BRUXELAS
Como descrever Bruxelas? É uma cidade difícil de gostar à primeira, de
tal maneira é caótica e composta por muitas comunidades de estrangeiros.
Começarei com uma história curiosa, num dos parques da cidade, que tem o
nome de Passage Marguerite Yourcenar, a maior escritora que o país e o mundo
conheceram. Para mim, claro está. Numa manhã de Primavera, com tempo agradável,
ajudei uma senhora de idade a subir uma pequena escada para o jardim principal,
depois do referido passage (o parque
atrás da grande torre do Hotel Hilton). Tinha os cabelos todos brancos e um
cara doce, olhos azuis e feições muito belgas, com as pálpebras superiores
descaídas e as maçãs do rosto elevadas. E olhos azuis muito transparentes, como
a referida autora.
Em conversa, perguntei-lhe se conhecia a escritora Marguerite Yourcenar,
a famosa e consagrada do país. Em resposta, tive a seguinte boa surpresa: não
só a conheço, como sou prima direita dela. Sempre tinha morado numa das mais
antigas ruas de Bruxelas, a velha rue aux Laines, para onde dão as traseiras do
conservatório nacional, num bairro chamado Sablon.
Agora a senhora Jacqueline Stainier mora num lar de idosos na mesma rua.
Conversámos um bocadinho ali num banco de jardim e depois uma tarde uns meses
mais tarde, fui tomar um chá a casa dela, para falar com mais tempo.
Percebi então que a diferença de idades entre elas era de quase 40 anos,
pelo que só viu a escritora muito pequena, pouco antes de esta partir para os
EUA (Mount Desert Islands, Maine). Conhecia mais as histórias de família do que
as história da vida de prima Marguerite. Era demasiado nova. No dia do nosso encontro em casa dela,
conheci um vizinho muito simpático, que lhe tinha ido comprar cigarros. Era um
personagem, parecia um pouco perdido na vida, mas falava 7 línguas, entre as
quais o provençal, por ter nascido e vivido no sul da França.
Como é vastamente sabido, Bruxelas é uma cidade bilingue, o que aguça o
engenho dos designers gráficos na criação de posters que anunciam por exemplo o
Kunstenfestival des Arts, o mais emblemático. Ou seja, saber várias línguas
ajuda. As proximidades de origem e geográfica tornam o flamengo (neerlandês)
muito mais próximo do inglês que do francês. É uma língua que se aprende
facilmente por ter uma estrutura sintáctica com as facilidades do inglês, e
poucas das dificuldades sérias do alemão. Ali, na cidade e no país, dá jeito
saber algumas línguas. É verdade que a cidade é maioritariamente francófona,
mas há bairros do centro histórico e dos arredores nos quais o flamengo
predomina. Há alguns municípios (comunas) ao lado dos da cidade que preferem o
flamengo e têm, muitos, à entrada, uma placa que diz: 'município em que os
flamengos se sentem em casa' (waar
Vlamingen thuis zijn). Bruxelas tem 19 comunas, todas elas muito diferentes
umas das outras. Não existe uma linha mais uniforme como as famosas capitais de
Paris, Berlim ou Amesterdão.
A comuna em que vivi chama-se Schaerbeek, uma das maiores da cidade, na
zona nordeste, perto do aeroporto de Zaventem. Deste bairro parte o tram (eléctrico) n.º 92, que é um bom
passeio para primeiros visitantes. Parte de uma zona desta comuna assaz
empobrecida, passa pela comuna mais pobre de todo o país, passa depois pela
zona do alto da cidade onde está o Palácio da Justiça, acabando em St. Job, na
comuna mais chique de Uccle. Uma boa maneira de conhecer as grandes diferenças
da cidade e o caminho é longo.
Começa na praça do museu do comboio, um dos melhores de Bruxelas, para
quem aprecia este meio de transporte (é o meu caso). A entrada do museu é a
velha estação de Schaerbeeek, onde os comboios ainda passam. Trainworld é como
se chama.
Em termos de museus, Bruxelas tem vários e bons, e também casas-museus de
pintores e escultores do séc. XIX. Na zona conhecida por Mont des Arts, é
possível visitar o Museu das Belas Artes e o Museu Magritte. O primeiro tem uma
grande colecção da arte belga até ao século XVIII.
Recomendo sobretudo as primeiras salas, com belos quadros da arte
flamengo dos séculos XV e XVI, incluído o famoso Bruegel. Para quem gosta de
Magritte, o museu dispõe de um boa e vasta colecção.
Na capital da Bélgica, ouve-se muito árabe (magrebino, dado que o do
Levante é quase uma língua diferente, e este é um árabe muito mais duro e
agreste), turco, várias eslavas e também brasileiro (São Paulo e Nordeste).
Caso seja necessário, também se pode apanhar o metro, existente em todas as
capitais europeias. Com a diferença que o de Bruxelas é talvez o mais feio e
maltratado. As estações são velhas e pouco renovadas, os comboios são velhos e
sujos, começaram a ser substituídos por novos a partir de 2015. E a cobertura,
para uma grande cidade, situada entre Paris e Londres, é escassa. Só um
exemplo, a estação da Gare Central, no centro, como o nome indica, tem num dos
patamares das escadas que descem para o metro um monte de detritos que dão o
pior dos aspectos a quem as utiliza todos os os dias, ou só em visita.
Nesta cidade especial, há uma coisa a assinalar: a parte comercial do
centro antigo, a 'baixa' como diz a maior parte dos portugueses nela
residentes, é considerada perigosa e muito pouco frequentada pelos belgas da
'alta' da cidade, mais ricos e onde moram também a maioria dos funcionários
europeus, de toda a UE. A tal 'baixa' é uma zona porca e confusa. Um dos
últimos presidentes da Câmara Municipal de Bruxelas-cidade teve a ideia
peregrina de fazer a maior área pedonal da Europa, que suscitou uma grande reacção
zangada da maior parte dos comerciantes, que perderam grande parte da
clientela, os que vinham de fora da comuna. Restam os autocarros, metros e
eléctricos. E ficou arranjado sem grande graça, tudo maioritariamente cinzento
e não muito bem pensado. Aliás, o cinzento é a cor dominante em toda a cidade,
elemento estranho a um natural de Lisboa. Quando chove, é um verdadeiro poço
fundo, com sol fica um pouco mais leve...
Uma das coisas que mais custa a um lisboeta são estes vários tons de
cinzento presentes todo o ano e a ausência de um grande rio e do mar (a 100km).
Foi decidido tapar o rio Senne na zona do centro numas grandes obras que a
cidade sofreu nos anos 50. A intenção era fazer a ligação ferroviária
Norte-Centro-Sul da cidade. Para tanto, foi destruída grande parte do centro
mais antigo e a cidade mudou de rosto. Para pior, com muito cimento e muitas
torres de mau gosto. Ou seja, em Bruxelas não é fácil ver coisas do tempo de
Carlos V, imperador, que lá viveu. O que é, decididamente, uma grande pena.
Um dos aspectos bons que a cidade tem, além do belo património
arquitectónico de Victor Horta, o 'rei' da arte nova, é a oferta de
espectáculos de música clássica, dança contemporânea (sobretudo) e de música,
clássica e contemporânea. A oferta é rica e os artistas apresentados são bons.
Um excepção: o teatro. Poucas vezes vi qualquer coisa realmente de jeito. Com
excepção do Théâtre de Poche no Bois da la Cambre.
Para um grande apreciador de dança, Bruxelas é uma das capitais
europeias, ao lado de Paris, Londres, Frankfurt, Copenhaga ou Estocolmo.
Sobretudo a dança contemporânea, onde se estrearam e desenvolveram os bem
conhecidos nomes de Anne-Teresa de Keersmaeker e Wim Vandekeybus no Festival de
Klapstuk, na Flandres dos anos 90. Há, durante o ano, vários espectáculos que
valem a pena ver, em teatros normalmente bonitos e agradáveis, sobretudo em
pleno centro ou bairros limítrofes.
Para voltar à arte nova, visitar a cidade para ver o património deixado
pelos artistas da arte nova valerá a pena. Além do mais, é um centro urbano com
muito verde, muito pujante.
Para mostrar o que a cidade tem de pior, escolho três exemplos:
1.
O
assassínio de um jovem estudante da Escola Europeia (estrangeiro, portanto) por
causa de um telemóvel, em plena estação central, por um grupo de igualmente
jovens magrebinos.
2.
A
estação do Midi (sul) é um bom
exemplo dos contrastes vivos da cidade: r/c de acolhimento moderno, mas cais
velhos e decadentes. Um dos cinzeiros é um tubo de metal num caixote para lixo
seleccionado. Apaga-se um cigarro e a beata cai para o chão do cais porque o
tubo não tem tampa inferior, ou seja, o canal está aberto para o chão. Isto é
Bruxelas.
3.
À porta
de minha casa, no bairro de Schaerbeek, carros com grupos de jovenas adultos,
magrebinos ou turcos, comiam os seus pitta
dürüm, com o carro ligado por causa do frio exterior, e no final, com
caixotes (não um, mas vários) a poucos metros de distância, os restos, garrafas
de cerveja e papel engordurado eram depositados em frente à nossa porta. Abrir
as portas e deixar no meio do chão. Com quatro 'gandulos' dentro do carro, Deus
me livre de dizer qualquer coisa, ou protestar, porque as consequências são
facilmente previsíveis. Além de que a casa era antiga, com vidros arranjados,
mas ainda com frinxas, pelo que o cheiro dos escapes entrava em casa. Mais
palavras para quê?
Por último uma característica do povo belga: «Monsieur, je sais pas faire deux choses en même temps e Non, Monsieur, en Belgique on ne fait pas
comme ça» (senhor, não sei fazer duas coisas ao mesmo tempo; na Bélgica,
não fazemos assim).
Resta ainda dizer que Bruxelas é uma cidade em que as condições de vida e
os meios económicos das famílias são assustadoramente díspares. Uma comunidade
de habitantes de proveniências muito diferentes, todas no mesmo lugar
geográfico e a maior parte das vezes fechadas em guetos (quase).
Um último reparo. A maneira de conduzir revela a natureza do carácter
belga: pouco ousados e excessivamente prudentes. Aliás, actualmente, o limite
de velocidade no centro é de 30km/hora. De arrancar cabelos.
Faltou uma nota importante, que revela o modo de ser local: a única
cidade europeia que conheço em que a recolha de lixo se faz exactamente à hora
em que 'a malta' vai trabalhar ou pôr os miúdos à escola. Entre as 7.30 e as 9
da manhã!
Muitos elogiam a qualidade de live
and let live de Bruxelas. Não gosto, nunca gostei, sempre me desagradou e
até me incomodou...
Já preceberam: saí de Bruxelas e da Bélgica sem pena nenhuma. Até com
alívio. Vou continuar a trabalhar na Comissão Europeia no Luxemburgo, até à
reforma final. Na mesma Direcção-Geral da Tradução, onde comecei em 1999.
Uma última coisa é certa: as verdades são para se dizer.
Utilizando a frase citada do Urbano Tavares Rodrigues no início destes
textos, eu diria que a Bélgica e a sua gente são «amorfos», aborrecidos.
Luís Seabra
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