estamos privados da
companhia de outro ser humano, o que traz conforto e luz mesmo se estivermos
enclausurados no interior das quatro paredes de uma cela.
Se a muitas mulheres acontece
frequentemente o mesmo, não devem ter elas o consolo que a melhor educação
liberal pode dar? O sofrimento nas prisões de Sampetersburgo, as longas e
extenuantes marchas na Sibéria, ou o labor nas minas, trabalhando lado a lado
com os homens, certamente exigem a autoconfiança que apenas os mais arreigados sentimentos
de heroísmo podem dar. Quando são subitamente acordadas a meio da noite, aos
gritos de alarme “Fogo! Fogo!”, encontrando a casa em chamas, devem as mulheres
aguardar que os homens lhes indiquem a saída mais segura? E estarão os homens,
igualmente desnorteados, meio sufocados pelo fumo, em posição para fazer melhor
do que salvar-se a si próprios? Nestas alturas, mesmo as mais timoratas das
mulheres, ao salvarem os seus maridos e os seus filhos, demonstraram uma coragem
e um heroísmo que a todos surpreendeu. Dado que uma mulher partilha as alegrias
e as amarguras do tempo e da eternidade, não é o cúmulo da presunção um homem
propor-se representá-la na urna de voto e no trono da graça, votar em seu lugar
nos órgãos do Estado, substituí-la nas preces da igreja e tomar a posição de supremo
sacerdote no altar da família?
Nada fortalece mais a faculdade de
juízo e desperta a consciência do que o sentido de responsabilidade individual.
Nada confere tanta dignidade ao carácter como o reconhecimento de cada um à
soberania sobre si mesmo, ao direito a um lugar igual, concedido em toda a
parte; um lugar conquistado por mérito pessoal, não obtido artificialmente por meio
de herança, riqueza, origem familiar ou estatuto social. Uma vez que os deveres
e as responsabilidades da vida recaem igualmente sobre homens e mulheres, dado que
ambos partilham o mesmo destino, necessitam de idêntica preparação para o tempo
e a eternidade. Quem diz ser necessário proteger as mulheres das tempestades da
vida está a zombar, pois essas tempestades afectam-nas tanto a elas como aos
homens, mas estes foram treinados a proteger-se, a resistir e a triunfar. São
estes os factos essenciais da experiência humana, as responsabilidades
decorrentes da soberania individual. Pobres ou ricos, inteligentes ou
ignorantes, sábios ou tolos, virtuosos ou viciosos, homens ou mulheres, com
todos acontece o mesmo: cada alma deve depender inteiramente apenas de si
própria.
Quaisquer que sejam os argumentos
favoráveis a que a mulher dependa do homem, nos momentos decisivos da vida ele
jamais poderá carregar os seus fardos. Sozinha, a mulher caminha até às portas
da morte para dar a vida a cada homem que nasce neste mundo; e, se a sua dor
for maior do que aquilo que consegue suportar, sozinha atravessa essas portas
rumo ao imenso desconhecido.
Dos cumes das montanhas da Judeia, num
passado remoto uma voz celestial exortou os seus discípulos: “Levai os fardos
uns dos outros” (Gal. 6:2). No entanto a Humanidade ainda não atingiu esse
ponto de generosidade e abnegação. Nas estradas da Palestina, na oração e jejum
na subida solitária à Montanha, no Jardim de Getsêmani, ao ser levado perante
Pilatos, traído por um dos seus mais queridos discípulos na última ceia, na
agonia na cruz, até Jesus de Nazaré, naqueles últimos e tristes dias na terra,
sentiu a terrível solidão do eu. Abandonado pelos homens, gritou, em desespero:
“Meu Deus, meu Deus, porque Me abandonaste?” (Mt., 27:46; Mc., 15:34). O mesmo
se passa nos momentos difíceis da vida, na longa e extenuante marcha da vida
que cada um deve trilhar sozinho. Podemos ter amigos, amor, afecto, simpatia e
compaixão para tornar mais suportável o dia-a-dia; mas, nos momentos trágicos da
existência humana, cada mortal está entregue a si próprio.
No entanto, se os obstáculos
artificiais desaparecerem, se as mulheres forem reconhecidas como pessoas,
responsáveis em todas as situações, educadas para ocupar todos os lugares para
que forem chamadas, guiadas pela sua consciência e juízo, treinadas para
saberem proteger-se a si mesmas através do desenvolvimento saudável do sistema
muscular e do manejo de armas de defesa; estimuladas a sustentarem-se a si
próprias através do conhecimento do mundo dos negócios e da gratificação que a
independência financeira confere – se as mulheres forem moldadas desta forma,
serão aptas a enfrentar os momentos de solidão que todos atravessamos,
estejamos ou não preparados para isso. Como, em última instância, devemos
depender de nós próprios, os ditames da sabedoria aconselham o pleno desenvolvimento
de cada indivíduo.
Ao falarmos de educação, quão absurdo é
o argumento de que cada qual deve ser educado apenas para o trabalho específico
que irá exercer, deixando-se adormecidas todas as suas demais faculdades,
quando, porventura, estas serão essenciais nas situações de emergência da vida!
Alguns perguntam: que utilidade tem para as raparigas o conhecimento das línguas,
das ciências, do direito, da medicina, da teologia? Como esposas, mães, donas
de casa, cozinheiras, necessitam de outra aprendizagem, que não a dos rapazes,
para desempenhar aquelas tarefas. Os grandes cozinheiros dos maiores hotéis ou
navios de cruzeiro são homens. Nas grandes cidades, são os homens que dirigem
as padarias; são eles que confeccionam o pão e os bolos. São eles que dirigem
as lavandarias. Actualmente, os homens são considerados os melhores chapeleiros
e costureiros. Uma vez que são os homens que desenvolvem estas actividades,
deveremos alterar os curricula de
Harvard e Yale para contemplá-las? Se a resposta for negativa, para quê, então,
esta conversa sobre o currículo dos melhores colégios femininos, quando as
mulheres se encontram em todos os negócios e profissões, leccionam em todas as
escolas, exercem as mais lucrativas e mais prestigiadas actividades?
As mulheres demonstram também a sua
presença de espírito e a sua coragem nos momentos mais difíceis. Provavelmente
leram nos jornais a notícia de uma terrível tempestade no Golfo da Biscaia, em
que uma onda gigantesca atingiu a costa, arrastando navios, levando os telhados
das casas, trazendo a destruição a toda a parte. Entre outros edifícios, a prisão
das mulheres foi arrasada. As que escaparam viram alguns homens lutando para
chegar à costa. Unindo as mãos, rapidamente fizeram uma corrente humana e,
enfrentando as ondas, arriscando a vida, conseguiram salvar seis homens,
trouxeram-nos para um local abrigado e tudo fizeram para lhes dar protecção e
conforto.
Que treino especial seria capaz de
preparar aquelas mulheres para este momento sublime das suas vidas? Em alturas
como essa, o sentido de humanidade sobrepõe-se a todos os curricula dos colégios, e reconhece na Natureza a grande mestra nas
horas de perigo e de morte. As mulheres já são iguais aos homens em todos os
domínios do pensamento, nas artes, na ciência, na literatura e no governo. Com
apoio em telescópios, exploram o firmamento e trazem-nos a história das esferas
planetárias. Com a carta e o compasso, conduzem navios entre os oceanos, e com
dedos destros enviam mensagens eléctricas para todo o mundo. Nas galerias de
arte, as belezas naturais e as virtudes humanas são por elas imortalizadas em
telas e, pelo seu toque inspirado, blocos toscos de mármore são transformados
em anjos de luz. Na música, falam a língua de Mendelssohn, Beethoven, Chopin,
Schumann e são dignas intérpretes dos seus pensamentos. A poesia e o romance são
delas e participam nas reformas políticas, religiosas e sociais. Ocupam os
lugares de editores e professores e estão na barra dos tribunais, do mesmo
passo que marcam presença nos hospitais e falam a partir de púlpitos ou de
quaisquer palcos. É este o tipo de mulheres que o público ilustrado actualmente
valoriza: os factos da vida triunfaram sobre as velhas teorias do passado.
Será razoável confinar as mulheres dos
nossos dias às mesmas limitações políticas das senhoras que no passado fiavam
com rocas e tricotavam com agulhas? Não, não! As máquinas carregam os trabalhos
das mulheres, assim com os dos homens, sobre os seus ombros, os teares e as
rocas não são mais do que sonhos do passado; a caneta, o pincel, o cavalete e o
cinzel tomaram o seu lugar, do mesmo passo que as expectativas e as ambições das
mulheres mudaram radicalmente.
Se vemos, no mundo, condições mais do
que suficientes para a liberdade individual e o desenvolvimento de todos os
seres humanos, quando encaramos a auto-dependência de cada alma verificamos que
as mulheres necessitam de coragem, de capacidade de julgamento e do exercício de
todas as faculdades físicas e mentais, fortalecido pelo seu uso permanente.
Diga-se o que se disser sobre o poder
protector dos homens em circunstâncias normais, nos terríveis desastres que
ocorrem na terra e no mar, ou nos momentos de maior perigo, as mulheres têm de
enfrentar sozinhas essas situações. O Anjo da Morte não lhes concedeu um
caminho privilegiado. O amor e o afecto dos homens emergem apenas nos momentos
luminosos das suas vidas. É nesta atitude do eu, que nos liga com o
incomensurável e com o eterno, que cada alma vive sozinha para sempre. Um
escritor disse recentemente:
Lembro-me
de uma vez, em que atravessava o Atlântico, de subir ao convés do navio à
meia-noite, quando uma densa nuvem negra cobria o céu, e as profundezas do
oceano rugiam ao sopro de ventos demoníacos. Não tive qualquer sensação de
perigo ou de medo – os sinais de rendição de uma alma imortal – mas de uma
profunda solidão, como se fosse uma minúscula partícula de vida no seio de um total
negrume. Lembro-me também de escalar as escarpas dos Alpes suíços, muito para
além do ponto em que a vegetação desaparece e em que as coníferas atrofiadas
deixam de lutar contra os ventos. Em meu redor, uma enorme profusão de rochas,
acima das quais se elevavam picos gelados e gigantescos, que tocavam o azul dos
céus; uma vez mais, o meu único sentimento foi o de uma terrível solidão.
Porém, existe uma solidão que todos e
cada um de nós sempre carregou consigo. Mais inacessível que as montanhas
geladas, mais profunda do que o mar à meia-noite. Essa é a solidão do eu. O
nosso interior, a que chamamos “eu”, jamais foi tocado por qualquer homem ou por
qualquer anjo. Está mais escondido do que as grutas do gnomo, do que o ádito
secreto do oráculo, a câmara oculta dos mistérios de Elêusis. Nele, só a
Omnisciência está autorizada a entrar.
Assim é a vida de cada indivíduo.
Então, pergunto-vos: quem pode apossar-se, quem se atreve a apossar-se dos
direitos, dos deveres, das responsabilidades que pertencem a outra alma humana?
Elizabeth Cady Stanton
Notável discurso, especialmente considerando-se que foi pronunciado há 122 anos. Obrigado por nos dá-lo a conhecer. Excelente tradução. Parabéns! Notei apenas pouquíssimos lapsos de digitação: no parágrafo que se inicia com
ResponderEliminar"A jovem esposa", está "bem" em vez de "bom" no final da 6ª lnha; no final do penúltimo parágrafo está "se elevava picos" em vez de "elevavam". Atenção também às grafias de Koprotkin e Schumann.
Muitíssimo obrigado, vou já corrigir
ResponderEliminarCordialmente,
António Araújo
Schumann e Koprotkine continuam mal grafados.
ResponderEliminarTem mais do que razão, desculpe-me!
EliminarCordialmente, muito grato,
António Araújo