domingo, 18 de fevereiro de 2024

Carta de Bruxelas.




 

                                                                                                    Dois em um

 


O antigo Primeiro-Ministro holandês, Dries van Agt morreu por eutanásia, acompanhado da sua mulher, Eugenie, num casamento de sete décadas. As reações afinaram pelo mesmo diapasão: tão bonito, acabar a vida assim, de mãos dadas com quem se ama – o pormenor que encantou o mundo. O derradeiro acto que coroa uma vida, com um adeus a dois.

A morte liga-se directamente ao kitsch, tal como o amor. Por razões de fundo.  Tratando-se das desestabilizações existenciais por excelência, cada uma delas dependendo da outra, conjuram inexoravelmente a transfiguração estética. Em vez do horror da decomposição do cadáver ou das cinzas, mais higiénicas, o corpo, sujeito às práticas estético-tantológicas, ironicamente retratadas por Evelyn Waugh n’ O Ente Querido, não mostra o nada que já é, torna-se uma aparência em negativo. Também o kitsch, basta lembra a provável etimologia do termo, pretende enganar. E com os mesmos objectivos: criar a aparência de uma harmonia inexistente, sossegar o pensamento, aferrolhar a imaginação.  A vida, porém, não é da ordem da estética. Avaliar uma vida esteticamente é cortar os laços do tempo antes do tempo. Só a vida dos mortos poderá ser bela. Para os Gregos de nenhum homem se podia dizer que era feliz antes de morrer. Enquanto o tempo corre, a vida pertence à vida, por mais que a morte brilhe como uma promessa; talvez por isso, no famoso poema de Dylan Thomas, são os adjectivos, ao introduzirem a nota da contradição, que fazem dele algo mais do que um apelo ou um pedido prosaico: do not go gentle into that good night. Fora do tempo, a vida pode revestir-se de um sentido estético, ser vista como uma obra de arte. Mas não no tempo, não enquanto for causa de sofrimento, não enquanto constituir uma interrogação para si mesma, não enquanto estiver ligada aos outros. Pode até suceder que seja necessário matar para que ninguém morra como numa obra de arte, para que o kitsch não se imponha, porque também ele pode ser assassino. Karen Blixen ilustrou modelarmente o problema em O Poeta, o último dos Sete Contos Góticos.

A pressão, às vezes sub-reptícia, às vezes insinuada, às vezes ostensiva, às vezes diáfana, a que são sujeitos os velhos, pela inutilidade, pelo estorvo, pelos custos, e sabe-se lá por que mais, fá-los interiorizarem o desvalor radical da sua vida. Há, ainda assim, uma consciência da verdade do negócio. Sabe-se bem o que se está a trocar. A fealdade moral da transacção não escapa a ninguém. Primeiro, foi o deslize lexical, falsamente moral – a eutanásia era uma morte digna – mantinha-se assim o horizonte do esforço e da superação, tanto no acto pessoal da escolha como na superação da resistência social que se associava à causa.

 Mas, agora, o kitsch à condenação acrescenta a mentira. Apesar das flutuações nos números, a prática da eutanásia a dois está a aumentar. Só é necessário que os velhos interiorizem como o momento será belo, para que o caminho fique desimpedido e suavemente se desapareça, quase sem morrer. Ser-lhes-á extorquido o acto a expensas da falsa consciência, a deles, tantas vezes debilitada, e a dos que ficam, que, além de se furtarem à má consciência moral, passam a dispor do plus de uma boa consciência estética: são os espectadores enternecidos da morte alheia.

De mãos dadas, tão bonitos! É o dois em um, e num duplo sentido.

 

                                                                João Tiago Proença


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