domingo, 17 de novembro de 2019

Manhã de domingo.

 
 
 
 

1. Foi preciso nascer uma criança sem rosto para sabermos que, dos 850 obstetras do Serviço Nacional de Saúde, apenas 180 a 200 têm aptidão para realizar as ecografias específicas de acompanhamento da gravidez.
 


Foi também preciso nascer uma criança sem rosto para nos apercebermos que a disciplina exercida pela Ordem dos Médicos é uma anedota: só depois de o caso explodir nos jornais é que a Ordem, sem pedir desculpas, «admitiu falhas», disse que «houve coisas que não queremos que voltem a acontecer» e «devíamos ter estado mais atentos, temos de fazer a nossa autocrítica». E anunciou que agora, finalmente, iria apreciar com urgência outros cinco processo sobre o obstetra de Setúbal, resultantes de queixas de 2013 (seis anos), 2014 (cinco anos) e 2015 (quatro anos de atraso), todas sobre o mesmo clínico.


Isto bem mereceria uma reflexão mais vasta e profunda sobre se a competência disciplinar de médicos, advogados e outros deve continuar a ser atribuída às ordens profissionais que, por inércia atávica ou corporativismo medieval, manifestamente não estão a exercer aquela competência como deviam, com um gravíssimo risco para toda a sociedade. Como é possível uma queixa contra um médico estar seis anos parada sem a Ordem se dignar sequer apreciá-la?


2. Foi preciso que uma mulher sem-abrigo desse à luz uma criança e a colocasse num caixote do lixo a poucos metros de uma discoteca da moda e a não muitos metros de um faraónico terminal de cruzeiros de luxo  para sabermos que, dos 131 milhões de euros que o Governo prometeu para os sem-abrigo, Lisboa e Porto não receberam nada. E que a integração de pessoas sem-abrigo está parada há três anos. E que, segundo a CML, no final de 2018 havia em Lisboa 1.967 pessoas a viver em centros de acolhimento temporário e 361 a viver na rua.
 

A Estratégia Nacional para a Integração foi aprovada em Julho de 2017 e, pelos vistos, era um belo documento mas, segundo o vereador dos direitos sociais da câmara de Lisboa, não previa uma «dotação financeira que apoie o alargamento das respostas face às necessidades».
 

Isto com um governo socialista, apoiado por dois partidos de esquerda, e com uma edilidade também socialista. Mas sem que nenhum desses partidos, PS, BE e PCP, todos empenhados na defesa dos direitos sociais e dos mais desfavorecidos, tenha alguma vez falado, durante três anos, do problema de não existirem verbas para apoio aos sem-abrigo que vivem e dormem na rua (se algum desses partidos falou da questão, não falou com a intensidade e a insistência necessárias a que nós tivéssemos sabido dela).
 
 
 


  

3. Agora surgem notícias de um empresário alemão que reside em Cascais e que na sua casa organizava, até há poucas semanas, orgias sexuais com raparigas menores ou muito jovens.


O Correio da Manhã publicou fotografias dessas festas, onde quer as raparigas envolvidas quer os seus familiares facilmente conseguem reconhecer quem é quem (além das que aqui se divulgam, surgiram outras, ainda mais explícitas, na edição papel do jornal.)


Tais fotografias, creio eu, não são públicas nem quero acreditar que o milionário pedófilo ou as menores visadas as tenham divulgado na Internet.
 

Como as obteve o Correio da Manhã? Alguém já se interrogou?
 

Não é a primeira vez, de modo algum, que coisas destas aparecem nos jornais, sem que a Entidade Reguladora da Comunicação Social, o Sindicato dos Jornalistas, as polícias de investigação ou o Ministério Público se perguntem e se interroguem – e perguntem e interroguem – como é possível.


Será que as fotografias e demais informações foram obtidas junto de quem investiga o caso? É legítimo perguntar.


E, se sim, a troco de quê? Ou foi por amiga benemerência dos senhores inspectores e agentes? É legítimo perguntar.
 

Se, porventura, as polícias vendem informações a um jornal isso não é corrupção? É legítimo perguntar.


E o Correio da Manhã e o Grupo Cofina não têm sido, e bem, grandes paladinos contra a corrupção? Ainda recentemente, Eduardo Dâmaso publicou um importante livro sobre o tema, Corrupção, um livro que «realça a falta de meios e vontade política para combater a corrupção e o tráfico de influências», segundo a revista Sábado. Poderão os responsáveis pelo Correio da Manhã ou pela Sábado esclarecer-nos sobre se alguma vez pagaram às suas fontes, nas polícias ou onde quer que seja?


Também é legítimo perguntar porque é que os outros jornais não fazem perguntas sobre isto, quando investigam e fazem perguntas sobre tanta coisa. Que me lembre, nunca houve uma reportagem do Público ou do Diário de Notícias sobre os métodos de investigação e trabalho do Correio da Manhã. Porquê? Não haverá aqui, a pretexto da «liberdade de imprensa», uma atitude corporativa em tudo igual à da Ordem dos Médicos ou uma autodefesa de grupo em tudo igual ao silêncio dos partidos de esquerda na questão dos sem-abrigo?


4. Tudo somado, nesta manhã de domingo temos crianças que nascem sem rosto, mulheres sem-abrigo que deitam bebés para o lixo, jornais que publicam fotografias de menores a terem sexo.


Fica à consciência de cada um decidir o que fazer com tudo isto, isto que tem um nome: Portugal.  

 

 

António Araújo  

 



1 comentário:

  1. Não foi preciso que acontecesse. Foi preciso o alarido.
    Porque onde não há moral nem honra, há o medo das consequências.

    O caso da criança seria mais um caso a juntar aos outros na gaveta, se não fosse noticiário das 8 durante vários dias.

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