Sair do corpo para entrar nele, de Isabel Moreira.

 

 

 

Acordou de manhã no final do ano de 2014. Esticou o corpo e sentiu uma dor.

Recordou no toque a que sabe ter direito essa dor.

Que é coletiva.

Sente-se ameaçada porque o seu contrato de trabalho não é renovável automaticamente, mas não se sente ameaçada, na sua vida, por ser mulher, essa condição tão presente nos seus dedos matinais.

Abela, uma rapariga asiática, puxa-lhe os dedos de dentro para fora, recorda-lhe que no mesmo dia daquele prazer solitário, a vida dela vale menos do que a vida do seu irmão e que está em risco de morte por falta de comida.

Acordou de manhã e agora tenta fazer explodir atomicamente estas paisagens, quer tocar-se e vir-se, sem culpas, essa coisa de que já se livrou, essa coisa que a religião faz às crianças, às meninas – “não te toques” – esse abuso de menores, quer apressar o alívio de um orgasmo, mas tem um texto lixado para escrever e puxa os dedos para o umbigo.

É aí que escreve, muda, nomes e nomes de mulheres dos dias de hoje, limitadas à sua função reprodutora, assassinadas e violadas em teatros de guerra, sangue pela “honra” dos homens, apedrejadas nos países muçulmanos dominados pelas fações extremistas do islão, subjugadas a um projeto de aniquilamento, de apagamento.

Acordou de manhã e agora faz regressar os dedos aos seus lábios, não quer escrever o texto, quer sentir os seus lábios, interiores e exteriores, o seu clitóris, gozar desta integridade. Mas no deslize dos dedos a humidade parece vir dos olhos, dos olhos das meninas africanas vítimas de excisão e de infibulação, tantas vezes por parte das próprias mães, também elas vítimas do sistema que lhes diz que é assim e porque é assim negam a vida, ou o corpo ou a sexualidade futura a estas crianças.

Acordou de manhã pensando que talvez fosse fácil uma masturbação e partir para o trabalho, mas tinha um texto para escrever, e trabalha porque teve acesso à educação, e retira o indicador de si, o mesmo que dizia as letras por baixo e gritam-lhe no quarto as raparigas sem saúde nem educação, as mulheres para quem ser mãe não é bênção, nem opção, nem escolha, mas um risco. Um risco resultante de uma ação sobre um mero objeto de desejo e de satisfação masculina e proprietária.

É de continuar a tirar o dedo, porque não estamos a falar de um mundo distante, que ainda que o fosse seria vizinho, porque não há sofrimento ao quilómetro; estamos a falar do nosso bairro, da nossa cidade, do nosso país, no nosso universo familiar, onde as mulheres sofrem maus-tratos conjugais, psicológicos e sexuais, estamos a dizer (estou a dizer) que a família é um local de risco para se existir. Mesmo aqui, onde não é o véu que nos esconde nem o casamento forçado que nos força.

Acordou de manhã e parou o seu prazer à conta do texto antecipado: queria furtar-se à explicação dos quadros legais – temos um bom quadro legal em constante aperfeiçoamento – para antes dizer do início e o início é isto: enquanto escreve conta 40 mulheres assassinadas em 2014 em contexto conjugal. E o início é isto: antes e depois das mortes está a igualdade entre os sexos como princípio concreto, transformado em direito, pressuposto de todos os outros. É ele que grita em feminino: – eu sou dona da minha vida, do meu corpo, eu opto por controlar a minha vida. É ele que impõe sem adversativas todas as reclamações: – eu voto; eu sou eleita; eu estudo; eu escolho a profissão que entender; eu controlo os filhos que quero ter; eu não tenho de casar; eu não tenho de ter filhos; eu decido, em consciência, em condições de saúde, se interrompo uma gravidez; eu amo uma mulher; eu ganho o mesmo salário que um homem para trabalho igual; eu não admito ser menos cidadã porque sou mulher e não serei mulher inteira enquanto outras não o forem.

Acordar então e fazer dos dedos uma arma simbólica para a explosão de prazer e de direitos que aqui se têm e ali, mesmo ali, o silêncio esconde numa dor que tem de ser coletiva. Porque é coletiva.

Isabel Moreira

Constitucionalista

Escritora

Deputada do PS

 

 

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