quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015





impulso!

100 discos de jazz para cativar os leigos e vencer os cépticos !




 
# 44, # 45, # 46 – MILES DAVIS





Fotografia de Jim Marshall, 1971





Quem era aquele rapazinho que, no inverno de 1944, todas as noites batia os clubes da rua 52 no encalço de Charlie Parker? Um tal de Miles Davis…
Filho de um médico e de uma professora, Miles Davis pertencia à ínfima classe média negra de St. Louis. Esmerava-lhe a educação o estudo de música. Quando, na Primavera de 1944, a orquestra de Billy Eckstine passou em digressão pela cidade, Miles fora um dos jovens locais engajados para incorporar a banda, pelo que assistira do palco às exibições de Dizzy Gillespie e Charlie Parker – teve uma epifania! A custo convenceu o pai e a mãe a facultarem-lhe o ingresso na Juilliard School de Nova Iorque, mas ao fim da primeira semana já havia gasto a mesada no rasto de Charlie Parker, só para o ouvir, pedir conselho, aprender, suplicar-lhe uma oportunidade. E ela acabou por chegar, quando Dizzy Gillespie se despediu de vez de Bird, saturado com a sua insanidade.
Na tarimba de três anos secundando Charlie Parker, a pulso Miles Davis foi fazendo a mão e evidenciando protagonismo. Sentia-se, contudo, desconfortável nos sapatos de Dizzy; não conseguia (nem queria) reproduzir o estilo atlético e estridente do bebop, esses vendavais de colcheias agudas. Apartando-se de arrebatamentos virtuosistas, o seu trompete resvalava para os registos médios, a inventar acordes requintados e tons aveludados.
 
 
 

The Complete Birth of the Cool
1949 (1998)
Capitol Jazz / Blue Note 4945502
Miles Davis (trompete); Kay Winding, J.J. Johnson, Mike Zwerin (trombone); Junior Collins, Sandy Siegelstein (corne francês); Bill Barber (tuba); Lee Konitz (saxophone alto); Gerry Mulligan (saxophone barítono); Al Haig, John Lewis (piano); Joe Schulman, Nelson Boyd, Al McKibbon (contrabaixo); Max Roach, Kenny Clarke (bateria); Kenny Hagood (voz)
 
 
Miles teceu entretanto laços de amizade com Gil Evans, que atamancara como sala de ensaios o seu enfezado apartamento de rés-do-chão. Evans era orquestrador da banda de Claude Thornhill e experimentava dilatar a sua variedade tonal introduzindo o corne francês e a tuba, dando-lhe uma coloração lustrosa, encorpada e menos quente – mais cool, portanto. Colega dele era Gerry Mulligan, prolixo compositor e dono e senhor – e assim ficaria na história do jazz – do robusto saxofone barítono. Presença assídua era ainda o pianista John Lewis, à época a fazer arranjos na orquestra de Dizzy Gillespie.
Imagine-se um laboratório de cientistas loucos, à imagem dos desenhos animados de então, em demanda da pedra filosofal. Assim devem ter sido aqueles encontros: Mulligan e Evans lançados na escrita e na orquestração dos temas, Miles escolhendo a dedo um noneto de intérpretes – estranha formação deveras, no limbo entre uma orquestra condensada e um combo clássico expandido. Foi também ele quem negociou os concertos no recém-inaugurado clube Royal Roost, que trasladara o jazz para junto da boémia de Greenwich Village, e ditou o cartaz: “Miles Davis Band, arranjos de Gerry Mulligan, Gil Evans e John Lewis.”
A formação nunca mais haveria de tocar ao vivo além daqueles 15 dias, não tão sensacionais quanto o almejado, embora suficientes para firmar um contrato de 12 composições com a Capitol. Três vezes o noneto se reuniu em estúdio (Janeiro e Abril de 1949 e Março de 1950), três vezes se alterou a sua composição. É sabido que as sessões decorreram debaixo de alguma tensão. Depois da morte de Miles, Gerry Mulligan acabaria por confessar a sua amargura por não lhe ter sido devidamente creditada a sua autoria musical.
À maneira comercial da época, os temas foram ovos de ouro postos aos pares em singles de 78rpm, quase à saída de cada uma das gravações e ainda hoje não é evidente o seu impacte imediato. A crítica recenseou ”that peculiar combination” com aplauso mas indisfarçável estranheza e os músicos ficaram impressionados – tudo resumido pelo insuspeito Count Basie: “Those slow things sounded strange and good.” Mas o público não se excitou tremendamente com a novidade.
O disco “Birth of the Cool” é uma compilação destas peças, editada em 1957. O seu título assevera, portanto, aquilo que já se sabia e venerava. Agora percebia-se, como facto consumado, de que nascente brotara a carreira que cada um dos seus intervenientes ia tangendo. O cool tornara-se imprescindível à estirpe beatnick de S. Francisco, donde irradiou e fez escola por toda a Costa Oeste.
Ouvindo hoje “Birth of the Cool”, e sabendo o que ele desencadeou, os compassos parecem bastante velozes e ainda devedores do bebop. Apure-se, porém, que as improvisações não desembestam em pirotecnias de banzar a audiência, antes dançam em cima de um inusitado swing, clássico, sim, mas temperado pelos sopros de metal graves: tuba, trombone e saxofone barítono. Isto já não era música para champagne borbulhante, mas para degustar como um tinto velho.
Concluído o empreendimento, Miles Davis virou de imediato as costas ao cool, e em 1957 desfrutava plena consagração com “The New Miles Quintet” (1956), em que debuta um tímido John Coltrane, e com “Walkin’” (1957) – andava à procura doutra coisa…
 
 
Kind of Blue
1959 (2009)
Sony Music Distribution 88697439232
Miles Davis (trompete); Julian “Cannonball” Adderley (saxophone alto); John Coltrane (saxofone tenor); Bill Evans, Winton Kelly (piano); Paul Chambers (contrabaixo); Jimmy Cobb (bateria)
 

O sexteto que em Março de 1959 entrou em estúdio já se estava a desagregar. No Outono precedente consumara um recital no faustoso Plaza Hotel de Nova Iorque que fora o talk of the town. As estrelas alinharam-se na perfeição: o estilo harmónico de Coltrane equilibrava a veia de blues de Julian “Cannonball” Adderley e o piano de Bill Evans matizava-se com influxos de Ravel e Rachmaninoff. Todos tinham ascendido ao planalto das suas carreiras, lideravam grupos e publicavam em nome próprio – demasiados chefes tendem a disturbar a tribo... Quem sabe se Paul Chambers e Jimmy Cobb pressentiram que nunca viriam a superar este momento. Miles Davis não trouxe partituras, apenas um esboço geral das escalas que gostaria que tocassem. “Kind of Blue” foi gravado em duas sessões com mais de um mês de intervalo e apesar de todos os temas serem inéditos (uma novidade na discografia de Miles) satisfizeram-se só com um take, à excepção de “Flamenco Sketches”. Foi quanto bastou para definirem uma nova sintaxe de improvisação e provocarem a fusão do núcleo do jazz. Os alicerces harmónicos do género determinavam que a composição se explanasse numa progressão de acordes; o que Miles propunha era substituir esta referência tonal por um desenvolvimento por escalas, com atenção aos intervalos entre as notas. Assim se estabeleceu o “jazz modal”.
Correndo o risco de superficialidade, dir-se-á que o segredo de “Kind of Blue” é a elegância, ou seja, a vetusta simplicidade filosófica da navalha de Occam (pluralitas non est ponenda sine neccesitate” ou seja: “a pluralidade não deve ser posta sem necessidade”). Desta música, limpa de arestas ou espinhos, desprende-se um pathos introspetivo, quase melancólico, uma comoção afectuosa que é imediatamente simpática ao ouvinte.
A trajectória do jazz orientou-se de maneira a entronizar “Kind of Blue” no seu fulcro. Não é só entender um antes e um depois da obra, é a sensação de o que lhe é anterior confluiu nela e o que veio depois dardejou dela: perante o passado deslocou o eixo do swing e dos blues e dissipou os derradeiros resquícios do bebop, instaurando uma nova modernidade; para o futuro ficou como o último instante ecuménico do jazz, antes das linhas de fuga – já incubadas em 1959 – assestarem para horizontes muito divergentes.
“Kind of Blue” é o disco que toda (ou quase toda) a gente conhece, não só de Miles Davis mas do jazz – à volta do planeta ainda se vendem hoje 5000 exemplares por semana. Felizes os que o ouvirem pela primeira vez!
Miles Davis tornara-se num Príncipe – ou no Prince of Darkness graças à sua linguagem profana, ao terrível feitio, aos caprichos de diva, à volubilidade da heroína e da coca e à voz reduzida a um ronco, em consequência de uma operação à garganta mal convalescida –, mas a realidade chamá-lo-ia de volta na noite de 25 de Agosto de 1959, uma semana depois do lançamento de Kind of Blue, quando veio à porta do Clube Birdland acompanhar uma encantadora mulher branca até ao táxi. Um polícia de giro abespinhou-se com a cena multirracial e rosnou-lhe: “Move on.” “Para onde?” Retorquiu Miles: “I’m working downstairs. That’s my name up there, Miles Davis.” Da altercação ao espancamento foi um ápice; azar do agente que a ocorrência tenha sido presenciada por cerca de 200 transeuntes indignados. Bem podia Miles Davis ser uma estrela musical, possuir um Ferrari (branco, descapotável; depois teve, pelo menos, um amarelo, um 275 GTB vermelho e um Testarossa prateado) e intimidades com uma loura – em 1959, mesmo em Nova Iorque, um negro ainda era um escarumba e tinha que ser posto no seu lugar.
 


Bitches Brew
1970 (2013)
Sony Music Entertainment 6619735
Miles Davis (trompete); Wayne Shorter (saxofone soprano); Bennie Maupin (clarinet baixo); Joe Zawinul, Larry Young, Chick Corea (piano eléctrico); John McLaughlin (guitarra); Dave Holland (contrabaixo); Harvey Brooks (baixo eléctrico); Lenny White, Jack DeJohnette (bacteria); Don Alias (bateria, congas, percussão); Jumma Santos, Jim Riley, Airto Moreira (percussão)
 
 
 
Em 1968, com 43 anos, Miles Davis receou que o tomassem por uma figura venerável, caída na auto-paródia, a reproduzir até à náusea os velhos êxitos, sobretudo quando a música popular rodopiava num vórtice de transformações (foram muito divulgados os seus remoques a Jimi Hendrix e Sly Stone). Soltou então os demónios com “Miles in the Sky”. Retrucando ao free de Ornette Coleman, que ele detestava, e à evolução de Coltrane nessa direcção, Miles divide as águas electrificando o jazz. Um ano e meio e três discos depois surge “Bitches Brew”. Pelo caminho tinham ficado todos os anteriores músicos, excepto Wayne Shorter. Nova revoada de jovens rodeava o trompetista: Chick Corea, Jack Dejohnette, Dave Holland e John McLaughlin, com menos de 30 anos de idade, só Joe Zawinul perto dos 40 – o provir demonstraria que, mais uma vez, o talento de “olheiro” de Miles se mostrara insuperável.
A feitura de “Bitches Brew” gozou de condições técnicas belíssimas. A fita magnética era posta a rolar e a gravação começava. A secção rítmica ia desdobrando as suas linhas como um comboio imparável e os sopros entravam por cima, em trechos não muito longos. Às vezes parecia uma jam session, mas os músicos, conscientes das frases que interpretavam, não entendiam inteiramente para onde aproavam, como numa conversa sem princípio nem fim, só meio – no processo, a composição ia aparecendo. A intervenção do produtor Teo Macero no resultado final é ineludível. Numa laboriosa operação de corte e costura, no que se imprimiu em acetato coube todo o potencial da mesa de montagem: câmaras de reverberação, loops de pistas, efeitos de ecos, etc…
“Bitches Brew” contém vitalidade suficiente para evitar ser hoje ouvido como relíquia de uma época, mas a sua descarga de energia atinge predominantemente o lado esquerdo do cérebro, o analítico. É um conjunto denso e fechado de erupções sonoras que, isolados com uma pinça, revelam uma chama que não se apagou. A obra foi um ponto simultaneamente culminante e seminal do jazz de fusão: em 1971 Wayne Shorter e Joe Zawinul saíram daqui para formar os Weather Report e John McLaughlin lideraria a Mahavishnu Orchestra; e em 72 Chick Corea estreou Return to Forever.
Os puristas levaram as mãos à cabeça. Numa altura em que o rock se apoderara da ribalta e se punha em bicos dos pés, armado em sinfónico, Miles Davis franqueava a cidadela do jazz à sua batida rítmica simplória e contaminara-o com uma parafernália contranatura de sonoridades eléctricas. A controvérsia, na verdade, nunca cessou, o jazz de fusão é que morreu de velho poucos anos depois.
Pode um homem perpetrar três revoluções numa vida? Miles Davis conseguiu: o cool, o jazz modal e a fusão – não teve paralelo no século XX.
 
 
 
José Navarro de Andrade
 
 
 
 

6 comentários:

  1. Tenho estes três do Miles Davis. Todos excelentes... mas o meu favorito é o «Bitches Brew».

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  2. Excelente crónica.
    Obvio que tenho estes (toda a gente os tem) mas há um que na sua história se tornou o meu disco de eleição, é o "Ascenseur Pour L'echafaud". O filme é soberbo e julgo saber que Miles improvisou a música vendo o filme.
    Outro que está nos píncaros é "Get Up With It" que desperto por este artigo vou publicar no meu blog.
    Cumprimentos.

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    1. «Toda a gente os tem»? Olhe que não, olhe que não... ;-)

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    2. Obrigado.
      O que eu queria dizer é que toda a gente que vem ler estes post, os tem.
      E se não têm, vão a correr comprar depois de ler.
      Abraço.

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  3. ponto de partida:Não possuo todos os dicos de jazz e nem sequer todos os discos de miles.Tenho um amigo que -era-dono de uma discoteca e provavelmente teria muitos milhares de discos.Ele confessava no entanto que não gostava de jazz.Acontece com livros tambem.
    Compreendo que discos da fase eletrica são no mínimo obrigatorias na historia do jazz e na de Miles em particular.Eu não comungo -e não estou só e mesmo que estivesse era o mesmo-nessa barreira-de que devam estar incluidas nos melhores do jazz.Opiniões.Preferia mais um relaxin,Cookin,Workin etc.
    O seu texto é MAGNIFICO não sei se é original ou se ja o tinha publicado.Penso e sobretudo dada a falta de textos em portugues sobre o assunto deveria publicar o conjunto das cronicas em livro.Ainda sou desse tempo.Reservo dez exemplares.Obrigado
    Gostava de sugerir um livro.Miles Davis The complete ilustrated history.Voyageur press.Vale a pena.Fotos ,capas de discos etc etc

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  4. Caríssimos,
    Ele há mais Miles que fases da lua, que não trago aqui à colação. O primeiro quinteto (os discos saídos das duas sessões para a Prestige); O Miles com Gil Evans; o segundo quinteto depois do explosivo "Miles in Europe"; o Miles anos 80. A ideia foi reduzir o jazz a 100 discos exemplares e de Miles escolhi estes porque me parecem pontos de viragem. Por acaso, até nem sou grande fã da fase eléctrica, mas isso é uma discussão que ninguém ganha. Obrigado, muito, pelos vossos comentários. Para a semana: Bix Beiderbeck.

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