Tendo Sérgio Barreto Costa publicado
no Blasfémias um texto crítico de um escrito meu no Diário de Notícias, e tendo ele a gentileza de me enviar o
respectivo link, acedi de imediato a divulgar esse seu texto no Malomil, pela
oportunidade que me dá de estabelecer um diálogo frutuoso e intelectualmente
estimulante com uma pessoa que muito prezo.
Irei fazer alguns comentários
esparsos, sem preocupações de sistematização, e o Sérgio Barreto Costa,
querendo, poderá responder também aqui.
Meu caro Sérgio Barreto Costa,
Entrando na questão que motivou o seu
texto, e esperando não prolongar este diálogo para lá dos limites da sua paciência, a resposta parece-me óbvia: é claro que um funcionário público pode
ser liberal, e um liberal pode ser funcionário público. A Administração pública portuguesa
já não faz, ou ainda não faz, exigência de prova de que não se professa este ou
aquele credo político. E o funcionário ou agente do Estado pode, naturalmente,
sem mácula para a sua coerência, e menos ainda para o seu conforto, defender o
que quer que seja. A isso chama-se liberdade.
Onde está então o problema? No seu
texto, o Sérgio refere o exemplo de Ricardo Robles, que V. castiga – e bem –
pela contradição entre o que proclama e o que pratica, ou praticou. Não faz
muito sentido, de facto, clamar aos quatro ventos contra a especulação
imobiliária e, pela surra, andar a especular imobiliarmente. Não faz sentido, é
contraditório, é incoerente.
E
pode um comunista ir a um hospital privado? Recordo a Sérgio Costa e aos
leitores que não há muito viram António Filipe num hospital particular e logo
fizeram um vendaval (ao que parece, ele até estava ali a visitar uma pessoa de
família, como o próprio esclareceu, mas aqui tem a notícia da revista Sábado).
Pois parece-me que a um militante do PCP não está vedado o acesso ao Hospital
da CUF, nem deve estar. Mas agora imagine-se que António Filipe bramava aos
quatro ventos contra a investida da família Mello no sector da saúde, contra a
falta de qualidade dos cuidados médicos ou contra a exploração dos
trabalhadores dos hospitais privados. Seria legítimo e coerente da sua parte ir
depois dar dinheiro a ganhar aos Mello, contribuir para o incremento do seu
poderio, ou recorrer a mão-de-obra explorada e a serviços médicos que considera
calamitoso?
Pela
boca morre o peixe, como se costuma dizer. Para mim, no que posso estar
enganado, é tudo, como sempre, uma questão de bom senso, do tom e do modo como
se colocam as coisas. Dir-me-á que então tudo é, afinal e
apenas, uma questão de estilo e de verbo, não de princípio ou de substância.
Exactamente. Na esfera pública, a coerência também se avalia pela forma, pelo
estilo, pelas palavras usadas, pelo tom do som, por aquilo que se diz e não
diz, pois isso faz da mensagem, isso é a mensagem, não havendo diferença entre
forma e conteúdo.
Assim,
se eu disser, com contenção e serenidade, com argumentos racionais baseados em
factos ou realidades comprovadas, que se tem de repensar a dimensão do Estado,
que isso implica muito provavelmente uma redução do número de funcionários,
etc., creio não haver problema em ser liberal, comunista ou o que for e manter
um emprego no Estado (aliás, se prevalecesse uma lógica radical, um anarquista
ou um comunista também não poderiam ser funcionários públicos). Mas se escrevo
crónicas impetuosas, se grito e esbracejo contra o gigantismo do Estado e sobre
a desmesurada massa dos seus funcionários incompetentes e pouco motivados, que
exemplo de coerência dou, sendo eu funcionário público ou aposentado da CGD? Abstenho-me
sequer de citar-lhe textos impetuosos de Vasco Pulido Valente ou de Maria de
Fátima Bonifácio, dois autores que admiro em muito do que pensam e escrevem,
mas não na sua coerência nesta matéria.
De facto, como se pode defender
inflamadamente a tese das «gorduras» da Administração e proclamar uma dieta
drástica, de milhares de funcionários e de centenas de organismos e, ao mesmo tempo,
vencer mensalmente pelo Orçamento do Estado? Não sei em que departamento do Estado V.
trabalha, meu caro Sérgio, mas não seria ele um potencial alvo de extinção, acaso
ficássemos, como muitos propõem, só com a justiça, a diplomacia e as forças armadas? Dir-me-á: nada
disso, não se advoga a extinção de tudo, apenas do que está a mais, do que é
supérfluo. Mas quem define o que está a mais, o que é supérfluo? Eu, V., uma
comissão de burocratas ou um programa partidário? E porque é que, havendo «redução» e «emagrecimento»,
eles têm de ocorrer para o colega do lado, não para mim? Porque é que a
extinção deve acontecer para o departamento Y mas não para o organismo onde eu
trabalho onde estou, a filosofar comodamente na companhia de John Locke e de Adam Smith?
É que, meu caro Sérgio, um dos argumentos
que V. aduz para salvar a sua posição baseia-se na ideia de «interesse próprio».
Pois é isso que inquina as coisas. Quando eu falo em matéria política tenho de falar
em nome do interesse geral, chame-lhe interesse nacional, interesse colectivo,
interesse do país ou o que quiser. Não posso construir um programa político com
base no meu interesse próprio, não dá. Mas o que sucede então? Raciocino com
base no meu interesse próprio de
funcionário do Estado ou com base no interesse
geral de redução desse mesmo Estado? Dir-me-á que, em caso de conflito, um
liberal de boa-fé fará prevalecer o interesse de todos e, numa atitude
suicidária, concordará que, de facto, não faz sentido existir o organismo em que
trabalha, mais uma «gordura» alimentada pelos impostos dos contribuintes. Mas, assim, lá se
vai o «interesse próprio» e, no fundo, o pressuposto que ditou a entrada
do funcionário liberal nos quadros do Estado…
É
que também há isso: ao aceitar ser funcionário público, não estou, eu próprio,
com a minha atitude e egoísmo individuais, a prejudicar o interesse do país, materializado em menos funcionários e menos peso do Estado? E não é essa prevalência do meu interesse egoísta sobre o interesse público, de que eu próprio
sou exemplo e encarnação viva, a prova mais cabal de que não se pode deixar
tudo à solta e confiar cegamente na mão invisível?
Também se pode dar o caso de um liberal a valer só aceitar trabalhar em lugares
do Estado que considere insusceptíveis de extinção, a (começar pelo seu…). Mas,
sinceramente, meu caro Sérgio, alguém que participa num concurso público pensa
assim? Pensa, claro, ou deve pensar, que o lugar para que se candidata é útil, imprescindível
até. Mas, ao olhar para os anúncios dos concursos, alguém faz uma triagem «liberal»
e só escolhe concorrer a lugares ou entidades que possam escapar a medidas e reformas liberais? Alguém de bom senso procede assim, sacrificando o seu interesse em entrar para o Estado ou, uma vez lá dentro, em movimentar-se na busca de melhores lugares)
Como vê, não tenho quaisquer problemas
quando um liberal – para mais, um liberal de boa-fé como V. –
é também funcionário público. Mas que as coisas precisam de ser mais
amadurecidas e ponderadas, disso não duvide.
Um abraço e bom domingo,
António
Araújo
(Continua)
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