Uma pedra preciosa da literatura luso-guineense:
Amadu Dafé consagra-se como grande escritor
A obra intitula-se A Cidade Que Tudo Devorou, por
Amadu Dafé, Nimba Edições, 2022. O escritor já dera sinais de uma intensa
singularidade com outro livro de denúncia, Ussu de Bissau, a revelação
do tráfico sexual e de escravatura juvenil, a pretexto de educação religiosa
num país estrangeiro. Agora, tem como cenário devastador a cidade de Bissau,
mune-se de uma escrita onde sobressai um crioulo aprimorado, uma arquitetura
literária onde se intercalam processos de realismo mágico onde avultam irans,
poilões, florestas sagradas, fantasmagorias, a par de episódios de extrema
violência, onde é plausível assassinar um presidente da República, um ministro,
um deputado poeta, intermediários da droga, altas patentes das Forças Armadas.
A que se deve este título? O investigador António Duarte
Silva refere num dos seus trabalhos como Amílcar Cabral temia que após a
independência a elite dirigente do PAIGC cedesse aos confortos da cidade, seria
uma devoradora dos sonhos da luta, como aconteceu, assenhorearam-se das casas,
locupletaram-se com dinheiros, quiseram carros topo de gama, esqueceram o
interior, engendraram o desgoverno onde falta a eletricidade, o ensino, a
saúde, o património cai aos bocados e jamais se perde a tentação do golpismo ou
a fossanguice.
Nesta atmosfera de desastre, pespontam figuras que irão
marcar, no futuro, o que de melhor há na literatura luso-guineense: Sprança,
N’sunha/Sónya, António Tabaco, Almirante, Kanserá Só, Lante Ndan Kdutar,
movem-se entre o misticismo, atmosferas premonitórias, nomes míticos que
permanecerão indecifráveis, como General Anónimo. Somos arrastados para uma
sociedade de expedientes onde o herói é carteirista e marinheiro, observa
golpes de Estado e atraído a ciladas. Há pais ausentes que lembram o fantasma
de Hamlet ou tomam a forma de um gato, há amores intensos que acabam num tiroteio
que mata um ou outro. E o leitor que se prepare para cenários de horror como
aquela guerra civil, assim descrita: “A guerra tinha eclodido no princípio da
época da chuva que cessara, depois de alguns anos, no fim da época da chuva.
Foi preciso esperar por mais seis meses para outras águas virem lavar o sangue
e purificar o chão. O sangue derramado decorria pelas valetas das cidades
atingidas, como rios galgando do nascente para os mares. Os corpos mortos,
putrificando-se nas ruas que os projéteis esburacaram, alimentavam, que-farte,
os jagudis, os corvos e as moscas. As casas destruídas pelos canhões abrigavam
cães e gatos abandonados.” Amadu Dafé não só faz interferir magistralmente o
crioulo como manobra com agilidade frases marcantes. Um exemplo: “Há três
coisas que não voltam atrás: a bala, a palavra e a oportunidade.” Ele
participará nessa guerra civil e dá-nos o quadro horrível do que aconteceu no
quartel de Mansoa: “Quando as tropas da junta militar invadiram aquele quarte,
não fizeram reféns, nem presos de guerra. Os corpos mortos dos chamados aguentas,
crianças e jovens guineenses lutaram ao lado dos militares estrangeiros, vindos
do Senegal e da Guiné-Conacri, para a junta governamental, foram largados nas
ruas para os jagudis, os cães, gatos e corvos se alimentarem. A cidade
tresandava a sangue podre e a almas desabrigadas.” Apaixona-se por Sán’nan,
tudo parece que está a correr bem, um superior leva-o para um golpe de Estado,
escapam o presidente da República e a mulher, muito nos vai contar a figura nº
1 do regime, enquanto os papagaios vociferam palavrões. Presidente e mulher
serão assassinados no dia à queima-roupa e somos transportados para um festim
de animismo, iremos ouvir falar na filha do fantasma, carga metafórica não
falta a esta figura, ela própria tem sangue luso-guineense, assistirá a cumes
de violência mas dirá sempre que a esperança nunca morre, virá de Lisboa, tem
dotes premonitórios também, quer o destino pela mão do escritor que Sprança
andará a seu lado até o termo desta narrativa feita de ferocidade na cidade que
tudo devorou.
Torcendo e retorcendo, e de tal distorção poder deixar
tudo claro, é dom da batuta deste escritor que nos embaraça com histórias que à
primeira vista têm pouco princípio, meio e indiscritível fim, que nos revela,
pondo-nos numa ampla vitrina, uma cidade de Bissau escalavrada, dominada pela
menoridade política e as oligarquias da droga. Quando necessário, somos
fulminados pelas atmosferas mágicas, conversas fantasiosas, passeatas pelo
tempo colonial, imprevistamente há revelações de paternidade, informações sobre
os santuários da droga, acabamos envolvidos em golpes mafiosos, há muita
aventura e a ação é tanto bestial como violenta, e até se contam histórias do
passado como os fuzilamentos daqueles militares que tinham servido debaixo da
bandeira portuguesa.
Questiono se esta obra não é um retábulo cercado de
figuras que privilegiam o monólogo e o solilóquio, dando unidade à trama,
clarificando toda a dimensão do Estado falhado, a todo o momento este esplêndido
romance mostra-nos a Guiné-Bissau nua e crua. Um exemplo: “A ausência do Estado
e da sua função de segurança e garante do bem-estar económico e social deixava
os guineenses entregues à lei da selva e à diarreia em que consiste o crime
organizado. O país dispõe de oitenta e oito ilhas e ilhéus, das quais apenas
vinte e uma são habitadas e o resto servia para a instalação de bases para a
produção e o armazenamento de drogas, pistas forjadas para a aterragem de
avionetas. Mais de metade das ilhas e ilhéus eram propriedades dos muitos
falsos empresários do país. Na opinião do mundo, as ilhas eram apenas usadas
para o armazenamento e a distribuição da cocaína oriunda da América do Sul.
Todos os anos, eram apreendidas nos portos dos países europeus mais de cem
toneladas de cocaína exportadas da Guiné. Os ganhos eram astronómicos para os
quartéis, mas era todo o país quem pagava pela fatura. A paixão dos europeus
pela cocaína condenava, assim, a Guiné-Bissau e o seu povo a uma vida de
miséria e de terror, tornando-a prisioneira da sua própria indignidade. Em
paralelo, a Europa investia milhares de euros no combate ao tráfico das drogas,
financiando o Estado guineense a adquirir equipamentos e a formar homens para
uma guerra impossível de vencer. Os fundos acabavam por servir aos mesmo de
sempre: políticos pertencentes às mesmas redes de narcotráfico, que encontravam
assim uma maneira rentável de recuperar as perdas pelas drogas apreendidas nos
portos do velho continente.”
Haverá execuções, gente importante tomba, andam
perseguidos e perseguidores à procura de algo a que chamam “produto”. Tudo
acabará num caos, Sónya e Sprança vão para Bissilanka, tudo parece culminar num
encontro luso-guineense. E vamos sonhar que a esperança nunca morre. Leitura
imperdível, temos aqui um grande escritor da lusofonia.
Mário Beja Santos
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