impulso!
100 discos de jazz para cativar os leigos e vencer os cépticos !
# 44, # 45, # 46 – MILES DAVIS
Fotografia de Jim Marshall, 1971
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Quem era aquele
rapazinho que, no inverno de 1944, todas as noites batia os clubes da rua 52 no
encalço de Charlie Parker? Um tal de Miles Davis…
Filho de um médico e de
uma professora, Miles Davis pertencia à ínfima classe média negra de St. Louis.
Esmerava-lhe a educação o estudo de música. Quando, na Primavera de 1944, a
orquestra de Billy Eckstine passou em digressão pela cidade, Miles fora um dos
jovens locais engajados para incorporar a banda, pelo que assistira do palco às
exibições de Dizzy Gillespie e Charlie Parker – teve uma epifania! A
custo convenceu o pai e a mãe a facultarem-lhe o ingresso na Juilliard School
de Nova Iorque, mas ao fim da primeira semana já havia gasto a mesada no rasto
de Charlie Parker, só para o ouvir, pedir conselho, aprender, suplicar-lhe uma
oportunidade. E ela acabou por chegar, quando Dizzy Gillespie se despediu de vez
de Bird, saturado com a sua insanidade.
Na tarimba de três anos
secundando Charlie Parker, a pulso Miles Davis foi fazendo a mão e evidenciando
protagonismo. Sentia-se, contudo, desconfortável nos sapatos de Dizzy; não
conseguia (nem queria) reproduzir o estilo atlético e estridente do bebop, esses vendavais de colcheias
agudas. Apartando-se de arrebatamentos virtuosistas, o seu trompete resvalava
para os registos médios, a inventar acordes requintados e tons aveludados.
The Complete Birth of the Cool
1949
(1998)
Capitol
Jazz / Blue Note 4945502
Miles
Davis (trompete); Kay Winding, J.J. Johnson, Mike Zwerin (trombone); Junior
Collins, Sandy Siegelstein (corne francês); Bill Barber (tuba); Lee Konitz
(saxophone alto); Gerry Mulligan (saxophone barítono); Al Haig, John Lewis
(piano); Joe Schulman, Nelson Boyd, Al McKibbon (contrabaixo); Max Roach, Kenny
Clarke (bateria); Kenny Hagood (voz)
Miles teceu entretanto
laços de amizade com Gil Evans, que atamancara como sala de ensaios o
seu enfezado apartamento de rés-do-chão. Evans era orquestrador da banda de
Claude Thornhill e experimentava dilatar a sua variedade tonal introduzindo o
corne francês e a tuba, dando-lhe uma coloração lustrosa, encorpada e menos
quente – mais cool, portanto. Colega
dele era Gerry Mulligan, prolixo compositor e dono e senhor – e assim
ficaria na história do jazz – do robusto saxofone barítono. Presença assídua
era ainda o pianista John Lewis, à época a fazer arranjos na orquestra de Dizzy
Gillespie.
Imagine-se um laboratório
de cientistas loucos, à imagem dos desenhos animados de então, em demanda da
pedra filosofal. Assim devem ter sido aqueles encontros: Mulligan e Evans
lançados na escrita e na orquestração dos temas, Miles escolhendo a dedo um
noneto de intérpretes – estranha formação deveras, no limbo entre uma orquestra
condensada e um combo clássico expandido. Foi também ele quem negociou os
concertos no recém-inaugurado clube Royal Roost, que trasladara o jazz para
junto da boémia de Greenwich Village, e ditou o cartaz: “Miles Davis Band,
arranjos de Gerry Mulligan, Gil Evans e John Lewis.”
A formação nunca mais
haveria de tocar ao vivo além daqueles 15 dias, não tão sensacionais quanto o
almejado, embora suficientes para firmar um contrato de 12 composições com a
Capitol. Três vezes o noneto se reuniu em estúdio (Janeiro e Abril de 1949 e
Março de 1950), três vezes se alterou a sua composição. É sabido que as sessões
decorreram debaixo de alguma tensão. Depois da morte de Miles, Gerry Mulligan
acabaria por confessar a sua amargura por não lhe ter sido devidamente
creditada a sua autoria musical.
À maneira comercial da época,
os temas foram ovos de ouro postos aos pares em singles de 78rpm, quase à saída de cada uma das gravações e ainda
hoje não é evidente o seu impacte imediato. A crítica recenseou ”that peculiar combination” com aplauso
mas indisfarçável estranheza e os músicos ficaram impressionados – tudo
resumido pelo insuspeito Count Basie: “Those slow things sounded strange and good.” Mas o público não se
excitou tremendamente com a novidade.
O disco “Birth of the Cool” é uma
compilação destas peças, editada em 1957. O seu título assevera, portanto,
aquilo que já se sabia e venerava. Agora percebia-se, como facto consumado, de
que nascente brotara a carreira que cada um dos seus intervenientes ia
tangendo. O cool tornara-se imprescindível
à estirpe beatnick de S. Francisco,
donde irradiou e fez escola por toda a Costa Oeste.
Ouvindo hoje “Birth of
the Cool”, e sabendo o que ele desencadeou, os compassos parecem bastante velozes
e ainda devedores do bebop. Apure-se,
porém, que as improvisações não desembestam em pirotecnias de banzar a
audiência, antes dançam em cima de um inusitado swing, clássico, sim, mas temperado pelos sopros de metal graves:
tuba, trombone e saxofone barítono. Isto já não era música para champagne borbulhante, mas para degustar
como um tinto velho.
Concluído o
empreendimento, Miles Davis virou de imediato as costas ao cool, e em 1957 desfrutava plena consagração com “The New Miles
Quintet” (1956), em que debuta um tímido John Coltrane, e com “Walkin’”
(1957) – andava à procura doutra coisa…
Kind of Blue
1959
(2009)
Sony
Music Distribution 88697439232
Miles
Davis (trompete); Julian “Cannonball” Adderley (saxophone alto); John Coltrane
(saxofone tenor); Bill Evans, Winton Kelly (piano); Paul Chambers
(contrabaixo); Jimmy Cobb (bateria)
O sexteto que em Março
de 1959 entrou em estúdio já se estava a desagregar. No Outono precedente consumara
um recital no faustoso Plaza Hotel de Nova Iorque que fora o talk of the town. As estrelas
alinharam-se na perfeição: o estilo harmónico de Coltrane equilibrava a veia de
blues de Julian “Cannonball” Adderley
e o piano de Bill Evans matizava-se com influxos de Ravel e Rachmaninoff.
Todos tinham ascendido ao planalto das suas carreiras, lideravam grupos e
publicavam em nome próprio – demasiados chefes tendem a disturbar a tribo... Quem
sabe se Paul Chambers e Jimmy Cobb pressentiram que nunca viriam a superar este
momento. Miles Davis não trouxe partituras, apenas um esboço geral das escalas
que gostaria que tocassem. “Kind of Blue” foi gravado em duas sessões com mais
de um mês de intervalo e apesar de todos os temas serem inéditos (uma novidade
na discografia de Miles) satisfizeram-se só com um take, à excepção de “Flamenco Sketches”. Foi quanto bastou para
definirem uma nova sintaxe de improvisação e provocarem a fusão do núcleo do
jazz. Os alicerces harmónicos do género determinavam que a composição se
explanasse numa progressão de acordes; o que Miles propunha era substituir esta
referência tonal por um desenvolvimento por escalas, com atenção aos intervalos
entre as notas. Assim se estabeleceu o “jazz modal”.
Correndo o risco de
superficialidade, dir-se-á que o segredo de “Kind of Blue” é a elegância, ou
seja, a vetusta simplicidade filosófica da navalha de Occam (pluralitas non est ponenda sine neccesitate”
ou seja: “a pluralidade não deve ser posta sem necessidade”). Desta música,
limpa de arestas ou espinhos, desprende-se um pathos introspetivo, quase melancólico, uma comoção afectuosa que é
imediatamente simpática ao ouvinte.
A trajectória do jazz
orientou-se de maneira a entronizar “Kind of Blue” no seu fulcro. Não é só entender
um antes e um depois da obra, é a sensação de o que lhe é anterior confluiu
nela e o que veio depois dardejou dela: perante o passado deslocou o eixo do swing e dos blues e dissipou os derradeiros resquícios do bebop, instaurando uma nova modernidade; para o futuro ficou como o
último instante ecuménico do jazz, antes das linhas de fuga – já incubadas em
1959 – assestarem para horizontes muito divergentes.
“Kind of Blue” é o
disco que toda (ou quase toda) a gente conhece, não só de Miles Davis mas do
jazz – à volta do planeta ainda se vendem hoje 5000 exemplares por semana. Felizes
os que o ouvirem pela primeira vez!
Miles Davis tornara-se
num Príncipe – ou no Prince of Darkness
graças à sua linguagem profana, ao terrível feitio, aos caprichos de diva, à volubilidade
da heroína e da coca e à voz reduzida a um ronco, em consequência de uma
operação à garganta mal convalescida –, mas a realidade chamá-lo-ia de volta na
noite de 25 de Agosto de 1959, uma semana depois do lançamento de Kind of Blue,
quando veio à porta do Clube Birdland acompanhar uma encantadora mulher branca
até ao táxi. Um polícia de giro abespinhou-se com a cena multirracial e
rosnou-lhe: “Move on.” “Para onde?” Retorquiu Miles: “I’m working downstairs. That’s my name up there, Miles Davis.” Da
altercação ao espancamento foi um ápice; azar do agente que a ocorrência tenha
sido presenciada por cerca de 200 transeuntes indignados. Bem podia Miles Davis
ser uma estrela musical, possuir um Ferrari (branco, descapotável; depois teve,
pelo menos, um amarelo, um 275 GTB vermelho e um Testarossa prateado) e
intimidades com uma loura – em 1959, mesmo em Nova Iorque, um negro ainda era
um escarumba e tinha que ser posto no seu lugar.
Bitches Brew
1970
(2013)
Sony
Music Entertainment 6619735
Miles
Davis (trompete); Wayne Shorter (saxofone soprano); Bennie Maupin (clarinet
baixo); Joe Zawinul, Larry Young, Chick Corea (piano eléctrico); John
McLaughlin (guitarra); Dave Holland (contrabaixo); Harvey Brooks (baixo
eléctrico); Lenny White, Jack DeJohnette (bacteria); Don Alias (bateria, congas,
percussão); Jumma Santos, Jim Riley, Airto Moreira (percussão)
Em 1968, com 43 anos, Miles
Davis receou que o tomassem por uma figura venerável, caída na auto-paródia, a
reproduzir até à náusea os velhos êxitos, sobretudo quando a música popular
rodopiava num vórtice de transformações (foram muito divulgados os seus
remoques a Jimi Hendrix e Sly Stone). Soltou então os demónios com “Miles in
the Sky”. Retrucando ao free de
Ornette Coleman, que ele detestava, e à evolução de Coltrane nessa direcção, Miles
divide as águas electrificando o jazz. Um ano e meio e três discos depois surge
“Bitches Brew”. Pelo caminho tinham ficado todos os anteriores músicos, excepto
Wayne Shorter. Nova revoada de jovens rodeava o trompetista: Chick
Corea, Jack Dejohnette, Dave Holland e John McLaughlin, com menos de
30 anos de idade, só Joe Zawinul perto dos 40 – o provir demonstraria que, mais
uma vez, o talento de “olheiro” de Miles se mostrara insuperável.
A feitura de “Bitches
Brew” gozou de condições técnicas belíssimas. A fita magnética era posta a
rolar e a gravação começava. A secção rítmica ia desdobrando as suas linhas
como um comboio imparável e os sopros entravam por cima, em trechos não muito
longos. Às vezes parecia uma jam session,
mas os músicos, conscientes das frases que interpretavam, não entendiam
inteiramente para onde aproavam, como numa conversa sem princípio nem fim, só
meio – no processo, a composição ia aparecendo. A intervenção do produtor Teo
Macero no resultado final é ineludível. Numa laboriosa operação de corte e
costura, no que se imprimiu em acetato coube todo o potencial da mesa de
montagem: câmaras de reverberação, loops
de pistas, efeitos de ecos, etc…
“Bitches Brew” contém
vitalidade suficiente para evitar ser hoje ouvido como relíquia de uma época,
mas a sua descarga de energia atinge predominantemente o lado esquerdo do
cérebro, o analítico. É um conjunto denso e fechado de erupções sonoras que,
isolados com uma pinça, revelam uma chama que não se apagou. A obra foi um
ponto simultaneamente culminante e seminal do jazz de fusão: em 1971 Wayne
Shorter e Joe Zawinul saíram daqui para formar os Weather Report e John
McLaughlin lideraria a Mahavishnu Orchestra; e em 72 Chick Corea estreou
Return to Forever.
Os puristas levaram as
mãos à cabeça. Numa altura em que o rock se apoderara da ribalta e se punha em
bicos dos pés, armado em sinfónico, Miles Davis franqueava a cidadela do jazz à
sua batida rítmica simplória e contaminara-o com uma parafernália contranatura
de sonoridades eléctricas. A controvérsia, na verdade, nunca cessou, o jazz de
fusão é que morreu de velho poucos anos depois.
Pode um homem perpetrar
três revoluções numa vida? Miles Davis conseguiu: o cool, o jazz modal e a
fusão – não teve paralelo no século XX.
José Navarro de Andrade
Tenho estes três do Miles Davis. Todos excelentes... mas o meu favorito é o «Bitches Brew».
ResponderEliminarExcelente crónica.
ResponderEliminarObvio que tenho estes (toda a gente os tem) mas há um que na sua história se tornou o meu disco de eleição, é o "Ascenseur Pour L'echafaud". O filme é soberbo e julgo saber que Miles improvisou a música vendo o filme.
Outro que está nos píncaros é "Get Up With It" que desperto por este artigo vou publicar no meu blog.
Cumprimentos.
«Toda a gente os tem»? Olhe que não, olhe que não... ;-)
EliminarObrigado.
EliminarO que eu queria dizer é que toda a gente que vem ler estes post, os tem.
E se não têm, vão a correr comprar depois de ler.
Abraço.
ponto de partida:Não possuo todos os dicos de jazz e nem sequer todos os discos de miles.Tenho um amigo que -era-dono de uma discoteca e provavelmente teria muitos milhares de discos.Ele confessava no entanto que não gostava de jazz.Acontece com livros tambem.
ResponderEliminarCompreendo que discos da fase eletrica são no mínimo obrigatorias na historia do jazz e na de Miles em particular.Eu não comungo -e não estou só e mesmo que estivesse era o mesmo-nessa barreira-de que devam estar incluidas nos melhores do jazz.Opiniões.Preferia mais um relaxin,Cookin,Workin etc.
O seu texto é MAGNIFICO não sei se é original ou se ja o tinha publicado.Penso e sobretudo dada a falta de textos em portugues sobre o assunto deveria publicar o conjunto das cronicas em livro.Ainda sou desse tempo.Reservo dez exemplares.Obrigado
Gostava de sugerir um livro.Miles Davis The complete ilustrated history.Voyageur press.Vale a pena.Fotos ,capas de discos etc etc
Caríssimos,
ResponderEliminarEle há mais Miles que fases da lua, que não trago aqui à colação. O primeiro quinteto (os discos saídos das duas sessões para a Prestige); O Miles com Gil Evans; o segundo quinteto depois do explosivo "Miles in Europe"; o Miles anos 80. A ideia foi reduzir o jazz a 100 discos exemplares e de Miles escolhi estes porque me parecem pontos de viragem. Por acaso, até nem sou grande fã da fase eléctrica, mas isso é uma discussão que ninguém ganha. Obrigado, muito, pelos vossos comentários. Para a semana: Bix Beiderbeck.