segunda-feira, 7 de novembro de 2022

Futebol-paixão ou a sede do Olimpo dos deuses do estádio.

 





Futebol-paixão ou a sede do Olimpo dos deuses do estádio

 

 

Campo dos Bargos, O futebol ou a recuperação semanal da infância, por Jorge Reis-Sá, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2021, é um livro para adultos capazes de estender a memória até à infância, uma narrativa que só aparentemente tem âmbito regional, clubes de eleição estendem-se por todo o país, mas como o intrinsecamente regional pode ganhar fulgor universal, este Campo dos Bargos é uma história muito pessoal onde cabe o país todo, quando esse todo se movem em torno do futebol-paixão. Só na aparência o autor põe no altar o clube de Famalicão, voltando à infância iremos conhecer a história deste clube, alguns dos seus protagonistas, o desgosto deste aficionado em não poder chutar, por ser manco, há uma história familiar que ele relevará com tocante ternura, este Famalicão será ovacionado nos Bargos e em estádios dos chamados “os maiores do futebol”, ele teimará, ao longo da narrativa em associar o clube da sua terra a poderosas e por vezes muito íntimas recordações da infância, não faltarão os membros da família, um muito velho, o avô, o pai já falecido, e o Guilherme, aquele filho que depois de experimentar simpatia por um dos maiores do futebol, já deu o coração a quem representa os famalicenses; aliás, os filhos, Guilherme e David, são sócios apaixonados.

É uma história futebolística que até mete locutores, treinadores, deuses do estádio; há os jogos memoráveis, as peregrinações aos Bargos, seja para ver o excelso jogar com o Chaves ou o Belenenses ou um dos três graúdos; aquela memória vive em constante inquietação, há muita conversa nas redes sociais, sobretudo no WhatsApp. E há confidências levadas da breca, por exemplo, o Famalicão nem sempre foi azul e branco, o autor resolveu ir falar com Pinto da Costa, o Famalicão nascera em 1931 e vestia verde e branco, uma camisola com duas faces verticais, semelhante ao equipamento do Sporting; anos depois decidiu-se outra coloração: azul e branco, e daí vem a história dos diferentes equipamentos, se estas cores têm importância ou não na televisão. E que o leitor fique ciente que os Bargos conhecem mutações: “O Campo dos Bargos, dantes, tinha um peão enorme, dividido pelo topo norte e pelo topo sul. Vi o campo cheio de gente em pé, vi as árvores nesse mesmo peão, que fazem respirar a relva próxima, serem trepadas pelos miúdos para ver melhor o jogo. Vi a bancada que ainda hoje chamamos nova, a que se encontra no lado nascente e oposto à dos cativos, construída pouco antes da subida à Primeira Divisão nos anos 90, cheia de pessoas que, num dos cantos, permitiam a claque. Agora, essa bancada tem uma caixa de segurança para a claque. Tem outra para os adeptos visitantes. E o peão está fechado, impedido de ser calcado por quem quer ver a bola como antigamente. Sim, bem sei, é preciso conforto e não gente a ver o jogo em pé. Mas se o conforto é estar sentado ao sol e à chuva na bancada (como na maior parte dos estádios portugueses) e pagar um balúrdio por isso, mais vale aceitar que o peão ainda existe.”

E não se pode esquecer o merchandisisng do clube, onde cabem porta-chaves, kispos e máscaras. Texto pontuado por hossanas e exultações ao futebol: permite o fim da razão e o endeusamento de meros mortais; sonho inacabado de se pisar o relvado e marcar o golo na final da Taça de Portugal, aos 90+6 minutos… O equívoco faz pensar que todos os jogadores são milionários, e daí uma larga observação sobre transações e até os negócios de investimentos, muitos deles de proveniência estrangeira e de caris duvidoso. Mas é permanente a exultação: o futebol é o melhor pretexto para selecionar memórias felizes, não falta a reflexão se se deve ganhar a jogar mal ou perder a jogar bem; e que o leitor não esqueça que o filho da vida foi inscrito como sócio 9615, poucas horas depois de nascer e antes de se tornar cidadão português.

Fatal como o destino, analisa-se o papel do árbitro e a chegada do VAR, o autor faz precisão: “O VAR não é um vídeo-árbitro, VAR são as iniciais de Video Assistance Referee. Não há uma maneira bonita de o traduzir para a nossa língua, mas deverá ser algo como Assistente Vídeo do Árbitro ou Árbitro Assistente com Vídeo (…) Sou um rendido ao VAR, um verdadeiro apaixonado pela mudança de paradigma, claro que há questões incómodas sobre o fora de jogo, e convém conhecer as regras: “A doutrina divide-se nas conversas que fui tendo. Já houve foras de jogo marcados com um centímetro entre a parte do corpo do avançado mais à frente e a do defesa mais atrás”. E daqui parte para dar uma rabecada ao galinheiro da Luz, foram ao Glorioso ver o Famalicão e relegados para trás da baliza, discriminação e insulto, a receber visitas o Benfica demonstra ser um péssimo clube. “Infelizmente, em muito boa má companhia.”

E há a imprensa desportiva, perfeitamente manietada pelos grandes da bola, vê-se à vista desarmada que é um jornalismo quase exclusivamente ao serviço dos favoritos. O autor também tem os investidores debaixo de olho, escalpeliza as sociedades anónimas e o caso do Belenenses vem à baila.

Retornamos aos Bargos, do universal passamos ao regional, a aldeia do autor é a maior freguesia de Famalicão, tudo próximo da geografia e do coração e afloram memórias vibrantes dos seus tempos de criança quando saía de casa com o avô pelas treze menos vinte, o cântico da claque, os impropérios contra a mãe do senhor vestido de preto, tumulto tão forte que era impossível ouvir-se o sino da igreja. É hora da despedida. “Escrever este livro teve vários objetivos. Pensar o jogo, o campo e o que os envolve. E fixar memórias, abraçar os meus filhos com as suas histórias, lembrar o meu avô quando ele se começa a esquecer de si. Mas também fixar o meu irmão e o orgulho e a inveja que tenho do trabalho dele nos Bargos, levando-me sempre comigo em cada impropério mal-educado ao quarto árbitro.” Lembra o Dr. Carvalho, que lhe tratou dos problemas do pé, um pé especial. E o final desta viagem pelo futebol-paixão é quase romance: “O Dr. Carvalho morreu passado alguns anos. Sentei-me ao fundo da igreja, sem falar com ninguém, dizendo-lhe obrigado. Lembrei a bota ortopédica com o Quinito a brincar comigo. O rapaz que, de sapatilhas, entrava no autocarro do Famalicão para ir ver os jogos fora. (…) Viver um desastre à espera de acontecer – e a felicidade também, o que é o mesmo.”

Se há futebol-paixão que leve a desmesuras fatídicas, com claques a esmagar claques, e dezenas de mortos, há este futebol-paixão em que se recupera a infância que acabou por tomar conta por tudo quanto se passa na nossa idade maior, em que mantemos o nosso estádio perto do coração.


Mário Beja Santos






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