No final dos anos 1920, uma dupla de primos deu à estampa o primeiro dos
romances onde aparecia o detetive Ellery Queen, curiosamente escritor de
romances policiais, insinuante e muito cioso da sua lógica dedutiva. A partir
daí, apareceu um conjunto de obras que envolviam nomes de cidades ou países,
chapéu romano, pó francês, ataúde grego, sapato holandês, cruz egípcia e, no
caso vertente, laranja chinesa, este publicado em 1934. A trama destes
romances-problema prende-se sempre com um ambiente um tanto claustrofóbico, o
número de personagens é relativamente diminuto, há sempre um quadro que
contextualiza a chegada à boca de cena de Ellery Queen, quando irrompe o crime
vem então a polícia, com o inspetor Richard Queen, pai de Ellery, a capitanear
a equipa do departamento de homicídios, e em todas as obras aparece o resmunga
sargento Velie, com a sua pontinha de acinte, a tentar desfeitear o raciocínio
deste detetive diplomado por Harvard. Estamos numa época gloriosa da literatura
de crime e mistério, aqui se desenham quase a pena seca as personagens, há algo
de teatral na sua entrada em cena, veja-se a descrição que se oferece do
inspetor Queen: “O inspetor Queen assemelhava-se a um pássaro – um passarinho
velho, de plumagem cinzenta, olhos estranhos e um bigode grisalho. Possuía
também algo das aptidões do pássaro para estacar numa imobilidade de pedra
quando as circunstâncias o exigiam, assim como a capacidade de se mover aos
saltos, quando se tornava necessário agir com presteza. E nas ocasiões
decisivas quase que chegava a pipilar. Era sabido que homenzarrões se encolhiam
ao seu piar mais suave, pois, apesar do aspeto de pássaro, havia algo de
impressionante naquele velho. E, por esta razão, os detetives sob o seu comando
temiam-no e amavam-no.”
Abre a cena no escritório de um editor de literatura e altamente
conceituado colecionador de selos e joias. Um visitante sai do anonimato e pede
para ser recebido pelo colecionador, vamos vê-lo encaminhado pelo secretário
para uma sala, Donald Kirk andava por fora. Chega, é informado de que alguém o
procura, parece que passou uma tempestade pela sala, está tudo do avesso,
incluindo esse anónimo visitante, morto. Como foi possível? Ninguém entrou
naquele espaço e ninguém dele saiu, assegurou veementemente o secretário. Ellery
veio na companhia de Donald Kirk, tinha sido convidado para um evento,
deparasse-lhe este insólito cenário onde não faltam duas lanças que ladeiam o
cadáver e dá-se pela falta de uma tangerina. Na arquitetura do romance chegou o
momento de pôr no palco um velho rabugento, um génio em línguas mortas, que
move numa cadeira de rodas e anda para ali a maltratar verbalmente. O
secretário, James Osborne, dá todas as explicações sobre a chegada do insólito
visitante, aparece uma senhora com elevados conhecimentos da cultura chinesa,
descobrir-se-á que há para ali uma elegante dama de sociedade que não passa de
uma reles chantagista e ladra, o ignaro sócio de Donald Kirk, incapaz de um
lampejo é expressivo nos comentários, e temos o clássico lugar da porta
fechada, uma atração que outros autores cultivaram, como Edgar Wallace ou Frank
Gruber ou S.S. Van Dine. O leitor fica logo dominado pela descrição daquele
homem morto, que ninguém conhece: “Era o corpo rígido do homem corpulento de meia
idade, cujo crânio calvo perdera o tom róseo e se tornara branco, respigado de
vermelho, com fios gelatinosos que irradiavam de uma depressão escura no alto
da cabeça. Tinha o rosto voltado para o soalho, e os seus braços curtos e
gordos estavam contorcidos e metidos sob o corpo. Duas coisas estranhíssimas,
de ferro, surgiam de dentro do seu casaco por detrás da nuca e, uma de cada
lado da cabeça, pareciam como que figurando chifres”.
Iniciam-se as diligências para entender aquele código de tudo estar às
avessas, nada naquela sala deixara de ficar virado ao contrário. É inevitável o
parecer do médico forense, terá havido para ali uma zaragata e depois um tiro
fatal. Ellery vai perguntando, vai descobrindo que há segredos na vida familiar
dos Kirk, parece que ninguém está de fora quanto à hipótese de ter assassinado
o insólito visitante, a começar pelo próprio Donald Kirk, que se descobre ter
um vulnerável álibi. No meio da tragédia, toda aquela gente janta numa
atmosfera fúnebre o que se presumia ter sido um banquete. Fala-se muito da
China, o leitor continua desorientado com tanta conversa labiríntica, mas já
não pode perder a leitura febril, desaparecem livros hebraicos e nessa altura
fala-se de um selo conhecido por Selo de Foochow, talvez uma das maiores
raridades da filatelia, de valor incalculável, fazia parte do património do
colecionador, aparece agora nas mãos de outra pessoa, lá se vão ouvindo
argumentos para a troca de posse, Ellery Queen aproveita para nos dar uma lição
pelos chamados selos “locais”, verdadeiros objetos filatélicos, pois a
generalidade dos colecionadores interessam-se por selos de emissão nacional. E
temos juras de amor, a ladra encostada à parede, tem cadastro internacional,
andava a fazer chantagem, sabedora de um casamento tormentoso da irmã de Donald
Kirk, conseguiu extorquir-lhe joias, qual Zorro o nosso Ellery Queen consegue
arrebatar-lhe essas preciosidades. Nada se passa fora desta atmosfera
claustrofóbica, a não ser umas conversas entre o inspetor Queen e o filho, avançamos,
na maior das tensões para a revelação do crime, e é nisto que Ellery Queen
lança um desafio ao leitor, uma autêntica provocação, pois diz-lhe:
“Assegure-lhes que, neste ponto da leitura de O Mistério da Laranja Chinesa,
estão na posse dos elementos essenciais à descoberta de uma solução clara do
mistério. Devem, nesta altura, estar aptos a resolver o enigma do crime
cometido na sala de espera do escritório de Donald Kirk. Serão capazes de os
reunir e de, por um processo lógico de raciocínio, chegar à única solução
possível?” O tanas, o leitor anda por ali atarantado e vai sorvendo as
peripécias do desfecho final, tudo à moda, no próprio ambiente em que se dera o
crime desvenda-se o engenho utilizado para a sala fechada, o porquê daquelas
lanças, uma história de amor, ainda por cima malsucedido, em que a visada fica
aturdida quando Ellery Queen denuncia o crime, quem matou confessa-se e salta
pela janela em direção à morte.
É este o fascínio da ilusão que provoca o romance, ficamos de boca aberta com
as explicações dadas quanto à monstruosa tragédia engendrada por alguém que
precisava de muito dinheiro. Para Ellery Queen é tudo simples: “Eu procurava um
significado em todas as coisas, procurava um falso significado. Daí resultou
que me pareceu necessário investigar todas as coisas que estivessem ao
contrário, afinal o assassinato tivera fome e comera uma tangerina, trouxera o
“Laranja Chinês”, selo valiosíssimo, que lhe custou a vida”.
De leitura obrigatória, Ellery Queen é o sumo sacerdote da literatura de
crime e mistério, de todos os tempos.
Belo texto que muito gostei de ler.
ResponderEliminarDomingo feliz
Claro que gostos não se discutem mas, a Queen, prefiro-lhe S. S. van Dine (1888-1939), até pelo lado clássico da sua pequena obra, que seguia escrupulosamente as suas "Vinte regras para escrever romances policiais".
ResponderEliminarCumprimentos.