Escrito nas vésperas do período mais negro do século XX, O Conceito do Político, de Carl Schmitt,
foi testemunha profética de um mundo polarizado que, à época, ainda estava por
chegar.
O Conceito do Político, de Carl Schmitt (1888-1985), publicado,
originariamente, em 1927 sob a forma de artigo na revista Archiv für Sozialwissenschaft und Sozialpolitik, e, mais tarde, em
1932, em formato de livro, nasceu intimamente ligado ao seu autor e ao papel
deste como inimigo jurado da República de Weimar e, depois, como filiado n.º
298 860 do Partido Nazi, ao qual aderiu em 1932, juntamente com Martin
Heidegger. A fama – ou a infâmia – de que esta obra gozou nas primeiras décadas
a seguir à sua publicação é quase indissociável destes eventos.
Contudo,
desde que o Carl Schmitt caiu em desgraça no seio do Partido Nazi, a partir de
1936 – e, principalmente, desde que, afastado da vida académica e em virtude da
recusa a submeter-se aos processos de desnazificação, se exilou na sua cidade
natal na Vestefália, à qual se passou a referir como a sua San Casciano, numa
óbvia referência ao lugar onde Maquiavel sofreu o seu exílio forçado de 1512 a
1520 –, a história deste livro mudou. O mundo da República de Weimar em que o
livro nasceu e os horrores da Segunda Guerra Mundial que se lhe seguiram, dava
agora lugar a um mundo novo, o da divisão da Alemanha, da construção do Muro de
Berlim, da Guerra Fria, da ameaça nuclear, do terrorismo moderno. Todos estes
eventos deram uma nova vida à obra de Carl Schmitt publicada entre as duas
grandes guerras e, principalmente, a este livro que ressurgiu como uma visão
profética de um mundo polarizado, mas, também, de um mundo em que a política é
cada vez mais neutralizada pela economia e pelos mercados, tornando-o um dos
vestígios mais fidedignos deste século de amizades e inimizades extremadas, o
que justifica em grande parte a circunstância da sua obra se ter tornado, nas
últimas décadas do século XX e no conturbado início do século XXI, com o 11 de
Setembro e a guerra ao terrorismo, uma obra de referência do pensamento
político para autores tão diversos como Leo Strauss, Jacques Derrida, Julien
Freud, Giorgio Agamben, Antonio Negri ou Slavoj Žižek.
E por
falar em inimigo, este é, aliás, um dos conceitos fundamentais não só desta
obra, mas de todo o seu pensamento político. Contudo, falar sobre o inimigo em
Carl Schmitt é uma tarefa espinhosa. Enquanto conceito político, este termo é
construído no seu pensamento a partir de uma das mais emblemáticas e discutidas
afirmações de toda a sua obra. Diz o autor, num dos primeiros parágrafos do
capítulo segundo desta obra, que “a diferenciação especificamente política, à
qual se podem reconduzir todas as acções e motivos políticos, é a distinção de
amigo e inimigo”. Com esta afirmação, o autor inaugurou caminho de um dos
corolários da sua teoria política: a distinção/oposição entre amigo e inimigo (Freund-Feind), que atravessará grande
parte da sua obra e regressará em força, anos mais tarde, na sua Teoria do Guerrilheiro (1962).
A
distinção entre amigo e inimigo é, de facto, indissociável da situação política
e social da Alemanha durante período que se seguiu à Primeira Guerra Mundial,
nomeadamente durante o período da República de Weimar. Schmitt desconfiava
profundamente da organização democrática da comunidade e dos resultados mais
imediatos, considerando que esta implicava uma indesejável amálgama entre os
interesses do Estado e os interesses da sociedade. Segundo o jurista alemão,
“esbatia-se”, assim, a fronteira entre estas duas realidades. Neste contexto,
Schmitt questiona-se sobre a essência do político. A esta pergunta, contudo, a
sua obra não procura fornecer verdadeiramente uma resposta directa. Ao invés, o
autor parte para a distinção entre amigo e inimigo. Schmitt adopta, assim, três
ideias fundamentais que se inserem numa certa tradição do pensamento político
ocidental, na qual escolhe Hobbes como o elemento de comunicação privilegiado:
o pessimismo antropológico; a segurança como principal função do político; e o
princípio da protecção/obediência.
Por
outro lado, esta distinção descreve tanto a função como a essência do político.
No primeiro aspecto, ela insere-se numa linha de continuidade com uma tradição
do pensamento ocidental que assume como principal preocupação da entidade
política a segurança. Contudo, quanto à essência do político, Schmitt quebrou
profundamente com as correntes do pensamento político que o precederam; é que para
o autor, a distinção entre amigo e inimigo não é aquilo que a política faz, mas
sim aquilo que a política é. O político, nesta perspectiva, tanto contém a
possibilidade de paz, como a possibilidade real de guerra; daí que Schmitt
afirme, de forma particularmente radical e quebrando com a tradição hobbesiana,
que se sobre a terra não houvesse mais que neutralidade, não só teria terminado
a guerra, mas também a neutralidade em si mesma, de igual forma que
desapareceria qualquer política, incluindo a de evitar a luta, se deixasse de
existir uma luta em geral.
Esta
distinção evoca, também, a relação de identidade ou de conflito que subjaz às
formas de agrupamento ou de oposição entre os homens. No domínio político,
estas caracterizam-se por corresponderem ao grau máximo de intensidade possível
de união ou de separação. Qual a origem deste grau máximo de intensidade? A
resposta reside na possibilidade real de que as relações de identidade ou de
conflito subjacentes aos conceitos de amigo e de inimigo se consubstanciem numa
guerra. Os conceitos de amigo, inimigo e luta adquirem o seu sentido real
precisamente por fazerem referência à possibilidade real de matar fisicamente,
e, por isso mesmo, a guerra não é mais do que a realização extrema da inimizade.
Finalmente
disponível aos leitores portugueses, esta tradução do texto de 1932, que segue
de perto a estrutura das edições norte-americana e espanhola, é completada pela
notável introdução e pelas indispensáveis notas do tradutor, Alexandre Franco
de Sá, um especialista reputado na obra de Schmitt, tornando mais acessível um
dos textos mais polémicos e mais comentados da teoria política do século XX.
David
Teles Pereira
(publicado originalmente no jornal i, republicado no Malomil com permissão do autor: obrigado, David,
um abraço!)
Atenção a Philippe Julien Freund
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