Eu tinha resistido
durante anos a falar daqui de rinocerontes indianos e da gravura de Dürer, mas
a capa do livro O
Século dos Prodígios, de Onésimo Teotónio de Almeida, escolhida pelo
Francisco José Viegas (um abraço a ambos), fez abrir a caixa de Pandora.
Depois, outro grande amigo e colaborador assíduo do Malomil, José Liberato
(outro abraço), trouxe notícias do prédio de Cracóvia onde vi as placas
ornamentais com um elefante e dois rinocerontes. O edifício tem o seu nome
devido ao facto de no século XVII ter lá existido uma farmácia denominada
«Elefante de Ouro», de que foi proprietário um italiano, Bonifacy Cantelli. Foi
alvo de várias remodelações e, em 1850, de um grande incêndio, mas a decoração
exterior – o elefante e os dois rinocerontes – conserva-se até aos nossos dias,
como é fácil constatar ao viajante que passe pela Cidade Velha de Cracóvia.
E, já que falamos de
rinocerontes, é um lugar-comum aludir ao que existe na Torre de Belém, que
merece destaque por ser a primeira representação escultória de um rinoceronte
feita na Europa (cf. Paulo Pereira, Torre de Belém,
Scala Publishers, 2005, pág. 33). Menos falado é outro rinoceronte, feito pouco
depois no Mosteiro de Alcobaça. A gárgula com o rinoceronte encontra-se no
canto Norte-Poente do Sobreclaustro do Silêncio, edificado por ordem de D.
Manuel no início do século XVI.
Mosteiro de Alcobaça, Sobreclaustro do Silêncio, século XVI
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Causa espanto que esta escultura não seja mencionada na obra de
referência de T. H. Clarke sobre os rinocerontes na arte ocidental (cf. The Rhinoceros from
Dürer to Stubbs, 1515-1799,
Sothebys, 1986). Como causa espanto e é muito intrigante outro facto: o
rinoceronte entro no estuário do Tejo, trazido na nau Nossa Senhora da Ajuda,
em 20 e Maio de 1515. Valentim Fernandes (Morávia, c. 1450-Lisboa, 1518 ou
1519), também conhecido como Valentim Fernandes Alemão ou Valentim Fernandes da
Morávia, impressor e tradutor germânico residente em Lisboa, terá enviado a Dürer
uma descrição do animal. Foi a partir dessa descrição e de um desenho enviado
de Lisboa para Nuremberga, de um remetente desconhecido, que Dürer fez a sua
gravura celebérrima, em que o rinoceronte parece estar envolto numa armadura ou
couraça bélica, de resto muito parecida com outro desenho que Dürer fez pela
mesma altura, c. 1515/16, de uma viseira de um capacete de prata destinado ao
Imperador Maximiliano I. O desenho está hoje no Museu Albertina, em Viena, e as
semelhanças com o dorso do rinoceronte são flagrantes.
O desenho de Dürer não
foi, porém, a primeira representação de um rinoceronte indiano na Europa. A
primazia cabe ao médico e humanista florentino Giovanni Giacomo Penni, que escreveu um poema
de louvor ao animal, em vinte e um versos de ottava rima,
publicado em Roma em 13 de Julho de 1515. É um facto deveras intrigante. O
rinoceronte chegou a Lisboa em 20 de Maio e a 13 de Julho já Penni tinha
recebido a notícia da sua chegada, provavelmente com uma descrição do animal,
como já tinha escrito o poema e publicado um livro, Forma e natura e
costumi de lo Rinocerothe. Parece ser demasiado rápido mesmo para os
padrões do nosso tempo, quanto mais para os daquela época. Diz-se que terá sido
informado por carta de um dos muitos mercadores de Florença que então residiam
em Lisboa, mas em qualquer caso tudo parece ter-se processado com demasiada
rapidez. Segundo T. H. Clarke, isso só atesta o interesse sensacional que a
revelação do rinoceronte teve na Europa dos alvores do século XVI. Em qualquer
caso, estranha-se. Mas não se duvida.
Como não se duvida que, ao contrário do que por vezes se diz, a representação de Dürer é particularmente fidedigna. Alguns estranharam o segundo corno existente no dorso, dizendo ser mais uma fantasia belicista do gravador alemão. Mas, quem ler esta minuciosa descrição, concluirá que, de facto, os rinocerontes indianos têm uma protuberância no dorso, por vezes imperceptível. Mas que lá está, está. E Albrecht Dürer captou-a, com olhar de lince. Voltaremos ao tema, que é inesgotável.
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