Como é que alguém sofre tanto sem perder a inocência?
João Pinto Coelho escreveu as suas primeiras obras num
ambiente envolvendo o Holocausto e as suas múltiplas reminiscências. Não vive
confinado a um ambiente de escrita paroquial, tem uma biografia que lhe permite
abalançar-se ao que se designa literatura-mundo, anda fora de portas, enriquece
o nosso património literário exigindo-nos mergulhar em territórios pouco
vulgares da escrita em português. É certo, tivemos os exilados e os
estrangeirados, os que percorreram Brasis e Américas, Holandas e Macaus, mas há
na escrita deste homem uma quase obsessão por temáticas que roçam a tragédia
grega ou que nos permitem pensar em grandes mestres da dramaturgia clássica,
penso no teatro de Pierre Corneille. Desta feita, saímos da Europa, o palco
situa-se na Nova Inglaterra, haverá segredos e mentiras, mentiras redobradas ou
que geram estados de dúvida, confissões, remorsos e expiação, o resultado é um
belíssimo romance: Mãe, Doce Mar, por João Pinto Coelho, Publicações Dom
Quixote, 2022.
“Tinha 12 anos quando conheci a minha mãe – esta frase dá
para tudo, até para abrir um romance”. O encontro mãe e filho dá-se no
aeroporto, o filho vem do orfanato, a mãe, saberemos mais tarde, entre os seus
acidentes de percurso é coreógrafa. E somos induzidos a uma história do século XVII;
um chefe de congregação, incómodo para a igreja anglicana, é despejado na
América, vai na companhia de três filhas, cabe-lhes ir viver com o povo
Wampanoag, virá uma calamidade, as três filhas morrerão, em sua homenagem darão
o seu nome a três faróis de Cape Cod. O menino que veio do orfanato chama-se
Noah, cedo convive e ganha estima a um padre jesuíta, homem um tanto
excêntrico, proprietário de um Rolls-Royce pintado com cores berrantes. Resta
dizer que a mãe de Noah se chama Patience, veremos que o nome não é meramente
alegórico.
Noah sente-se feliz naquele microclima, os anos passam,
Noah apaixona-se por atividades teatrais, há ali um teatro conceituado, o
Melrose, mas não há melhor fruição para Noah que assistir ao pôr do sol em As
Três Irmãs. É nisto que o romancista nos descreve uma tragédia, em termos de
cortar o fôlego:
“Como era habitual, também nessa quarta-feira a
Commercial Street se encheu de operários durante a pausa para o almoço. Para
não fenderem os ossos com o friasco de janeiro, terminada a refeição, pouco
pararam quietos e, cigarro após cigarro, falaram com os dentes cerrados e
sempre a bater os pés. A nortada endoidecia por entre os edifícios e os seus
tentáculos chicoteava os homens e o casal de cães vadios, àquela hora atraído
pelo cheiro a refeitório. Para se resguardar, havia quem se encostasse às
paredes do depósito, o cilindro faraónico que dava ao resto da fábrica essa
aparência irrisória das cidades de brincar. Com cinco andares de altura e o
dobro de largura, parecia prodigioso que o peso daquele tanque não afundasse no
solo. Só um arcaboiço assim seria capaz de conter as doze mil toneladas de
melaço industrial que a Purity Distilling Company havia de fermentar para
produzir etanol. Chegado o meio-dia, já o grosso dos operários desistira do
intervalo e recolhera ao seu posto. Ficaram dois ou três a enrolar uns cigarros
e a enxotar a insistência dos cães.
E foram os animais os animais os primeiros a dar sinal.
Já com as orelhas em riste, ergueram a cabeça para farejar o nevoeiro. De
repente, baixaram a cauda, agacharam-se, olharam para um lado e para o outro e
saíram disparados. Os operários nem ligaram, até o estampido metálico deflagrar
nas suas costas. Logo a seguir, mais um estoiro, parecia que alguém disparava
contra o grande tanque de aço, e depois só o silêncio, uma pausa demoníaca a
anunciar a catástrofe. Assim que olharam para trás, os homens não foram a tempo
de se despedir da vida: o colapso do depósito rebentou-lhes os ouvidos e
projetou-os para o chão. Antes de serem esmagados, foi dali que observaram o
derrame do melaço, quase dez milhões de litros que formaram uma onda com altura
de oito metros.”
O leitor acompanhará, um tanto aterrado, todo este
cenário apocalítico. O solilóquio do padre jesuíta não nos deixará sossegados,
pressagia-se que há para ali revelações que escondem outras, e o que nos
empolga nesta narrativa é que João Pinto Coelho parece esculpir carateres e
formas de linguagem tipicamente norte-americanas, sente-se a plasticidade da
nossa língua que nem o milímetro tropeça nestes ecossistemas alheios. Há um
estranhíssimo assassínio que dará circunstância ao aparecimento do escritor
Charles Dickens. E temos o ambiente de um colégio onde foi educada Patience, a
Academia de Santa Merici, aluna que fez para ali mil tropelias, Patience irá
trabalhar com Martha Graham, a bailarina e coreógrafa que revolucionou as
técnicas do bailado, terá enorme influência na preparação da mãe de Noah. Agora
sim, vai começar uma verdadeira tragédia grega, há espectros em cena, uma
importante senadora, uma política influente, afinal a mãe de Patience, e que
tem como confidente o padre jesuíta. Há chuvas torrenciais, sente-se a força do
temporal e o ribombar das ondas a explodir na praia. Patience entra em grande
sofrimento, Noah anda atarantado com o comportamento inusitado da mãe.
E chegou a hora das grandes confissões, Noah ficará a
saber quem é o seu pai. Acicatado pela escrita, escreve um livro, a editora é
implacável, quer que ele conte tudo, que não se despeça do livro sem acender as
luzes. É um dos textos mais luminescentes da literatura portuguesa, deixa-nos
uma margem de dúvida se realmente tudo se passou assim, por que razão aquela
mãe expiou, aquele pai fez confissões tremendas, e como é bem próprio das
histórias bem contadas todo aquele desfecho final nos leva a questionar se a
inocência de pai e mãe era mesmo inocência e se a sua morte os encontrou
arrependidos, depois de tanto jogo da mentira e dos claustrofóbicos segredos.
E, mais do que tudo, ficamos fascinados por aquele mar da Nova Inglaterra e
aqueles faróis cujo nome ficou associado a vítimas de uma tragédia que ocorreu
séculos antes, no tempo em que ali havia índios.
Leitura imperdível.
Mário Beja Santos
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