JORGE DE SENA
“SEPARA-SE” DA MÉCIA
Foi
em Madison, Wisconsin, pelas dez e meia da noite do ano do Senhor de 1969. Era
Inverno e chovia quase torrencialmente.
Estava
eu em casa do Prof. António Salles, a discutir com ele o meu “paper” para o
seminário anual de Linguística, quando alguém bate estrondosamente à porta. O
Salles vai abrir e quem havia de estar à porta, com uma capa de oleado a
escorrer água? – Jorge de Sena. Nem mais nem menos.
Entra
e enquanto o Salles o ajuda a tirar a capa, Jorge de Sena profere estas
palavras:
- Ó
Salles, separei-me da Mécia. Dás-me dormida em tua casa?
- Para
já, senta-te aí nessa poltrona, toma um uísque e depois discutimos essa questão
da separação e da dormida.
E
o Salles pegou dum copo e pôs-lhe duas pedras de gelo; depois pegou duma
garrafa de Johnñy Walker, abriu-a e preparou um uísque bem generoso a Jorge de
Sena. E bebido esse uísque, o Salles serviu-lhe outro. E enquanto Jorge de Sena
saboreava os uísques em silêncio e com ar ensimesmado, o Salles e eu íamos
notando, pelo rabo do olho, que a pequena raiva que Jorge de Sena trazia, ao
entrar na casa do Salles, localizada junto do Capitólio, ia diminuindo a olhos
vistos.
Tendo
observado essa transformação, o Salles perguntou-lhe então se de facto queria
dormir em casa dele. Se sim, que esperasse uns minutos, enquanto ia mudar os
lençóis na cama dele, e preparava uma cama para ele, Salles, no sofá. Foi então
que Jorge de Sena, com ar ligeiramente sereno e visivelmente enternecido,
perguntou ao Salles se podia usar o telefone dele. Com certeza. Estava à sua
inteira disposição. E coloca-lho nas mãos. Jorge de Sena levanta o auscultador,
disca um número, e passados momentos, com uma voz mais mansa que a de um
cordeiro, profere estas palavras:
-
Ó Mécia, se eu voltar para casa, tu ainda me aceitas aí?
E
mais não disse. Decorridos brevíssimos instantes, pousou o auscultador,
agradeceu a hospitalidade e o uísque, levantou-se da poltrona, pediu a capa de
oleado e disse que ia para casa, que já era tarde e a Mécia estava à espera
dele, muito preocupada.
António Cirurgião
O homem habitando o portento. Se não tresleio, na Conta Corrente Vergílio Ferreira anotou: Sem a Mécia aquele homem desmoronava-se.
ResponderEliminarGrato pelas recordações.
Prezado Sr. José,
ResponderEliminarComo é gratificante esta sintonia de mentes! Explico-me. Ao enviar esta vinheta sobre Jorge de Sena a pessoas amigas, dei-lhe por companhia estas palavras: "De longe em longe o monstro sagrado descia do Monte Parnaso ou levantava-se do mesa do café do Minotauro e dava um breve passeio pelo mundo prosaico dos homens".
Obrigado e cordiais saudações
do
Cirurgião
Agradeço-lhe a atenção.
ResponderEliminarO convívio com o Minotauro tinha uma condição:-Se um dia me esquecer de tudo. Em todo o caso precisava da materialidade do café(forte) e do "dedo sujo de investigar as origens da vida".
Esse ano da "separação" seria,se não erro, o da "peregrinação" à Europa e do (livro) Peregrinatio.
Envio-lhe os melhores cumprimentos.
José