1. Foi preciso
nascer uma criança sem rosto para sabermos que, dos 850 obstetras do Serviço
Nacional de Saúde, apenas 180 a 200 têm aptidão para realizar as ecografias
específicas de acompanhamento da gravidez.
Foi também preciso nascer uma
criança sem rosto para nos apercebermos que a disciplina exercida pela Ordem
dos Médicos é uma anedota: só depois de o caso explodir nos jornais é que a
Ordem, sem pedir desculpas, «admitiu falhas», disse que «houve coisas que não queremos que voltem a acontecer»
e «devíamos ter estado mais atentos, temos de fazer a nossa
autocrítica». E anunciou que agora, finalmente, iria apreciar com urgência outros cinco processo sobre o
obstetra de Setúbal, resultantes de queixas de 2013 (seis anos), 2014 (cinco
anos) e 2015 (quatro anos de atraso), todas sobre o mesmo clínico.
Isto bem mereceria uma reflexão mais
vasta e profunda sobre se a competência disciplinar de médicos, advogados e
outros deve continuar a ser atribuída às ordens profissionais que, por inércia
atávica ou corporativismo medieval, manifestamente não estão a exercer aquela
competência como deviam, com um gravíssimo risco para toda a sociedade. Como é
possível uma queixa contra um médico estar seis anos parada sem a Ordem
se dignar sequer apreciá-la?
2. Foi preciso
que uma mulher sem-abrigo desse à luz uma criança e a colocasse num caixote do
lixo a poucos metros de uma discoteca da moda e a não muitos metros de um faraónico
terminal de cruzeiros de luxo para sabermos que, dos 131 milhões de euros
que o Governo prometeu para os sem-abrigo, Lisboa e Porto não receberam nada. E que a integração de pessoas sem-abrigo
está parada há três anos. E que, segundo a CML, no final de 2018 havia em Lisboa 1.967 pessoas a viver em centros de acolhimento temporário e 361 a viver na rua.
A Estratégia Nacional para a Integração
foi aprovada em Julho de 2017 e, pelos vistos, era um belo documento mas,
segundo o vereador dos direitos sociais da câmara de Lisboa, não previa
uma «dotação financeira que apoie o
alargamento das respostas face às necessidades».
Isto com um governo socialista,
apoiado por dois partidos de esquerda, e com uma edilidade também socialista.
Mas sem que nenhum desses partidos, PS, BE e PCP, todos empenhados na defesa
dos direitos sociais e dos mais desfavorecidos, tenha alguma vez falado,
durante três anos, do problema de não existirem verbas para apoio aos
sem-abrigo que vivem e dormem na rua (se algum desses partidos falou da questão,
não falou com a intensidade e a insistência necessárias a que nós tivéssemos
sabido dela).
3. Agora
surgem notícias de um empresário alemão que reside em Cascais e que na sua casa
organizava, até há poucas semanas, orgias sexuais com raparigas
menores ou muito jovens.
O Correio da Manhã publicou
fotografias dessas festas, onde quer as raparigas envolvidas quer os seus
familiares facilmente conseguem reconhecer quem é quem (além das que aqui se
divulgam, surgiram outras, ainda mais explícitas, na edição papel do jornal.)
Tais fotografias, creio eu, não são
públicas nem quero acreditar que o milionário pedófilo ou as menores visadas as tenham divulgado na
Internet.
Como as obteve o Correio da Manhã?
Alguém já se interrogou?
Não é a primeira vez, de modo algum,
que coisas destas aparecem nos jornais, sem que a Entidade Reguladora da
Comunicação Social, o Sindicato dos Jornalistas, as polícias de investigação ou
o Ministério Público se perguntem e se interroguem – e perguntem e interroguem
– como é possível.
Será que as fotografias e demais
informações foram obtidas junto de quem investiga o caso? É legítimo perguntar.
E, se sim, a troco de quê? Ou foi por amiga benemerência dos senhores inspectores e agentes? É legítimo perguntar.
Se, porventura, as polícias vendem
informações a um jornal isso não é corrupção? É legítimo perguntar.
E o Correio da Manhã e o
Grupo Cofina não têm sido, e bem, grandes paladinos contra a corrupção? Ainda
recentemente, Eduardo Dâmaso publicou um importante livro sobre o tema, Corrupção,
um livro que «realça a falta de meios e vontade
política para combater a corrupção e o tráfico de influências»,
segundo a revista Sábado. Poderão os responsáveis pelo Correio da Manhã ou pela Sábado esclarecer-nos sobre se alguma vez pagaram às suas fontes, nas polícias ou onde quer que seja?
Também é legítimo perguntar porque é
que os outros jornais não fazem perguntas sobre isto, quando investigam e fazem
perguntas sobre tanta coisa. Que me lembre, nunca houve uma reportagem do Público
ou do Diário de Notícias sobre os métodos de investigação e
trabalho do Correio da Manhã. Porquê? Não haverá aqui, a pretexto
da «liberdade de imprensa», uma atitude corporativa em tudo igual à da Ordem
dos Médicos ou uma autodefesa de grupo em tudo igual ao silêncio dos partidos
de esquerda na questão dos sem-abrigo?
4. Tudo
somado, nesta manhã de domingo temos crianças que nascem sem rosto, mulheres
sem-abrigo que deitam bebés para o lixo, jornais que publicam fotografias de
menores a terem sexo.
Fica à consciência de cada um decidir
o que fazer com tudo isto, isto que tem um nome: Portugal.
António Araújo
Não foi preciso que acontecesse. Foi preciso o alarido.
ResponderEliminarPorque onde não há moral nem honra, há o medo das consequências.
O caso da criança seria mais um caso a juntar aos outros na gaveta, se não fosse noticiário das 8 durante vários dias.