Há
quem julgue que os dinossauros acabaram, mas é parvo. Eles estão aí, monstruosos
e pré-históricos, sob formas estranhas e metaleiras. Nas obras públicas ou
privadas, olha-se para certas gruas, para certas escavadoras amarelas, para
certos camiões gigantes e é mesmo como se estivéssemos no Câmbrico Inferior.
Todas
as noites, há um animal desses que me passa à porta a chiar, a arfar, a mandar luzes-sirene
pela rua fora. Nas traseiras do bicho, na zona das nádegas, um casal de
senhores do lixo vai alimentando a fera bojuda e rabuda (e ruidosa).
Todas
as noites, Julieta passa debaixo do meu balcão, para conversações.
A
Andreia é conversadeira, tão conversadeira que por vezes desleixa o lixo, mas pronto.
Andei baralhado com as mudanças da recolha, os dias do tira-não tira, hoje
há-hoje não há, amanhã que é feriado e depois vem a ponte. E todas as santas noites Andreia esclareceu-me todas as minhas dúvidas na higiene
urbana. Às vezes, a faladora da Andreia desleixa o lixo e, quando dá por ela,
já o camião vai no fim da rua, a dar a curva, a bufar plástico e fezes. O
colega assobia e grita então, com bons modos:
−
‘Bora lá, Andreia, ‘bora, caralho! ‘Bora!
Suspende-se
logo o namoro na Verona confinada. Julieta corre atrás do monstro, recolhe
Romeu ao interior doméstico.
Houve
dias, todavia, que fui para dentro a pensar na Andreia e nas centenas ou
milhares de Andreias graças às quais temos o pão nas padarias, a água a correr
nos canos, a luz alumiar as lâmpadas e a bendita da Interneta. Isto, note-se, em plena pandemia.
Nessas
ocasiões, para mim Andreia deixou de ser Andreia, ou só Andreia.
Transfigurou-se, como Cristo (como se Cristo fosse funcionário da CML), tornando-se, ali onde a vejo, numa metáfora súbita do que de
melhor existe nos seres humanos. E, por instantes, naquela moça do lixo condensou-se
tudo o que de bom, muito bom, andamos a fazer uns aos outros (às vezes de mau, mas de Andreia
Capuleto só se fala para dizer o bem). Certas
noites, muitas noites, Andreia devolveu-me a esperança no género humano, quando
tudo à volta parecia desmoronar-se e afundar-se no lodaçal egoísta da sobrevivência. É claro que Andreia, a Andreia do lixo, a Andreia do ‘bora lá, Andreia, caralho!, não teve a
mínima consciência deste seu papel transcendente, o que torna tudo ainda mais
incrível e mais incrivelmente maravilhoso. Por isso, é claro e óbvio:
Andreia, I love you | I love
you, Andreia
Gostei da analogia. Os dinossauros continuam aí... Têm é outras, se calhar agora outras formas, mais ruidosas,
ResponderEliminar.
Um resto de domingo feliz
Saudações poéticas.
Que seria de nós sem as inúmeras Andreias que nos facilitam a vida ?
ResponderEliminarYeap.
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