domingo, 21 de junho de 2020

Andreia, I love you | I love you, Andreia






Há quem julgue que os dinossauros acabaram, mas é parvo. Eles estão aí, monstruosos e pré-históricos, sob formas estranhas e metaleiras. Nas obras públicas ou privadas, olha-se para certas gruas, para certas escavadoras amarelas, para certos camiões gigantes e é mesmo como se estivéssemos no Câmbrico Inferior.

Todas as noites, há um animal desses que me passa à porta a chiar, a arfar, a mandar luzes-sirene pela rua fora. Nas traseiras do bicho, na zona das nádegas, um casal de senhores do lixo vai alimentando a fera bojuda e rabuda (e ruidosa).

Todas as noites, Julieta passa debaixo do meu balcão, para conversações.

A Andreia é conversadeira, tão conversadeira que por vezes desleixa o lixo, mas pronto. Andei baralhado com as mudanças da recolha, os dias do tira-não tira, hoje há-hoje não há, amanhã que é feriado e depois vem a ponte. E todas as santas noites Andreia esclareceu-me todas as minhas dúvidas na higiene urbana. Às vezes, a faladora da Andreia desleixa o lixo e, quando dá por ela, já o camião vai no fim da rua, a dar a curva, a bufar plástico e fezes. O colega assobia e grita então, com bons modos:  

− ‘Bora lá, Andreia, ‘bora, caralho! ‘Bora!

Suspende-se logo o namoro na Verona confinada. Julieta corre atrás do monstro, recolhe Romeu ao interior doméstico.

Houve dias, todavia, que fui para dentro a pensar na Andreia e nas centenas ou milhares de Andreias graças às quais temos o pão nas padarias, a água a correr nos canos, a luz alumiar as lâmpadas e a bendita da Interneta. Isto, note-se, em plena pandemia.

Nessas ocasiões, para mim Andreia deixou de ser Andreia, ou só Andreia. Transfigurou-se, como Cristo (como se Cristo fosse funcionário da CML), tornando-se, ali onde a vejo, numa metáfora súbita do que de melhor existe nos seres humanos. E, por instantes, naquela moça do lixo condensou-se tudo o que de bom, muito bom, andamos a fazer uns aos outros (às vezes de mau, mas de Andreia Capuleto só se fala para dizer o bem). Certas noites, muitas noites, Andreia devolveu-me a esperança no género humano, quando tudo à volta parecia desmoronar-se e afundar-se no lodaçal egoísta da sobrevivência. É claro que Andreia, a Andreia do lixo, a Andreia do ‘bora lá, Andreia, caralho!, não teve a mínima consciência deste seu papel transcendente, o que torna tudo ainda mais incrível e mais incrivelmente maravilhoso. Por isso, é claro e óbvio:

Andreia, I love you | I love you, Andreia








3 comentários:

  1. Gostei da analogia. Os dinossauros continuam aí... Têm é outras, se calhar agora outras formas, mais ruidosas,
    .
    Um resto de domingo feliz
    Saudações poéticas.

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  2. Que seria de nós sem as inúmeras Andreias que nos facilitam a vida ?

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