Mesmo
curta e pouco séria, a série que hoje se conclui sobre a 5ª sinfonia de
Beethoven pode ter interferido com a parcimónia de quem se priva de ouvi-la ao
desbarato, na esperança de mantê-la fresca e de vir ainda a ser surpreendido
com qualquer coisa de novo, uma visão original à enésima interpretação. Logo
naquele pompompompom inicial, é assim como esperar um “to be or not to be”
shakespeariano nunca ouvido a sair da cartola de qualquer ator – excluindo,
talvez, o que nos ofereceu o divertido filme de
mesmo nome, de Ernest Lubitsch, que, por mim, não vejo a menor necessidade de
poupar. Já perdi a conta às vezes que o vi, com companhia de todas as idades e
feitios, e nunca se gastou, nem perdeu um grama de graça.
Embora
compreenda o cuidado, há algum pessimismo em tanta poupança. Além de ninguém
interpretar hoje uma peça, qualquer peça, como há 50 anos, continua a haver
muitas leituras por onde escolher. Proponho aqui duas de um rol seleto, numa espécie
de campeonato de interpretações das últimas 3 décadas.
Antes,
porém, dois dedos de conversa, não tão arrebatada como a de um crítico
contemporâneo de Beethoven, romântico em todos os sentidos do termo, com uma
verve tão vertiginosa que o imagino a escrever num carril de montanha russa. Citando
livremente, eis um mix das apreciações
mais sóbrias que fez desta sinfonia, pouco depois da sua estreia. Segundo ele, a
5ª faz de cada ouvinte atento um visionário encantado, com a alma a ser íntima
e profundamente abalada por um sentimento que não é senão essa indescritível
mistura de saudade infinita e portentoso desejo, e que até ao último acorde não
consegue escapar de um reino maravilhoso em que todo esse anseio -- a dor, a
alegria, o abatimento, a esperança, o amor -- irrompe numa harmonia plena de
todas as paixões sob a forma de sons. E.T.A. Hoffman dixit.
Antes
de mais, então, há que não esquecer a conversa do destino: que a sinfonia
versaria sobre o destino e que o pompompompom seria até o destino a bater à
porta – assim um toctoctoctoc, digamos. Não se sabe quem o disse, se Beethoven,
se o seu secretário. Ora, o secretário era conhecido por dizer tudo o que lhe
assomava ao crânio, e Beethoven, esse, por dizer o que fosse preciso para
enxotar quem lhe moía o juízo com perguntas -- e é sabido que quanto mais
enigmática e profunda soa a resposta, mais satisfeitas ficam tais aves e mais
depressa largam a porta.
Mas
mesmo sem tomar a ideia à letra, seria difícil imaginar a humanidade às voltas
com o destino ao som de uma polka ou de uma valsa de J. Strauss. Não admira que
não costumem ser lá muito convincentes as interpretações demasiado afáveis e
amáveis – bonitas, em suma, mas a que falta força.
Excluindo
essas, portanto, por muito competentes que sejam, vamos às duas de eleição, por
acaso nos antípodas uma da outra.
A
primeira é a que seduz logo à primeira, justamente. Deve ser difícil aliar
tanta vida com tanta elegância e fluidez, uma sonoridade tão sumptuosa com
tanta finura e claridade. É a interpretação de Riccardo Chailly à frente
da Gewandhausorchester de Leipzig. A ideal para oferecer a sobrinhos e
afilhados.
Já
a de Nikolaus Harnoncourt com o Concentus Musicus talvez não seja a prenda mais
avisada para primeira audição. É mais para as pessoas poupadinhas do primeiro
parágrafo, que estejam disponíveis para ouvir uma coisa nunca ouvida e não se
desconcertem com um grão de estridência e de loucura, algum excesso e algum
negrume. Os meus ouvidos leigos, que até aí só conheciam interpretações
pesadotas e massacrantes, das que nos perdem ao fim de uns minutos e nos põem a
pensar no jantar ou a desencravar ideias para artigos pendentes, foram
apanhados de surpresa com a sinceridade e a urgência desta interpretação no fio
da navalha. Tão sábia e tão limpa em cada elemento, e ao mesmo tampo tão rugosa
e tão excêntrica, tão lírica e tão quimérica.
É
também por isso que discordo de quem disse não haver já no século XXI
apreciações com tanta energia descritiva como a de Hoffman, uns parágrafos
acima. É só ver o comentário de um youtuber
a essa mesma versão de Harnoncourt, que aqui deixo em transcrição traduzida:
“Radical
e obsessiva, livre e hipercriativa, reflexiva e perigosa, selvagem e profunda,
contemporânea. Beethoven encara o século XXI mais moderno do que nunca.
Obrigado, Herr Harnoncourt, pelo antídoto contra a estupidez”. Se isto não é um
comentário enérgico, vou ali e já venho.
1)
Sinfonia No.5 em Dó
Menor Op.67 - 1. Allegro con brio, de Ludwig van Beethoven, pela Gewandhausorchester,
de Leipzig, sob a direção de Riccardo Chailly
2)
Sinfonia No.5 em Dó
Menor Op.67 - 1. Allegro con brio, de Ludwig van Beethoven, pelo Concentus
Musicus de Viena, sob a direção de Nikolaus Harnoncourt.
Manuela Ivone Cunha
Elogio o seu bom gosto musiucal
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Tenha um dia feliz
Cumprimentos poéticos