Pois lá acabei de ler o muito aclamado
Três Mulheres, de Lisa Taddeo.
Narrativa poderosa e arrebatadora, muito bem feita, três crónicas femininas: a
rapariga que se envolve com o professor de liceu, casado e com filhos; a da
mulher bonita e bem na vida cujo marido gosta de a ver a praticar sexo com outros
homens; a dona de casa infeliz no casamento que se aventura extra-matrimónio. No
prólogo, Lisa conta uma outra história, a de sua mãe, que durante anos a fio se
resignou a ter um idoso a masturbar-se à sua frente, na rua, sempre que ia e vinha do
trabalho. Um livro poderoso, mas perigoso. Desde logo, porque é um exercício
sedutor e tocante mas que, como sucede muito em tempos de MeToo, tem um juízo
implícito, generalizador: os homens, todos os homens, não apenas os homens que
protagonizam aquelas histórias, são sempre uns predadores e uns devassos, uns
porcos. O problema é que, para emitir tal sentença (Lisa Taddeo arvora-se nas
entrelinhas em juíza moral e legal), seria no mínimo justo, honesto e até
importante ouvir também os acusados. Sob a forma de uma «reportagem», este
livro é um processo moral. Sendo-o, manda a mais elementar justiça – e a
honestidade intelectual – que os réus tenham um módico de defesa, que se possa
ouvir o que pensam e o que acham, qual a sua versão da história. Caso contrário, e violando as mais elementares
regras do trabalho jornalístico ou o que for, o retrato final é manipulatório,
enviesado, unilateral.
Dirão
que nos livros que contam histórias de vítimas de violência também é assim,
ouve-se as mulheres, não os agressores. Bem, desde logo as coisas são um bocado
diferentes: não há «motivações», «explicações» ou «justificações» possíveis
para bater numa mulher. Ainda assim, parece-me que um retrato completo do que é
a violência doméstica ganhará muito se contar também com a perspectiva do
agressor. Não para o desculpar ou sequer para «perceber», mas para compreender
melhor o flagelo da violência doméstica no seu todo e pensar em meios de lhe
pôr termo.
Dirão
outros: calma, isto é só um livro, não é um processo de tribunal. Sem dúvida. Mas,
como disse, o livro tem implícita, por vezes explícita, uma ideia de juízo, de
julgamento, de avaliação moral generalizadora: «através dos tempos, os homens
despedaçaram os corações das mulheres de uma forma específica. Amam-nas ou
quase e depois cansam-se e passam semanas ou meses a desembaraçarem-se
silenciosamente, retrocedendo para o seu aconchego, recompondo-se e nunca mais
dando notícias. Entretanto, as mulheres esperam» (página 18). A complexidade e
a variedade das relações homem/mulher pode ser descrita assim, de uma forma tão
redutora, simplista, padronizada? Entre «os machos são todos uns porcos» e, nos
antípodas, «a cabra da miúda era uma sabidona, sabia bem o que estava a fazer»
há um mundo vastíssimo de motivações, sentimentos, estados de alma, cambiantes.
O livro dá uma noção dessa complexidade, mas só uma pálida noção, sempre comprometida
e enviesada pela perspectiva dominante, maniqueísta e linear: os homens de um
lado, o lado negro da força; as mulheres do outro, carentes e indefesas.
Livros
como este são importantes se os soubermos ler. Caso contrário, perigo, Quanto a
mim, a história mais importante e ilustrativa, até porque se enquadra muito
mais num triste padrão de normalidade e frequência, é a narrada em poucas linhas
do Prólogo, a história da mãe da autora. Não é muito frequente um marido que
tenha prazer em ver a mulher na cama com outros homens, a história de Sloane.
Mas são muito frequentes, ainda são muito frequentes, os casos de raparigas e
mulheres importunadas por tarados nos transportes públicos, nas ruas, nas lojas
ou nos locais de trabalho. No Japão e no Brasil até criaram carruagens de metro
só para mulheres, para evitar os apalpanços e os esfreganços, para evitar –
pasme-se! – os tarados nipónicos que com os telemóveis fotografam por baixo das saias das colegiais, que retratam as suas cuecas e os seus rostos, e depois põem tudo na Internet, indexado, catalogado, para
consulta de outros tantos tarados como eles.
Como
é evidente, não é por fugirem a algum padrão ou serem algo exepcionais (e, no
caso de Sloane, até bizarros), que estes
três casos devem deixar de ser contados e descritos. Não, nada disso, o livro
vale a pena, é importante e interessante. O problema, insiste-se, é a generalização, e o perigo de nos
deixarmos levar pela prosa arrepiante e começarmos a fazer deduções e sobretudo
induções.
O
livro tem sido também muito louvado por ser uma incursão extraordinária nos
meandros do desejo e da sexualidade feminina. Aí, então, Três Mulheres falha
completamente, é um perfeito fracasso. Mas basta de bater, o melhor é ler. E,
depois de ler, opinar, pois certamente quem leia terá uma impressão muito
diferente da minha, subjectiva e pessoalíssima, e também ela enviesada pelos meus preconceitos,
fantasmas e alucinações.
Apenas para precisar melhor a questão das carruagens só para mulheres. Elas existem em vários países, nomeadamente aqui mais perto, na Alemanha. A justificação é quase sempre semelhante à que escreveu. Concretamente no caso japonês, existem essas carruagens quer no metro quer em comboios suburbanos, mas apenas são exclusivas para mulheres à hora de ponta. Atenciosamente.
ResponderEliminarMuito obrigado, não sabia que também existiam na Alemanha
ResponderEliminarMuito cordialmente
António Araújo