Uma História do Mundo em 100 Objetos,
por Neil MacGregor, 2014, Temas e Debates e Círculo de Leitores, 2014, é
uma estimulante aventura em que os objetos ajudam a compreender a história
mundial. Neil MacGregor usou da faculdade de Diretor do Museu Britânico para
fazer palestras na BBC e dar à estampa esta admirável viagem encetada na
Pré-História e que vem ao quase presente, permitindo ao leitor olhares sobre a
hominização, o que aconteceu depois da Idade do Gelo, como tudo mudou com as
primeiras cidades e estados, a alvorada da Ciência e da Literatura, os
pensadores orientais, os construtores de impérios, os primeiros protocolos e
formas de distinção, a ascensão das religiões mundiais… Um itinerário que nos
leva até à sociedade de consumo, a emergência de guerras étnicas depois da
descolonização, a importância que tem hoje o cartão de crédito e os mais
prementes desafios energéticos.
Este Trono de Armas é inquietante e
avassalador, é uma cadeira feita com partes de armas produzidas em todo o mundo
e exportadas para África. Temos procurado muitas definições abrangentes para
todo o século XX, é verdade que prepondera a ideia de que foi o século da
mulher, mas não escapa a algumas interpretações a matança em massa que se
praticou em duas guerras mundiais, nas purgas estalinistas, no Holocausto, nos
arrasamentos nucleares, nos campos de morte do Camboja, nos massacres do Ruanda,
é uma lista praticamente infindável. Este trono é um monumento a todas as
vítimas da guerra civil moçambicana. Desapareceram os impérios, pareciam
prosperar ideologias globais e afinal tudo caiu em disputas sangrentas. Faltou
previsão aos dirigentes dos movimentos nacionalistas e mesmo aos líderes
coloniais para com tempo criarem competência para as novas experiências
governativas, EUA e URSS, os Aliados eram manifestamente indiferentes a este
desafio de organização do Estado que gerasse soberania e fizesse calar as
etnicidades exacerbadas. A guerra civil em Moçambique foi uma das mais
sangrentas e parece que ainda não estancou.
As armas que dão forma a esta cadeira traçam a
história do século XX moçambicano. As mais antigas, no espaldar, são duas velhas
G3 portuguesas. A FRELIMO era apoiada pela URSS, e isso explica que todos os
outros elementos da cadeira sejam armas desmembradas produzidas pelos
comunistas: os braços são da AK-47 soviética, o assento de espingardas polacas
e checas, e uma das pernas da frente é um cano de uma AKM norte-coreana. Como
enfatiza Neil MacGregor, “Trata-se da Guerra Fria em forma de peça de
mobiliário, o Bloco de Leste em ação, lutando pelo comunismo em África e em
todo o mundo”. Em 1975, o novo Moçambique apresentava-se como um Estado
marxista-leninista, em resposta, os rodesianos e os sul-africanos criaram e
apoiaram um grupo oposicionista, a Renamo, com o intuito de destabilizar
completamente o país, as primeiras décadas da independência moçambicana foram
tempos de derrocada económica e sangrenta guerra civil. Isto para sublinhar que
as armas do trono participaram na guerra civil: um milhão de mortos, milhões de
refugiados e 300 mil órfãos de guerra. A paz só veio em 1992, mas embora a
guerra tivesse acabado, havia armas por todo o lado. O maior desafio que se pôs
a Moçambique foi a destruição de milhões de armas e refazer a vida dos antigos
soldados e das suas famílias.
O Trono de Armas tornou-se um elemento
inspirador neste processo de recuperação. Fez parte de um projeto de paz
chamado “transformar armas em ferramentas”, e no qual as armas usadas pelos
dois lados eram entregues em troca de amnistia e ferramentas úteis, como
enxadas, máquinas de costura, bicicletas e material para telhados. Entregar as
armas era um ato de verdadeira bravura por parte destes antigos combatentes e
teve projeção em todo o país, pois ajudou a romper o apego pelas armas e pela
cultura de violência que atingira Moçambique durante tantos anos. Desde o
início do projeto, mais de 600 mil armas foram entregues e transformadas em
algumas esculturas. Graça Machel patrocinou o projeto que tinha o objetivo de
“retirar os instrumentos de morte das mãos dos jovens e dar-lhes uma
oportunidade de desenvolverem uma vida produtiva”.
Este trono, patente no Museu Britânico, foi
criado por um artista moçambicano de nome Kester. Escolheu fazer uma cadeira e
chamou-lhe trono, são raras nas sociedades tradicionais africanas, estão
reservadas aos chefes tribais, príncipes e reis. O peso alegórico é inequívoco:
é um trono em que ninguém se vai sentar, não está destinado a uma realeza ou a
um senhor do mando, é a expressão de um espírito do novo Moçambique, é um marco
da reconciliação. Como escreve MacGregor, há algo de particularmente
perturbador numa cadeira feita com armas concebidas especificamente para matar,
mutilar, anular. Kester deu uma explicação: “Não fui afetado diretamente pela
guerra civil, mas tenho dois parentes que perderam as pernas. Um pisou uma mina
e perdeu a perna, e o outro, um primo, perdeu uma perna a lutar pela FRELIMO”.
Kester fez deste trono uma mensagem de
esperança. “Dois canos de espingarda formam as costas da cadeira. Se olharmos
com atenção parecem ter caras, dois orifícios de parafusos para os olhos e uma
ranhura para a boca. Até parecem estar a sorrir. Foi um acidente visual que
Kester aproveitou e decidiu incorporar na peça, negando às armas o seu
propósito primário e dando à obra de arte um forte sentido: “Não esculpi o
sorriso, faz parte da coronha da espingarda. Aproveitei os orifícios de
parafuso e a ranhura onde se fixava a bandoleira. Escolhi as armas mais
expressivas. No cimo podemos ver uma cara sorridente. E há outra cara
sorridente: a outra coronha. Parecem estar a sorrir uma para a outra felizes
para paz e liberdade que chegou”.
No seu todo, este original livro que nos conduz
da África de há dois milhões de anos para a aurora do século XXI, dotado de uma
escrita admirável e estimulante, é verdadeiramente uma História do mundo. Uma
leitura imperdível, onde um Trono de Armas põe um antigo combatente, como eu, a
pensar como devemos contribuir para recordar os horrores da guerra ao serviço
da reconciliação dos homens, naquelas parcelas africanas onde combatemos.
Mário Beja Santos
Imagens de cadeira feita com peças de armas, Maputo, Moçambique, peça no Museu Britânico
Uma cadeira feita com sábia criatividade e competência. Decerto que o livro será muito interessante de ver e ler
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Uma semana feliz …cumprimentos
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Pensamentos e Devaneios Poéticos
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