domingo, 22 de maio de 2022

Quando o romance-problema se confrontou com a lógica cerebral de um detetive de génio.

 



 

No final dos anos 1920, uma dupla de primos deu à estampa o primeiro dos romances onde aparecia o detetive Ellery Queen, curiosamente escritor de romances policiais, insinuante e muito cioso da sua lógica dedutiva. A partir daí, apareceu um conjunto de obras que envolviam nomes de cidades ou países, chapéu romano, pó francês, ataúde grego, sapato holandês, cruz egípcia e, no caso vertente, laranja chinesa, este publicado em 1934. A trama destes romances-problema prende-se sempre com um ambiente um tanto claustrofóbico, o número de personagens é relativamente diminuto, há sempre um quadro que contextualiza a chegada à boca de cena de Ellery Queen, quando irrompe o crime vem então a polícia, com o inspetor Richard Queen, pai de Ellery, a capitanear a equipa do departamento de homicídios, e em todas as obras aparece o resmunga sargento Velie, com a sua pontinha de acinte, a tentar desfeitear o raciocínio deste detetive diplomado por Harvard. Estamos numa época gloriosa da literatura de crime e mistério, aqui se desenham quase a pena seca as personagens, há algo de teatral na sua entrada em cena, veja-se a descrição que se oferece do inspetor Queen: “O inspetor Queen assemelhava-se a um pássaro – um passarinho velho, de plumagem cinzenta, olhos estranhos e um bigode grisalho. Possuía também algo das aptidões do pássaro para estacar numa imobilidade de pedra quando as circunstâncias o exigiam, assim como a capacidade de se mover aos saltos, quando se tornava necessário agir com presteza. E nas ocasiões decisivas quase que chegava a pipilar. Era sabido que homenzarrões se encolhiam ao seu piar mais suave, pois, apesar do aspeto de pássaro, havia algo de impressionante naquele velho. E, por esta razão, os detetives sob o seu comando temiam-no e amavam-no.” 

Abre a cena no escritório de um editor de literatura e altamente conceituado colecionador de selos e joias. Um visitante sai do anonimato e pede para ser recebido pelo colecionador, vamos vê-lo encaminhado pelo secretário para uma sala, Donald Kirk andava por fora. Chega, é informado de que alguém o procura, parece que passou uma tempestade pela sala, está tudo do avesso, incluindo esse anónimo visitante, morto. Como foi possível? Ninguém entrou naquele espaço e ninguém dele saiu, assegurou veementemente o secretário. Ellery veio na companhia de Donald Kirk, tinha sido convidado para um evento, deparasse-lhe este insólito cenário onde não faltam duas lanças que ladeiam o cadáver e dá-se pela falta de uma tangerina. Na arquitetura do romance chegou o momento de pôr no palco um velho rabugento, um génio em línguas mortas, que move numa cadeira de rodas e anda para ali a maltratar verbalmente. O secretário, James Osborne, dá todas as explicações sobre a chegada do insólito visitante, aparece uma senhora com elevados conhecimentos da cultura chinesa, descobrir-se-á que há para ali uma elegante dama de sociedade que não passa de uma reles chantagista e ladra, o ignaro sócio de Donald Kirk, incapaz de um lampejo é expressivo nos comentários, e temos o clássico lugar da porta fechada, uma atração que outros autores cultivaram, como Edgar Wallace ou Frank Gruber ou S.S. Van Dine. O leitor fica logo dominado pela descrição daquele homem morto, que ninguém conhece: “Era o corpo rígido do homem corpulento de meia idade, cujo crânio calvo perdera o tom róseo e se tornara branco, respigado de vermelho, com fios gelatinosos que irradiavam de uma depressão escura no alto da cabeça. Tinha o rosto voltado para o soalho, e os seus braços curtos e gordos estavam contorcidos e metidos sob o corpo. Duas coisas estranhíssimas, de ferro, surgiam de dentro do seu casaco por detrás da nuca e, uma de cada lado da cabeça, pareciam como que figurando chifres”. 

Iniciam-se as diligências para entender aquele código de tudo estar às avessas, nada naquela sala deixara de ficar virado ao contrário. É inevitável o parecer do médico forense, terá havido para ali uma zaragata e depois um tiro fatal. Ellery vai perguntando, vai descobrindo que há segredos na vida familiar dos Kirk, parece que ninguém está de fora quanto à hipótese de ter assassinado o insólito visitante, a começar pelo próprio Donald Kirk, que se descobre ter um vulnerável álibi. No meio da tragédia, toda aquela gente janta numa atmosfera fúnebre o que se presumia ter sido um banquete. Fala-se muito da China, o leitor continua desorientado com tanta conversa labiríntica, mas já não pode perder a leitura febril, desaparecem livros hebraicos e nessa altura fala-se de um selo conhecido por Selo de Foochow, talvez uma das maiores raridades da filatelia, de valor incalculável, fazia parte do património do colecionador, aparece agora nas mãos de outra pessoa, lá se vão ouvindo argumentos para a troca de posse, Ellery Queen aproveita para nos dar uma lição pelos chamados selos “locais”, verdadeiros objetos filatélicos, pois a generalidade dos colecionadores interessam-se por selos de emissão nacional. E temos juras de amor, a ladra encostada à parede, tem cadastro internacional, andava a fazer chantagem, sabedora de um casamento tormentoso da irmã de Donald Kirk, conseguiu extorquir-lhe joias, qual Zorro o nosso Ellery Queen consegue arrebatar-lhe essas preciosidades. Nada se passa fora desta atmosfera claustrofóbica, a não ser umas conversas entre o inspetor Queen e o filho, avançamos, na maior das tensões para a revelação do crime, e é nisto que Ellery Queen lança um desafio ao leitor, uma autêntica provocação, pois diz-lhe: “Assegure-lhes que, neste ponto da leitura de O Mistério da Laranja Chinesa, estão na posse dos elementos essenciais à descoberta de uma solução clara do mistério. Devem, nesta altura, estar aptos a resolver o enigma do crime cometido na sala de espera do escritório de Donald Kirk. Serão capazes de os reunir e de, por um processo lógico de raciocínio, chegar à única solução possível?” O tanas, o leitor anda por ali atarantado e vai sorvendo as peripécias do desfecho final, tudo à moda, no próprio ambiente em que se dera o crime desvenda-se o engenho utilizado para a sala fechada, o porquê daquelas lanças, uma história de amor, ainda por cima malsucedido, em que a visada fica aturdida quando Ellery Queen denuncia o crime, quem matou confessa-se e salta pela janela em direção à morte. 

É este o fascínio da ilusão que provoca o romance, ficamos de boca aberta com as explicações dadas quanto à monstruosa tragédia engendrada por alguém que precisava de muito dinheiro. Para Ellery Queen é tudo simples: “Eu procurava um significado em todas as coisas, procurava um falso significado. Daí resultou que me pareceu necessário investigar todas as coisas que estivessem ao contrário, afinal o assassinato tivera fome e comera uma tangerina, trouxera o “Laranja Chinês”, selo valiosíssimo, que lhe custou a vida”. 

De leitura obrigatória, Ellery Queen é o sumo sacerdote da literatura de crime e mistério, de todos os tempos. 

 

  Mário Beja Santos 

 


 

 

 


2 comentários:

  1. Belo texto que muito gostei de ler.
    Domingo feliz

    ResponderEliminar
  2. Claro que gostos não se discutem mas, a Queen, prefiro-lhe S. S. van Dine (1888-1939), até pelo lado clássico da sua pequena obra, que seguia escrupulosamente as suas "Vinte regras para escrever romances policiais".
    Cumprimentos.

    ResponderEliminar