Foi com o maior gosto e enorme honra
que aceitei o convite para aqui estar hoje, na Torre do Tombo, cujo director e
meu velho amigo Silvestre Lacerda saúdo muito calorosamente, bem como todos os
presentes.
Devo ainda esclarecer, desde já, que
não é nada fácil apresentar uma obra com estas características e que esta foi
das apresentações de livros que mais dificuldades tive em preparar, seja pela
natureza desta edição, seja, sobretudo, porque sou um modesto e muito
intermitente historiador do Estado Novo e muitas outras pessoas poderiam, muito
melhor do que eu, falar do significado extraordinário da edição destes
«diários» de Oliveira Salazar.
Assim, só a amiga benevolência da
organizadora – quase se diria, da autora destes Diário –, a Drª Madalena
Garcia, com a cumplicidade sempre discreta de Silvestre Lacerda, explicam a
minha presença aqui hoje.
Penso que a razão da escolha não
decorre de eu ser um especial estudioso deste período ou um conhecedor profundo
dos «diários» de Salazar, mas tão-só da circunstância de ter tido alguma
intervenção, de resto bem reduzida e modesta, para que esta obra visse a luz do
dia.
Há alguns anos – ao certo não sei quantos,
pois, ao contrário do doutor Salazar, não mantenho metodicamente um diário
daquilo que faço – o Silvestre Lacerda e a Madalena Garcia contactaram-me para
que, como a todos nos parecia óbvio, esta obra fosse editada em livro.
Dada a sua invulgar dimensão, mas
também a sua extraordinária importância do ponto de vista historiográfico para
o estudo do Estado Novo, pareceu-nos que uma editora comercial, por razões mais
do que evidentes, não estaria interessada num projecto desta envergadura e
desta natureza, como ele se afigurava quase óbvio, assim pensámos, para uma
instituição como a Imprensa Nacional-Casa da Moeda, que tem por missão publicar
e editar obras essenciais da língua, da história e da cultura portuguesas.
No entanto, e após um frutuoso
contacto estabelecido com o Director de Edições da INCM, fomos informados da
surpreendente decisão de que o conselho editorial da INCM considerara que a
edição destes «diários», uma das fontes primordiais de consulta para a
compreensão do século XX português, não era merecedora da chancela da imprensa
do Estado.
Perdoem-me a deselegância de recordar
ou revelar as vicissitudes desta obra, mas, já que falamos da História, a
história deste livro, deste ebook,
merece ser conhecida, pelo que revela, a um tempo, da ignorância e da incultura
de alguns e da sabedoria e do sentido cultural de uma empresa privada, a Porto
Editora, que abraçou e apoiou este projecto.
Trata-se de um caso exemplar em que,
lá onde o Estado falha, por tibieza ou incultura, o serviço público acaba por
ser exercido – e muito bem – por uma empresa comercial privada.
Por isso, é justo, é mais do que
justo, que neste dia se sublinhe e enalteça também o papel que os responsáveis
da Porto Editora tiveram no lançamento de um ebook em que se transcrevem os «diários» de António de Oliveira
Salazar de 1933 a 1968.
Alguns, mais incautos, talvez se
interroguem sobre que sentido faz editar em versão exclusivamente online um documento que já está e
continua disponível também online na
página da Internet do Arquivo da Torre do Tombo.
Aos que assim pensam, bastará mostrar
as duas versões, a original, manuscrita por Salazar, e a que agora temos, fruto
da beneditina paciência de Madalena Garcia. Devido à caligrafia «diabólica» de
Oliveira Salazar (a expressão é de Marcello Caetano, ou de Gonçalves Cerejeira,
creio eu), os «diários» são praticamente ilegíveis e, por isso, não é exagero
dizer-se que só agora, a partir de hoje, temos uma versão fidedigna deste
documento, a qual surge, ademais, acompanhada de um conjunto de notas
contextualizadoras e de um índice onomástico que tornam esta obra,
inquestionavelmente, uma das fontes mais importantes que existem para a
historiografia do salazarismo.
O trabalho feito é de uma dimensão
colossal, assombrosa, pois estamos perante 72 cadernos, correspondentes a 35
anos, de 1933 a 1968, o que perfaz 13 mil dias, mais de 20 mil páginas, um
total de 9,3 milhões de caracteres, contas feitas pela jornalista Bárbara Reis
num extenso e aprofundado artigo que dedicou ao assunto, no Público do passado dia 21 de Novembro.
A obra tem, pois, quase duas autorias
– a de António de Oliveira Salazar e a de Madalena Garcia –, a que correspondem
outros tantos mistérios, que são os de saber o que levou o ditador a manter um
registo tão rigoroso dos seus trabalhos e dias, sobre que falarei adiante, e o
que levou uma arquivista distinta a dedicar tantos dias da sua vida a um
trabalho destes. Não foi Madalena Garcia quem registou as horas das reuniões ou
apontou o nome dos ministros, mas foi ela quem no-los deu a conhecer, sendo
esta obra sua, inteiramente sua, por direito justo e mais que legítimo.
É que, entre o mais, um ponto que
merece ser realçado é o facto de todo este trabalho, ciclópico e inimaginável,
ter sido desenvolvido por uma só pessoa e, mais ainda, por uma só pessoa
naquilo a que Elizabeth Cady Stanton chamou, num texto deslumbrante, «a solitude of the self», a «solidão do
eu», «a solidão de si mesmo».
Dificilmente poderia ter sido doutra
forma, atentas as dificuldades de pessoal nas instituições culturais do Estado,
que certamente impediram que se constituísse uma equipa para tratar os
«diários» de Salazar. Mas ainda bem que assim foi, ainda bem que existiu alguém
com a tenacidade e a dedicação de Madalena Garcia, pois um trabalho destes,
feito a várias mãos, talvez não tivesse a impecável coerência de que este se
reveste.
Oferece assim dizer-se, sem margem
para dúvidas, que, da mesma forma que uma editora privada supriu as lacunas e a
ignorância de uma instituição pública e deu à estampa este livro, uma
funcionária pública exemplar, com um esforço tremendo, uma paciência inaudita,
colmatou as dificuldades organizativas e de pessoal com que uma grande
instituição pública como a Torre do Tombo se debate – e que só o heroísmo dos
seus funcionários e do seu director permite manter o nível de excelência com
que tem servido Portugal e a sua memória.
É bem singular o ofício de arquivista,
e para o compreender, tentando desvendar, antes do «mistério Salazar», o
«mistério Madalena Garcia», socorro-me de um texto hoje convertido em clássico,
Le goût de l’archive, da historiadora
Arlette Farge, que nos recorda a analogia, que sempre fazemos, entre os
arquivos e os fenómenos e os fluxos naturais, como as montanhas, as avalanchas,
as inundações, as marés dos equinócios, que tudo submergem à sua passagem. Compare-se
com a forma muito menos «naturalística», digamos, com que nos referimos a
«estradas de informação» ou a «autoestradas digitais».
Daí
que os que lidam com arquivos usem também, às vezes em termos metafóricos,
outros bem autênticos, imagens como «mergulhar nos arquivos», «estar submerso
numa montanha de papéis», «afundar-se nos arquivos», «navegar nos arquivos», «descer
aos arquivos» ou «explorar os arquivos». Fala-se também dos «fundos
arquivísticos», como cavernas ou baixios no meio do oceano, em «massas
documentais», em «florestas» ou «selvas» de papéis, que têm um mistério
próprio, singularíssimo, que não se confunde com o das bibliotecas, que remetem
para outra forma de gigantismo, ainda que, por vezes, as bibliotecas, de pouco
conhecidas ou usadas, se comecem a aproximar de um arquivo. Em ambos casos,
utiliza-se a metáfora do sistema métrico e medem-se as massas de papéis e de
livros em metros, em quilómetros, tais são as necessidades espaciais para
arrumar um espólio como o de Oliveira Salazar, com 1300 caixas e mais de um
milhão de documentos.
Os arquivos são brechas na tessitura
dos dias, uma janela para o passado, «l’aperçu tendu d’un événement inattendu»,
que nos permitem vislumbrar alguns instantes da vida de pessoas vulgares ou,
como sucede no caso destes «diários», de pessoas não tão vulgares assim.
Lemo-los como uma narrativa, imaginando o antes e o depois do facto relatado e
arquivado, e, mesmo no caso destes apontamentos do Presidente do Conselho, tão
frios, tão burocráticos, tão «formulaicos», como lhes chamou Filipe Ribeiro de
Menezes, é impossível não os percorrermos sem imaginarmos como seria o
dia-a-dia de Salazar, como terá sido o encontro com o ministro A ou o cardeal B,
de que conversaram antes ou depois das coisas sérias, em que local se reuniram,
tudo enfim aquilo que dá cor e vida a estas feuilles
mortes, como diria Prévert.
O que os documentos nos dão são
«pedaços de verdade» e às vezes nem isso, ainda que, no caso presente, a verdade
seja total, pois estes «diários» são pura e integralmente factuais. Tudo o que
aqui se relata ocorreu, ocorreu mesmo,
não havendo aqui o mínimo espaço para controvérsia ou leituras divergentes, já
que nestes «diários» não se fazem observações pessoais ou interpretações
subjectivas, considerações à margem, anotações pessoais. E surpreende ainda
mais a constância e a disciplina: ao longo de 36 anos, o estilo e o propósito
destes «diários» não se afastou um milímetro, os de 1968 são iguais aos de 1933
e em momento algum, ao longo de tantas décadas, Salazar decidiu alterar o
formato definido nos anos trinta e nunca, em circunstância alguma, cedeu à
tentação, mais do que natural e humana, de rabiscar uma nota aqui, escrever uma
palavra irónica ou cáustica acolá, dar a sua opinião sobre um interlocutor ou
sobre um acontecimento. Num certo sentido, e em contraste com os ditadores
ruidosos, estes «diários» surpreendem pelo silêncio, pela quietude, pelo rigor
burocrático, pela disciplina quotidiana inquebrável, que terá levado Cerejeira
a dizer a Salazar, ainda no tempo dos Grilos, que ele era um animal de hábitos, antes de tudo o
mais.
A sua habitualidade e a regularidade ficam
aqui atestadas e, já agora, também outro tópico curioso: como refere Arlette
Farge, o arquivo, ou o documento arquivado, miniaturiza o objecto histórico, é
um «pedaço da verdade», mas apenas um pedaço. Pode dar-nos a dimensão e a
escala de um grande processo ou de um grande movimento, desde a 2ª Guerra
Mundial à guerra de África, ou a edificação do regime, mas fá-lo isolando
factos extremamente localizados e circunscritos. Neste caso, a audiência
concedida à personalidade A ou B, e sobretudo a maior frequência dessas
reuniões, permitem-nos inferir o pano de fundo em que elas se desenrolavam.
Haverá muitos casos, é certo, até por se tratarem em várias situações de
encontros meramente protocolares ou de cortesia, esta ligação a um facto
histórico mais vasto torna-se difícil de descortinar. Noutras situações, porém,
ela é evidente – e permite até, se cruzada com outros lugares do arquivo
(nomeadamente, com a correspondência de e para Salazar), reconstituir com muito
mais fidedignidade um processo histórico mais vasto. O que aqui temos é do
domínio do ínfimo, do microscópico, mas, por exemplo, e apenas para falar de um
caso que conheço bem, o «diário» permite reconstruir de uma forma muito mais
próxima e mais fidedigna o processo de elaboração da Constituição de 1933,
levando a concluir, por exemplo, que Domingos Fezas Vital teve um papel muito
mais relevante do que o de Quirino de Jesus, que
O gosto dos arquivos, nota Arlette
Farge, é o gosto da errância pelas palavras dos outros, do nomadismo pelo
verbo, a paixão de deambular pelo que o passado nos diz, sob a forma de
documentos, que foram arquivados justamente pela sua loquacidade, pela sua
aptidão discursiva. Um papel que nada diga, duas linhas anódinas, rasuradas,
não tem a capacidade de expressão verbal do que um documento detalhado,
pormenorizado, que descreva, até com colorido romanesco, uma qualquer situação
pretérita. O arquivo é, pois, o passado a falar para o presente e para o
futuro, mas a falar – curiosamente – sob forma escrita, documental ou outra. Na
maioria dos casos, sobretudo na documentação dita «oficial», coube ao passado
escolher aquilo que queria dizer ao futuro, guardando o que considerava
relevante, destruindo aquilo que entendia não ter valor ou que deveria ser silenciado
ou ocultado. Salazar poderia ter destruído os seus «diários» ou poderia ter
indo eliminando os «diários» dos anos mais recuados. Não o fez. E, se os
«diários» tinham, antes de mais, uma função de registo, um papel instrumental
na actividade governativa, como lembretes ou aides-mémoires do ditador, eles têm também essa dimensão de palavra
ou verbo guardado para o futuro. Oliveira Salazar, de resto, estava consciente
dessa dimensão e por mais de uma vez se referiu ao modo como o futuro iria
lidar com os seus papéis, papéis que, aliás, conservava.
Não significa isto que estes «diários»
sejam, digamos assim, «Salazar a falar para a História», missão reservada
sobretudo aos discursos e a outro tipo de intervenções. Ainda assim, o gesto de
fazer um registo tão minucioso e tão escrupuloso, tão absurdamente «notarial»,
se quisermos, tem um óbvio significado, político, histórico e pessoal. Há aqui
uma indisfarçável componente de «legado» ou «testamento», de marcação de um
quotidiano de trabalho, de incansável trabalho, para que a posteridade o julgasse
também a essa luz.
Note-se, para mais, que este não é um «diário
íntimo» e que, do ponto de vista pessoal, o mais que temos é o registo de idas
à missa, de férias na sua terra ou dos livros que se iam lendo. Sem se
configurar como um documento «oficial», o «diário», pela despersonalização que
procura, adquire um carácter a meio caminho entre o público e o privado. Do
domínio absolutamente público eram os discursos, os despachos, os decretos. Do
foro mais estritamente privado, alguma correspondência e apontamentos esparsos,
muitos dos quais guardados em pequeninas agendas, onde Salazar anotava as
dimensões dos tanques de pedra no Vimeiro, pequenas obras em curso na sua casa
ou na sua propriedade, gastos pessoais, acertos dos empréstimos que pedia ao
cónego Carneiro Mesquita. Estes «diários» não têm nada disso, adquirindo, pois,
um carácter quase «oficial». Poderiam ter sido redigidos, provavelmente, pelo
seu secretário particular (e foram-no, até dada altura) – mas o facto de ser
Salazar a fazê-lo, a ter querido ser ele a realizar este registo, tem também um
indiscutível significado histórico.
O esforço de quem estuda o salazarismo
encontra-se, muitas vezes, nesta necessidade de tornar visível o invisível,
tarefa sobremaneira difícil porque o ditador cultivou, como já foi notado num
conhecido ensaio de José Gil, a «retórica da invisibilidade» e, não raras
vezes, da ocultação. Mas, em simultâneo, guardou e conservou papéis, mais de um
milhão, como se quisesse falar apenas pós-morte, como se à invisibilidade que
cultivou em vida quisesse que se seguisse uma presença e até uma estridência
após a morte. E aqui sobressai outra dimensão relevantíssima destes «diários»:
eles são «totalizantes», se quisermos, no sentido em que eles mostram tudo aquilo que o ditador fazia. Podem
não dizer o que pensava, que opiniões tinha, matéria sobre a qual recaía a
invisibilidade e o silenciamento, mas, no que toca ao registo dos quotidianos,
são, por um lado, de extrema minúcia e exaustividade e, por outro, de grande
amplitude temporal.
Daí
que eles sejam um preciosíssimo auxiliar de consulta, para confirmar ou
infirmar dados provindos de outras fontes, mas sejam também um documento com
valor autónomo e próprio, não meramente instrumental, passível de estudos que
analisem, numa perspectiva diacrónica, flutuações no modo de trabalho, as
personalidades mais ouvidas num certo período e abandonadas noutro, os nomes
constantes, a saliência que o assunto A ou B teve no trabalho do chefe de
governo.
Os «diários» não têm, de forma alguma,
a loquacidade torrencial das Tischerspräche
de Adolf Hitler, os famosos monólogos do Führer
à mesa, recolhidos entre 1941 e 1944 por Martin Bormann e outros. Nas também
não são um puro averbamento de compromissos oficiais, como sucede com a Court Circular, o registo das actividades
da Coroa e da família real que, desde o reinado de Jorge III, o palácio de St.
James emite diariamente, sendo publicados – pelo menos até há uns anos, creio
que até aos anos 60 – na última página do Times.
Nos anos 50 – ou, melhor, por volta de
1957 – uma mãe e uma filha italianas, Amalia e Rosa Panvini, dedicaram-se a uma
tarefa trabalhosa: com grande afinco, forjaram trinta volumes de falsos diários
de Mussolini, que um perito e até o filho do ditador afiançaram serem
autênticos… E ainda há pouco, em 2007, o senador Marcello D’Utri anunciou a
sensacional descoberta de diários do Duce, de 1935 a 1939, como sempre envoltos
numa história rocambolesca: os diários teriam sido encontrados numa pasta
quando Mussolini foi preso por partisans
nas margens do Lago Como, e teria sido escondido por um dos partisans, estando agora à guarda de um
advogado da Suíça italiana. São falsos, naturalmente, escandalosamente falsos.
De Mussolini existe, isso, sim, um
diário da Primeira Guerra, autêntico e real, mas para não julgarmos que estas
historietas são tipicamente italianas podemos lembrar os famigerados «diários»
de Hitler, a fraude saída na revista Stern,
nos anos 1981 e 1983, autenticadas por um historiador eminente, Hugh-Trevor
Roper. Sobre isso, recomendo um livro fantástico, Selling Hitler, de Robert Harris, que depois se aventurou em
romances históricos de gosto duvidoso.
Estes «diários» não têm que ver com
nada disso, mas ainda assim suscitam interrogações, o «mistério de Salazar»,
como atrás referi, isto é, a razão pela qual o nosso ditador decidiu fazer este
registo e o manteve durante tantas décadas.
Tal não significa que tenha existido
um «programa» ou uma «intenção escondida» para tudo isto: era natural, mais do
que natural, que um homem extremamente metódico como Oliveira Salazar anotasse
os seus passos, todos os seus passos, públicos e privados (mas não íntimos).
Em todo o caso, há pontos que merecem
ser realçados:
1º - estes «diários» têm sido
impropriamente denominados como «agendas» e Madalena Garcia têm insistido neste
ponto, são «diários», não são «agendas», isto é, não são marcações de
compromissos a efectuar, são o registo de actos ou factos depois de estes terem
acontecido. Estes documentos não visam organizar a agenda de Salazar, visavam
registar, deixar para memória futura, reuniões já havidas, encontros tidos,
etc.
2º - estes «diários» não são, se
quisermos, um «filofax» onde Salazar apontasse tudo o que tinha feito ou que
iria fazer. Há uma certa selectividade no que se vai averbando, pois não estão
pensamentos, impressões, opiniões, encontros do foro mais privado, questões
marcadamente pessoais.
3º - os «diários», sendo em boa medida
«despersonalizados», são, ainda assim, muito pessoais, pois referem os tempos
de descanso, as vindas do cabeleireiro, os momentos dedicados aos jornais, os
convivas de almoços particulares.
Neste sentido, são os diários típicos
de um ditador, em que as dimensões pública e privada se confundem, em que tudo
o que é feito na esfera pessoal é ordenado ao que ocorre na esfera do Estado.
Explicando melhor: as ditaduras, antes de aprisionarem os cidadãos, aprisionam
e sequestram os seus protagonistas – os ditadores são, antes de mais, ditadores
de si próprios, no sentido em que todos os momentos da sua vida passam a estar
condicionados ao exercício de um poder que é político, decerto, mas também
pessoal. Os tempos de descanso, as férias e os fins-de-semana, tudo é ordenado,
ditatorialmente ordenado, ao exercício do poder e do mando. E se o poder é
concentrado numa pessoa, o governo de um Estado confunde-se com ela, levando a
ocorrer aquilo que as feministas americanas dos anos 70 diziam, the private is political. Também nos
ditadores, o privado é político ou, se quisermos, as esferas públicas e
privadas confundem-se e sobrepõem-se. Não por acaso, em As Origens do Totalitarismo, Hannah Arendt já havia observado que o
totalitarismo começa quando se começam a diluir as fronteiras entre público e
privado. No caso dos ditadores, essa diluição de fronteiras começa por eles
próprios. Por um lado, porque é frequente a narrativa de que sacrificam a sua
vida e as suas pessoas ao serviço da pátria, dizendo a propaganda que eles
«casam» com a sua pátria – há diversas intervenções de Salazar nesse sentido.
Por outro lado, porque as ditaduras e os ditadores invadem a esfera privada dos
cidadãos, não havendo nenhum sistema totalitário que se cinja a regular os
aspectos públicos, digamos assim; em todos eles, a família, as relações
amorosas e pessoais, o que se lê e não lê, os espaços domésticos são invadidos
pela imagem do ditador. Há um livro de fotografias muito interessante a este
propósito, Hitler dans mon salon, que
mostra o retrato de Hitler, qual Big
Brother, nos interiores das casas dos alemães.
Essa sobreposição público/privado é muito
nítida no caso deste «diário», onde no apontamento de um dado dia tanto
encontramos questões de Estado como apontamentos sobre almoços, passeios a pé,
leituras, idas à missa. É mais do que natural de que assim seja, pois o
«diário» é um registo autobiográfico que Salazar ia fazendo do que tinha sido o
seu dia.
Em
face disto, avulta, pois, o «mistério Salazar», que é o de saber o que o terá
levado a manter este registo tão minucioso e tão escrupuloso. Será impossível
responder a esta pergunta, mas um dado que merece realce é o seguinte: que eu
saiba, Salazar não manteve um «diário» deste género antes de assumir a chefia
do Governo. É certo que, quando ascende à presidência do Ministério, não
começou logo a elaborar o «diário», sendo também curioso notar que o mesmo se
inicia logo no 1º dia de Janeiro de 1933, talvez fruto de uma resolução de Ano
Novo.
Parece seguro que o «diário» não se
destinava a ser publicado, como parece seguro nunca ter sido intenção de Oliveira
Salazar servir-se dele para redigir memórias autobiográficas quando saísse do
poder, projecto que, ao que sei, Salazar nunca acalentou.
O que parece evidente é que a
concentração do poder na pessoa do Presidente do Conselho implicou, para
Salazar, uma acção de grande complexidade, transversal a todos os departamentos
do Estado.
Assim, o que nos «diários» avulta,
entre tantas coisas, é:
1 – uma concepção administrativa do
poder, no sentido em que, para Salazar, a política era essencialmente a governação
e que a governação era essencialmente a administração do Estado. A política não
era o confronto de projectos, partidos, facções ou grupos, parlamentos,
eleições. Era governar e governar era administrar.
2 – uma administração do Estado feita
a partir de papéis e de audiências bilaterais, em regime de «tête à tête». Não
vale a pena relembrar as ideias de Salazar sobre conselhos de ministros
ruidosos e com muita gente, a noção de que «dois já é conselho». Salazar tinha
momentos de despacho e momentos de conversa não com muitas mas geralmente, na
esmagadora maioria dos casos, com uma só pessoa – um amigo, um governante, um
diplomata, um alto funcionário civil, um general. O exercício do poder não era
dialógico mas conversacional, sendo essas conversas essenciais para que um
homem isolado como ele obtivesse informação do que ocorria «lá fora». Um modo
de exercício de poder moldado pela sua personalidade, concentrado no trabalho
de gabinete, à secretária, só poderia ser exercido com base no afluxo de informações
externas, feitas através de papéis ou de fontes humanas. Salazar confessara a
Cerejeira que aspirava ser primeiro-ministro de um monarca absoluta, e o que
estes «diários» mostram é a actividade de um monarca absoluto, que vai
recebendo os seus cortesãos para que estes lhe tragam queixas e gravames mas
também informações e notícias.
(seria
muito interessante que alguém um dia estudasse o Estado Novo na perspectiva da
sociedade de corte de Norbert Elias, pois estes «diários» revelam, até pela repetição
de nomes um grande paroquialismo da governação, mais do que a formação de um inner circle que se reunisse em
conjunto. Salazar tinha uma ideia de governação irradiada – abrir a mão – e
esse diário reflecte um pouco istso)
Perante tudo isto, a decisão de fazer
o «diário» não era muito surpreendente, tanto mais que esse género literário,
digamos assim, estava em voga na época. Há, portanto, e desde logo, a vanitas
própria de registar no papel o que ia fazendo, mas também a ideia de que o
tempo que se vivia e as funções que se desempenhavam, justificavam este tipo de
exercício. É sintomático que o chefe de gabinete de Salazar, Antero Leal
Marques, também tenha mantido um «diário», o qual foi publicado há anos por
Fátima Patriarca. Como é sintomático que Mário Figueiredo tenha feito um
«diário» aquando da crise dos sinos, que publiquei há anos com a Rita Almeida
de Carvalho e que depois desenvolvi num livro chamado Sons de Sinos.
Note-se, por outro lado, que o
«diário» era um instrumento de governação, no sentido em que, para o perfil
executivista de Salazar, seria certamente importante saber que no dia X tinha
abordado a questão Y com o ministro Z e que no dia A tinha estado ao telefone
com o embaixador B sobre o assunto C.
O registo serviria também como arma
política, se acaso fosse necessário para Salazar exibir ou mostrar que estava
ao corrente dos mais ínfimos assuntos de Estado, dizendo que abordara certa
questão na data x ou y.
Sendo, pois, impossível determinar com
absoluta certeza o que motivou a feitura destes «diários» eles surpreendem:
1 – pelo seu amplo espectro temporal;
2 – por não terem hiatos nem falhas;
3 – pela revelação de um método de
trabalho que fascina pela regularidade quase monástica, com o início da jornada
laboral pelas 10 da manhã até às 11, 11 e meia da noite; um grande espaço
dedicado ao despacho, demonstrativo desta noção administrativa de exercício do
poder; e um uso muito abundante do telefone. São raros os encontros de trabalho
com mais de uma pessoa e, como seria de esperar, o parlamento quase nunca
aparece.
É
também sintomático que, até 1939, os «diários» tenham sido redigidos pela sua
secretária, Emília Adelaide Ferreira, e depois pelo próprio Salazar, não tendo
eu a certeza se com essa mudança se nota alguma alteração no estilo das
entradas e no aumento de referências de cariz pessoal.
E é ainda sintomático que, como
«animal de hábitos», os 72 cadernos sejam todos iguais, do mesmo tamanho A5 e
comprados na mesma loja.
Mas tudo indicia que, como refere
Fernando Rosas, estes «diários» não tenham sido escritos para a História, ainda
que, quanto a mim, eles sejam mais do que um mero instrumento de trabalho. Eram
– e daí o seu extraordinário valor documental e historiográfico – o repositório
de tudo quanto Salazar fazia, um relato minucioso do seu dia-a-dia público e
privado, ou, melhor dito, do modo privado como exercia funções públicas.
Do ponto de vista historiográfico, os
profissionais do ofício já referiram diversos pontos em que estes diários são
importantes; a importância de Cerejeira, sobretudo até aos anos 40; a presença
de Duarte Pacheco e a omnipresença de Bissaia Barreto; a Concordata; a adesão à
NATO; a relevância de Emília Ferreira; os ventos descolonizadores.
Caberá agora a cada historiador saber aproveitar este extraordinário manancial de informação e cotejá-lo com a correspondência e outros documentos para confirmar ou infirmar as suas opiniões. Num certo sentido, os diários serão para os historiadores aquilo que foram para Salazar, um instrumento auxiliar de trabalho, não o cerne do seu trabalho.
Existe, no entanto, um ponto mais
amplo para no qual os diários podem ser o fulcro de uma investigação e para o
qual tenho modestamente procurado chamar a atenção: durante anos, e muito
compreensivelmente, a historiografia do Estado Novo esteve dominada pelo
paradigma da «resistência», sublinhando-se os aspectos mais violentos e mais
óbvios de dominação, a PIDE, as torturas, a censura, etc. Até por razões
políticas, pois isso interessava como forma de legitimação no pós-25 de Abril,
sobretudo para forças como o PCP, mas também o PS, a ideia de «Portugal
amordaçado» foi hegemónica. Aos poucos, porém, fruto de investigação no arquivo
Salazar, começou a ser publicada correspondência de Salazar com os seus
ministros – e Fernando Rosas teve um papel central nessa abordagem – e
começaram a ser estudadas as elites do Estado Novo e o seu processo de decisão
– e aí António Costa Pinto iniciou uma linha de pesquisa extremamente frutuosa.
No entanto, e quem conhece minimamente
o Arquivo Salazar poderá confirmá-lo, houve uma forma de dominação mais subtil,
mais silenciosa mas nem por isso menos eficaz: a gestão das cunhas, dos
pedidos, dos empenhos, dos favores como forma de disciplinar os próximos e
criar uma rede de fidelidades que depois se estendia a todo o país.
Não se trata de opor esta ideia de
domínio subtil à ideia de domínio violento, pois ambos conviveram e, por isso,
não se trata de nenhuma forma de branqueamento da ditadura. Trata-se, isso sim,
de percebermos que os favores – desde o general colocado num conselho de
administração ao funcionário das alfândegas que colocava um sobrinho vindo da
terra – foram um instrumento usado de forma muito mais ampla e sistemática, ao
passo que as prisões e as torturas se dirigiam a uma minoria de resistentes,
mesmo que a sua mensagem atemorizadora acabasse por envolver a sociedade como
um todo.
Se virmos a correspondência de
professores de Direito para Salazar, se consultarmos o Arquivo de Américo Tomás
na Presidência da República, notaremos a importância deste instrumento de
domínio através da cunha, o qual se quadrava muito mais no espírito de
sociedade de corte do salazarismo e tinha a vantagem de implicar uma
circunscrição da violência a casos marginais e pontuais, de modo a não provocar
clamor entre os portugueses. Lembre-se, por exemplo, que certas mortes na PIDE
criaram comoção na mulher do embaixador brasileiro Álvaro Lins e em Cerejeira.
Por muito paradoxal que pareça – e peço que compreendam o alcance das minhas
palavras – o regime durou 48 anos não porque tenha usado muita violência mas
precisamente o contrário, porque criou as condições para não ter de usar a
violência, a violência física, de forma sistemática e indiscriminada.
A violência era, assim, muito mais
potencial, sob a forma de ameaça e de medo, e, a par dela, num país pobre e
periférico, sempre encostado ao Estado, os favores, os compadrios, as cunhas,
os pequenos gestos de fidelização tiveram papel nuclear, como em tempos se
apercebeu Raul Rego, ao dar à estampa um opúsculo de denúncia intitulado Os Políticos e o Poder Económico.
Repare-se, aliás, que esta linha de
investigação, para a qual os diários podem dar um contributo precioso, fundamental,
permitirá, se não destruir, pelo menos pôr em causa outro mito, o mito da
incorruptibilidade do Estado Novo. E penso até, se me permitem, que num combate
político aos nostálgicos do salazarismo a demonstração de que o regime era
minado por cunhas e compadrios é muito mais eficaz do que a insistência na
ideia de tirania que vitimou milhões, até porque os números das vítimas
directas da ditadura não são particularmente expressivos – temos de o
reconhecer – sobretudo no confronto com outros regimes ditatoriais do século
XX.
Haveria ainda outra linha que me
pareceria interessante explorar, ainda que esteja menos em conexão com esta,
que é a do que eu chamaria a «burguesia do salazarismo», não apenas a alta mas
sobretudo a média burguesia. Quem foi o substracto social de apoio do regime?
Quem foram as pessoas que tiveram um processo de ascensão social ao longo dos
seus 48 anos? Quem teve uma melhoria sensível das condições de vida? Quem veio
da pobreza imerecida no mundo rural, para usar uma expressão célebre do bispo
do Porto, para os meios urbanos? Temo-nos preocupado muito em saber quem foram
os resistentes ao salazarismo mas, estranhamente, espantosamente, não há um
único estudo sobre quem foram os seus apoiantes, activos e passivos, os willing executioners, para usar o título
de um conhecido livro sobre os alemães e o Holocausto, ou, se quisermos, os
beneficiários de Salazar, também para usarmos o título de outro livro, o estudo
com que Götz Ali analisou «O Estado Popular de Hitler».
Tendo tentado, sem sucesso,
descortinar o «mistério Salazar», o que o teria levado a redigir estes diários
– e era esse o nome que lhe dava, não o de «agendas» - resta-nos o «mistério
Madalena Garcia», o que terá levado alguém a dedicar os seus trabalhos e dias,
como diria o grego Hesíodo, a tão ciclópica tarefa.
Permitam-me que refira de novo a obra de Arlette Farge, O gosto do arquivo, que diz, a dado
passo, que os arquivos impõem uma contradição: ao mesmo tempo que nos invadem e
submergem com vozes pretéritas – vozes do
silêncio, diria eu, evocando Malraux – ao mesmo tempo que nos trazem tanta
gente morta ao nosso convívio, os arquivos transportam-nos, pela sua desmesura,
à solidão profunda e, mais do que isso, a um exercício de enorme contenção.
Daqui emerge uma tensão enorme entre a
paixão para tudo ler, conhecer tudo, abraçar tudo quanto um arquivo diz, e a
razão, que impõe o bom senso e a humildade.
O trabalho do arquivista, de um grande
arquivista como Madalena Garcia, é um trabalho de extrema paciência, mas de
meticulosa racionalidade e é, sobretudo, um trabalho de assombrosa humildade.
Num tempo obcecado pelos protagonismos e pelas vaidades, em que todos se
acotovelam por segundos de fama nas televisões ou nas redes sociais, a
humildade de Madalena Garcia tem o perfume raro dos grandes gestos, gestos que
nos devolvem um módico de esperança na atormentada condição humana.
Ainda há dias, quando foi noticiado o
lançamento de uma obra a que dedicou anos de vida, com uma disciplina rigorosa
que a fazia trabalhar diariamente, anos a fio, das 8 da manhã às 4 da tarde,
ainda há dias, dizia, resistiu a falar de si e a ser fotografada.
Com a mesma discrição e humildade,
vincou na entrevista ao Público que o seu trabalho não era o de um historiador,
mas o de um arquivista, aquele que pavimenta o caminho para que os
historiadores o trilhem, aquele que à terra lança as sementes cujos frutos
outros irão colher.
Para fazer um trabalho destes é
necessária uma personalidade muito especial, singularíssima, sendo para um
mistério como é que alguém dedica tantos anos da vida, tantas horas dos seus
dias, a uma tarefa destas, nas raias da obsessão.
Há, sem dúvida, um exemplar sentido de
serviço público em tudo isto, mas o facto de Madalena Garcia ter prosseguido
este trabalho já depois de aposentada mostra que havia aqui algo de mais
pessoal. Não foi por ser uma funcionária pública exemplar que Madalena Garcia
cumpriu esta tarefa, foi porque se envolveu nela como uma missão de vida, não
sendo por acaso que confidenciou a Bárbara Reis que tinha o receio – o
infundado receio – de não cumprir este trabalho até ao fim.
Imagino e pressinto que, por mais que
tenham sido as canseiras, tudo isto lhe deve ter dado um enorme gozo, o
micro-prazer do labor artesanal, oficial, de um relojoeiro solitário como a
personagem de uma banda desenhada de François Schuitten e Benoit Peeters, L’Archiviste.
Não sendo este um trabalho de
historiador, importa todavia dizer o seguinte: o presente contributo de
Madalena Garcia para a historiografia do Estado Novo é muito mais sólido e será
muito mais perene e mais duradouro do que a esmagadora maioria das «teses» que
a academia vai produzindo sobre o Estado Novo.
Para
um arquivista, alguém que está habituado a lidar e a enfrentar a usura do
tempo, saber que o seu trabalho será perene, perdurará por décadas, é, creio
eu, motivo de extremo regozijo, razão de infinda alegria.
Cabe-nos hoje partilharmos com
Madalena Garcia essa alegria, a satisfação de uma vida, na certeza de que, por
mais no que nos esforcemos, nunca seremos capazes de desvendar por inteiro o
seu enigma, o mistério que a levou, durante anos, a fazer o trabalho que agora
saudamos.
Muito obrigado.
António Araújo
Mais um excelente texto, António. Testemunhei desde o início dos anos 80 do século passado a competência e dedicação da minha amiga e colega Madalena Garcia a este projecto. Ela merece o reconhecimento público. E alegra-me que tenha sido o António o escolhido para a apresentação da obra.
ResponderEliminarObrigado, amizade sua!
ResponderEliminarA.
Desejamos um Feliz Natal para si e família, com amizade.
ResponderEliminarBoas Festas!
Paula e Rui Lima