A
Capela da Conceição ou de Santa Ana é um dos pontos altos da visita à Catedral
de Burgos, um dos expoentes do gótico flamejante em Espanha. A sé burgalesa é
um magnífico retalho de arte, com sucessivas capelas marcadamente independentes
em estilo, além do extraordinário zimbório que domina o interior e o exterior
do templo.
A
capela foi construída como capela funerária para D. Luis de Acuña y Osorio
(1426-1495), Bispo de Burgos, ainda em vida deste. Surgiu, ocupando o espaço de
duas capelas originais, pela mão de um dos principais arquitectos do templo,
Juan de Colonia, que morreu antes de terminada a empreitada, concluída em 1488 pelo
seu filho Simón de Colonia.
Por
essa altura já o escultor Gil de Siloé, omnipresente em tudo o que há de melhor
em Burgos, trabalhava no retábulo que é hoje considerado um dos melhores
exemplos da escultura tardo-medieval e que se encontra nesta pequena capela. O
blogue Viajar con el Arte (http://viajarconelarte.blogspot.com/2014/02/la-capilla-de-la-concepcion-en-la.html),
de grande utilidade para um visitante ávido de boa arte sacra, tem uma
descrição pormenorizada da capela e também do altar.
O
elemento central é uma genealogia da Virgem Maria a partir da Árvore de Jessé.
Este, como sempre, dorme. Mas confunde-se de forma sublime com as raízes da
árvore, em cujos troncos figuram os Reis de Judá, ladeando o encontro de Santa
Ana e São Joaquim na Porta Dourada de Jerusalém. A cena é descrita no
Proto-Evangelho de Tiago e está, através da Lenda Dourada, muito presente na
tradição cristã. É o momento da concepção imaculada que veio a ser decretado
dogma por Pio IX em 1854. Daí o nome de Capela da Conceição.
Em
cima, os troncos da árvore cumprem-se numa flor, aos pés da Virgem com o
Menino, ladeados estes por duas figuras femininas que representam o Antigo e o
Novo Testamento, aquela de olhos vendados. O altar culmina com um Calvário,
estando aos pés do Crucificado as armas do Bispo Acuña. Este repousa em frente,
num belíssimo túmulo de alabastro, obra de enorme qualidade do escultor Diego
de Siloé, filho do autor do altar e figura que transita as artes familiares
para a Renascença espanhola.
O
Viajar con el Arte falha apenas pela ausência de explicação para aquela que é,
para o visitante luso, a surpresa maior na Capela da Conceição: a profusão de
armas portuguesas, no altar, nos frescos do arco e nos vitrais. São armas “plenas”,
próprias do monarca português, sem “diferença” heráldica. Contudo, não há
qualquer referência a uma ligação real portuguesa à construção da capela ou do
seu esplendoroso altar. Só no fim do relato do audioguia surge a explicação
plausível – a ligação aos Duques de Abrantes.
Recuemos
a 1640. Por alturas da Restauração da Independência, alguns nobres portugueses
permanecem fiéis a Felipe IV de Espanha. Entre esses está D. Afonso de
Lencastre, filho segundo do terceiros Duques de Aveiro e “bis-neto” (trineto do
lado do pai, tetraneto do lado da mãe) do Rei D. João II. A lealdade é
recompensada com a concessão de dois títulos espanhóis com referência a terras
portuguesas: Duque de Abrantes e Marquês do Sardoal. A família permaneceu em
Espanha, vindo a adquirir vários títulos pelas admiráveis teias de casamento na
aristocracia espanhola.
Foi
o 9.º Duque de Abrantes, D. Ángel María de Carvajal y Téllez-Girón, que patrocinou,
entre 1868 e 1870, o restauro da Capela de Santa Ana. Era à época Presidente do
Real Cuerpo de la Nobleza de Madrid
mas Espanha vivia tempos de tumulto. A Rainha Isabel II fora deposta por uma
revolução em Setembro de 1868, acabando com a agonia do seu reinado, mostra das
tensões entre o liberalismo progressista, o absolutismo carlista e um centro
moderado – porventura não muito distante da actual configuração política
espanhola entre PSOE, PP e Ciudadanos. Seguir-se-iam uns anos de incerteza, o
reinado de Amadeu de Sabóia e a efémera Primeira República.
O
pretexto do restauro parece ter sido uma ligação familiar entre o Bispo Acuña
(que parece ter tido descendência, legítima, antes de ser ordenado padre) e o 9.º
Duque de Abrantes. Inquestionável é que D. Ángel María de Carvajal y
Téllez-Girón quis sublinhar a ligação portuguesa através da repetição das armas
reais lusas, encimadas pela coroa ducal. No vitral estão ladeadas por um D. e
um A., para “Duque de Abrantes”.
Nas
elaboradas pinturas murais (de um pintor António Lanzuela, que Abrantes
contratou), que replicam de forma exemplar os motivos da talha dos dosséis do
altar, as armas portuguesas estão rodeadas pelo Colar da Ordem de Carlos III,
criada um século antes e da qual o Duque de Abrantes era Cavaleiro Grã-Cruz. Estão,
ainda, em ambos os lados da cena central da predela do altar – um Cristo
rodeado pelos Instrumentos da Paixão, as Arma
Christi, Nossa Senhora e o Evangelista a um lado, Maria Madalena e uma
outra mulher ao outro – separando-os desta as figuras de S. Pedro e de S. Paulo.
Os
restantes elementos da encomenda-restauro de Abrantes são prova da referida
teia matrimonial e reflectem o orgulho na sua ascendência entroncada mas várias
grandes casas de Espanha, uma espécie de árvore para “rivalizar” com a de Jessé:
armas de Fernández de Córdoba (Medinaceli), Acuña, Téllez de Girón (Osuna) e
Pimentel (Benavente), referentes à mãe do Duque. Também armas de Carvajal,
Sande (Valdefuentes) e, claro, as armas reais de Lancaster com a liga da Ordem
da Jarreteira e o seu delicioso Honi soit
qui mal y pense. Uma mensagem para os detractores do patrocínio ao
restauro?
Muito
curiosamente, o mesmo 9.º Duque de Abrantes fixou residência em Lisboa, pelo
menos durante dois anos, entre 1874 e 1876. Inspirado pelos trabalhos em Burgos
ou apartando-se apenas da República, D. Ángel de Carvajal parece ter escolhido
o Palácio das Laranjeiras. O Lourenço Correia de Matos, a cujas apuradas faculdades
heráldicas e genealógicas recorri para destrinçar várias dúvidas deste
emaranhado, encontrou na imprensa da época variadíssimas referências à presença
de Abrantes em Lisboa, às suas idas ao São Carlos e aos ameaços de regresso à
Madrid já liderada por Alfonso XII na sequência da Restauração.
A
ligação dos Abrantes a Portugal não se fica por aqui. Fruto do segundo
casamento do 9.º Duque, D. Manuel de Carvajal y Jiménez de Molina casaria em
Lisboa, em 1888, com Maria Clementina Pinto Leite, com descendência, como me
contou o Embaixador Manuel Côrte-Real a partir da sua infinita cultura
histórica. O casal seria muito próximo do Rei D. Carlos e da Rainha D. Amélia e
o soberano português concedeu mesmo ao filho do Duque de Abrantes o título de
Conde de Jiménez de Molina em 1892. A ironia de um título português com nome
espanhol para o filho do titular de um ducado espanhol com nome português.
O
actual e 15.º Duque de Abrantes é D. José Manuel Zuleta y Alejandro, General do
Exército espanhol e Chefe de Gabinete da Rainha D. Letizia de Espanha. A sua
filha e herdeira usa o título de Marquesa do Sardoal.
Ademar
Vala Marques
Artigo muito interessante. Como Lancastre (e Abrantes) que sou não simpatizo com esta deriva filipina daquele meu parente, e acho algo pretensioso as armas plenas. Parabéns ao autor pela investigação e ao Lourenço pela preciosa contribuição. Quanto ao mais, "a ligação dos Abrantes a Portugal" (como inocentemente refere o autor) - e à Casa de Bragança, já agora, é absolutamente telúrica.
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