quinta-feira, 11 de junho de 2020

Agora a sério. (5/5)






Mesmo curta e pouco séria, a série que hoje se conclui sobre a 5ª sinfonia de Beethoven pode ter interferido com a parcimónia de quem se priva de ouvi-la ao desbarato, na esperança de mantê-la fresca e de vir ainda a ser surpreendido com qualquer coisa de novo, uma visão original à enésima interpretação. Logo naquele pompompompom inicial, é assim como esperar um “to be or not to be” shakespeariano nunca ouvido a sair da cartola de qualquer ator – excluindo, talvez, o que nos ofereceu o divertido filme de mesmo nome, de Ernest Lubitsch, que, por mim, não vejo a menor necessidade de poupar. Já perdi a conta às vezes que o vi, com companhia de todas as idades e feitios, e nunca se gastou, nem perdeu um grama de graça.

Embora compreenda o cuidado, há algum pessimismo em tanta poupança. Além de ninguém interpretar hoje uma peça, qualquer peça, como há 50 anos, continua a haver muitas leituras por onde escolher. Proponho aqui duas de um rol seleto, numa espécie de campeonato de interpretações das últimas 3 décadas.

Antes, porém, dois dedos de conversa, não tão arrebatada como a de um crítico contemporâneo de Beethoven, romântico em todos os sentidos do termo, com uma verve tão vertiginosa que o imagino a escrever num carril de montanha russa. Citando livremente, eis um mix das apreciações mais sóbrias que fez desta sinfonia, pouco depois da sua estreia. Segundo ele, a 5ª faz de cada ouvinte atento um visionário encantado, com a alma a ser íntima e profundamente abalada por um sentimento que não é senão essa indescritível mistura de saudade infinita e portentoso desejo, e que até ao último acorde não consegue escapar de um reino maravilhoso em que todo esse anseio -- a dor, a alegria, o abatimento, a esperança, o amor -- irrompe numa harmonia plena de todas as paixões sob a forma de sons. E.T.A. Hoffman dixit.

Antes de mais, então, há que não esquecer a conversa do destino: que a sinfonia versaria sobre o destino e que o pompompompom seria até o destino a bater à porta – assim um toctoctoctoc, digamos. Não se sabe quem o disse, se Beethoven, se o seu secretário. Ora, o secretário era conhecido por dizer tudo o que lhe assomava ao crânio, e Beethoven, esse, por dizer o que fosse preciso para enxotar quem lhe moía o juízo com perguntas -- e é sabido que quanto mais enigmática e profunda soa a resposta, mais satisfeitas ficam tais aves e mais depressa largam a porta.

Mas mesmo sem tomar a ideia à letra, seria difícil imaginar a humanidade às voltas com o destino ao som de uma polka ou de uma valsa de J. Strauss. Não admira que não costumem ser lá muito convincentes as interpretações demasiado afáveis e amáveis – bonitas, em suma, mas a que falta força.

Excluindo essas, portanto, por muito competentes que sejam, vamos às duas de eleição, por acaso nos antípodas uma da outra.

A primeira é a que seduz logo à primeira, justamente. Deve ser difícil aliar tanta vida com tanta elegância e fluidez, uma sonoridade tão sumptuosa com tanta finura e claridade. É a interpretação de Riccardo Chailly à frente da Gewandhausorchester de Leipzig. A ideal para oferecer a sobrinhos e afilhados.

Já a de Nikolaus Harnoncourt com o Concentus Musicus talvez não seja a prenda mais avisada para primeira audição. É mais para as pessoas poupadinhas do primeiro parágrafo, que estejam disponíveis para ouvir uma coisa nunca ouvida e não se desconcertem com um grão de estridência e de loucura, algum excesso e algum negrume. Os meus ouvidos leigos, que até aí só conheciam interpretações pesadotas e massacrantes, das que nos perdem ao fim de uns minutos e nos põem a pensar no jantar ou a desencravar ideias para artigos pendentes, foram apanhados de surpresa com a sinceridade e a urgência desta interpretação no fio da navalha. Tão sábia e tão limpa em cada elemento, e ao mesmo tampo tão rugosa e tão excêntrica, tão lírica e tão quimérica.

É também por isso que discordo de quem disse não haver já no século XXI apreciações com tanta energia descritiva como a de Hoffman, uns parágrafos acima. É só ver o comentário de um youtuber a essa mesma versão de Harnoncourt, que aqui deixo em transcrição traduzida:

“Radical e obsessiva, livre e hipercriativa, reflexiva e perigosa, selvagem e profunda, contemporânea. Beethoven encara o século XXI mais moderno do que nunca. Obrigado, Herr Harnoncourt, pelo antídoto contra a estupidez”. Se isto não é um comentário enérgico, vou ali e já venho.

1)
Sinfonia No.5 em Dó Menor Op.67 - 1. Allegro con brio, de Ludwig van Beethoven, pela Gewandhausorchester, de Leipzig, sob a direção de Riccardo Chailly 




2) 
Sinfonia No.5 em Dó Menor Op.67 - 1. Allegro con brio, de Ludwig van Beethoven, pelo Concentus Musicus de Viena, sob a direção de Nikolaus Harnoncourt. 





Manuela Ivone Cunha















1 comentário: