Jean-Baptiste Oudry, Clara, Paris, 1749
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Approach thou like the rugged Russian bear, The arm'd rhinoceros, or
th'Hyrcan tiger – há
uma referência a um rinoceronte em Shakespeare, na 4ª cena do 3º acto de
Macbeth, traduzida entre nós pelo Dr. Domingos Ramos (Porto, 1925) da seguinte
forma: Ousarei o que um homem pode ousar!
Aproxima-te eriçado como um urso da Rússia; armado como um rinoceronte ou como
um tigre da Hircânia!
Há muitas presenças literárias de
rinocerontes, da Bíblia a Ionesco. O que a fala de Macbeth tem de intrigante é
que a peça, como é sabido, foi escrita entre 1603 e 1607, numa altura em que,
ao que consta, não andaram rinocerontes pela Europa, após a entrada triunfal da
Ganda de Modofar em 1515 e da Abada castelhana de 1581. Afirma-se, creio que
sem bases sólidas, que Shakespeare, ao falar de um «rinoceronte armado», se
inspirou na gravura de Dürer, que teve grande projecção na época e que durante
séculos e séculos fixou ao rinoceronte uma couraça de pele em tudo semelhante
às armaduras dos cavaleiros.
Diferente, bem diferente, é a saborosíssima
memória de Casanova, na Paris de Luís XV, quando a instâncias de uma marquesa vão
ver um rinoceronte à Feira de St. Germain. As memórias de Casanova, como sabem,
foram primorosamente traduzidas por Pedro Tamen, mas para esta transcrição baseio-me
na tradução de Luísa Lemos:
Fala-se, depois do jantar, do
rinoceronte que se mostra, a vinte e quatro soldos por cabeça, na Feira de St.
Germain. Vamos vê-lo. Subimos para uma carruagem, descemos na feira, damos várias
voltas à procura do rinoceronte. Era o único homem, dava os braços às duas
damas, a espirituosa marquesa caminhava à nossa frente. No fundo da álea onde
nos haviam dito que o animal se encontrava, encontrámos o seu dono sentado à porta,
para receber o dinheiro dos que queriam entrar. Era um homem vestido à
africana, escuro, enorme, e que parecia um monstro; mas a marquesa deveria pelo
menos reconhecê-lo como um homem. Falso.
- É o senhor, o rinoceronte?
- Entre,
minha senhora, entre.
Contemos o riso e ela, vendo o
verdadeiro rinoceronte, acha-se obrigada a pedir desculpa ao africano,
assegurando-lhe que nunca vira um rinoceronte e que por conseguinte não se
deveria ofender com o seu engano.
(Casanova, Um Veneziano em Paris, trad. portuguesa
de Luísa Lemos, Lisboa, Editorial Estampa, 1972, pp, 53-54).
A confusão entre um africano e um
rinoceronte é algo que daria azo a muitas e muitas linhas sobre racismo, etc.,
etc. Mas, por ora, o ponto é o rinoceronte. E o rinoceronte de Casanova, ao
contrário de algumas das aventuras que conta, existiu mesmo. O seu dono não era africano, mas holandês, e o
animal era uma fêmea e chamava-se Clara.
Como nota Kelly Enright numa pequena
mas muito informada monografia sobre o rinoceronte (Rhinoceros, Reaktion Books, 2008, pp. 36ss), Clara, a «rinoceronte holandesa», foi importantíssima para a
imagem deste animal no Ocidente, muito maculada pelo belicismo da gravura de
Dürer, pela ferocidade real da Abada castelhana, pelo velho mito, já difundido
por Plínio, de que o rinoceronte era inimigo figadal do elefante, o mito que
levou Dom Manuel a promover o célebre combate à beira-Tejo, em 1515.
Pela sua docilidade extrema – diziam que
era «gentil como uma pomba» –, que muito deve ao facto de ter sido criada desde
muito nova pelo seu tratador, o holandês Douwemout van der Meer, e, bem assim,
por este último a ter levado num grand
tour pelas grandes capitais europeias, Clara tornou-se um ícone cultural da
sua época, cuja imagem foi vertida em centenas de objectos e artefactos e deu
ensejo até a uma efémera moda parisiense de um penteado «à rinoceronte». É
Clara que aparece em Veneza, durante o Carnaval, e que aí foi retratada por Pietro
Longhi. É por isso que os que a observam na bancada estão vestidos em trajes
carnavalescos – não se vestiram assim de propósito para ver o rinoceronte, como
desastradamente sugere Kelly Enright na monografia atrás citada (a qual, apesar
de geralmente rigorosa, falar do rei Filipe II… de Portugal). Note-se que, em dois óleos de Longhi, ambos pintados em 1751, Clara aparece sem o seu corno, um
detalhe intrigante.
Não vamos reproduzir aqui, pelo menos
hoje, a abundantíssima iconografia que Clara suscitou por toda a Europa. Veja-se,
em todo o caso, este retrato de Maria Luisa de Bourbon-Parma (1751-1819), actualmente
conservado no Palácio Pitti, Florença, ou um outro, da mesma senhora, que foi
rainha de Espanha, e também pintado por Laurent Pécheux, depositado no Metropolitan Museum, em Nova Iorque.
Laurent Pécheux, Retrato de Maria Luisa di Borbone-Parma, s.d.
(Palácio Pitti, Florença)
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Laurent Pécheux, Retrato de Maria Luisa di Borbone-Parma, 1765
(Met, Nova Iorque)
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