Longe
de mim pensar que existe uma fortuita coincidência entre os sistemáticos
slogans, jargões e mantras, diariamente lançados por gente que, discreta ou
indiscretamente, se situa na oposição à direita do governo, e a “miraculosa”
proposta que dois professores catedráticos vêm apresentar para nos tirar de
grandes bloqueios, de leis sindicais estalinistas, do facto de termos um Estado
gordíssimo e de sermos reféns de grupos de interesses, uns inconfessáveis,
outros não tanto. É este o título do novo Livro do Desassossego (pobre Fernando
Pessoa!): Porquê o País do Salário Abaixo dos Mil Euros, por Luís
Valadares Tavares e João César das Neves, Publicações Dom Quixote, 2023. Convém
ler sem qualquer tipo de preconceito quanto ao diagnóstico e mensagens elaborados
pelos dois autores, mas é pertinente perguntar a que título se vai buscar para
prefaciar a obra aquele Luís Marques Mendes que nos garantia na televisão que o
Banco Espírito Santo estava para dar e durar… a que grupo de interesses estará
ligado este aldrabão de feira para vir falar da pobreza e dos baixos salários?
Vamos então ao miolo do livro inspirador.
O
mesmo Marques Mendes arenga que somos um país com uma atitude de facilitismo e
contemporização; atenção, isto de resolver os baixos salários não pode ser de
um dia para o outro, há para aí guerras, riscos de uma nova Guerra Fria, pode
até acontecer que vamos ter uma União Europeia a várias velocidades, dirão no
final do ensaio, através de uma carta ao leitor avisado…
Os
autores apresentam-se como independentes, coisa que não são, e escrevem com o
maior descaro que vivemos um projeto reformista e transformador entre 1985 e
1995 (é pura coincidência, Cavaco Silva foi notabilíssimo a gerir os fundos
comunitários e governou sem grupos de interesses, nem os do BPN e os que mais
que se sabe); o que precisamos agora é de trabalhar para um crescimento mais
sólido para superar esses baixos salários, ultrapassando o baixo crescimento
económico e encontrar a varinha do investimento, precisamos de capital e de acabar
com bloqueios. Quem governa atualmente, diz o mesmo Marques Mendes do BES
saudável, odeia fazer a pedagogia do espírito reformista, e saúda o livro como
“um sobressalto cívico indispensável e uma importante pedrada no charco”. Há
pessoas que se conferem uma inaudita importância, quando falam aos amigos da
corporação ideológica.
Os
dois autores apresentam-se em conversa, diga-se de passagem, uma conversa
estranhíssima, gostava de saber quem na vida real faz perguntas daquelas e
recebe respostas daquelas, combinaram entre si o trabalho de casa, um faz uma
pergunta de seis linhas e o outro responde com seis páginas, uma conversa
normalíssima, como se vê. Temos, primeiro, ambições, o desafio da
produtividade, há que pôr termo a este Estado glutão, o nosso país tem uma das
regulamentações mais restritivas e obstrutoras de toda a Europa, distorcemos o
quadro dos salários, e um dos professores catedráticos da conversa ao jeito
platónico afirma categoricamente, assim: “Portugal tem um sistema laboral
doente, ainda devedor das opções estalinistas dos tempos revolucionários e dos
sucessivos mitos de soluções fáceis.” Enfim, uma máquina emperrada,
insuscetível de um processo de desenvolvimento. Ganhamos pouco e a
produtividade é baixa – daí a clamorosa pobreza e a ausência de capitais. É
facto que melhorámos substancialmente com o 25 de Abril, avançou-se imenso
sobretudo nos tempos áureos do cavaquismo: programas de investimento na
educação, desenvolvimentos das redes viárias, cresceu o apetrechamento em saúde
e nas redes de cuidados primários, reabilitaram centros urbanos e houve
importantes investimentos municipais, deram-se passos gigantes no tratamento
das águas residuais e na gestão dos resíduos sólidos, etc., etc. A seguir, duas
décadas com dificuldades conjunturais e significativos erros políticos – já
sabemos quem é o culpado. Há problemas graves, caso dos adiamentos sobre o novo
aeroporto de Lisboa, há estudos desde 1973, ninguém toma decisões, não há
qualquer claridade nos grandes planos para a infraestruturação de Portugal… E
os autores vão viajando por diferentes setores, a saúde, a educação (a crítica
às corporações é permanente, é uma crítica velada, nunca se fala nas
confederações, nas ordens profissionais, fala-se sim nos reformados e
pensionistas e nos funcionários públicos, os autores são muito corajosos mas
nada de especificar quem são as corporações
que bloqueiam e nos obrigam à estagnação); a viagem prossegue pelas
finanças públicas, critica-se de forma acerba os serviços prestados pelo
Estado, Estado esse que é um elefante com 485 unidades só na estrutura central,
há sempre este exército de funcionários públicos, este Estado reduz a economia
do mercado, a justiça administrativa é um pesadelo e um dos autores pergunta ao
outro se é possível melhorar o Estado, dão-se palpites, por exemplo, redução do
número das entidades da Administração Pública aos números existentes em 2002;
introdução de indicadores de desempenho para as entidades públicas, tudo numa
lógica de redução da despesa; temos a questão da produtividade, e momentos há a
quem lê estes senhores se interroga se este problema é mesmo de há duas
décadas; há falta de capital, o número de funcionários com habilitações
superiores é diminuto (embora superior à Alemanha e à Itália); há as tenebrosas
leis laborais quem também contribuem para a estagnação dos salários e da alta
precaridade (aí os sindicatos são altamente responsáveis), só se interessam em
defender quem tem emprego, nunca defendem quem não o tem; há que aceitar a
reivindicação dos docentes quanto à contagem de tempo (os outros trabalhadores
da administração pública não contam), vai-se por aí fora até ao mercado de
capitais, e até se moraliza com a baixa poupança e a má qualidade dos
investimentos, perdemos a orientação financeira que tínhamos em gerações
anteriores, e avança-se com uma solução críptica que é a de renunciar ao mito
dos “direitos europeus” para passar a sublinhar as responsabilidades da
pertença ao clube (?). Depois de uma entrevista de Nicolau Santos temos a carta
ao leitor avisado, isto é, bem recomenda S. Tomás, mas no mundo em que vivemos
tudo isto pode descambar com a economia de guerra, o enfraquecimento de várias
democracias, os regimes musculados, o protecionismo, a indiferença pelos riscos
ambientais, os riscos sociais. E daí ser forçoso apresentar cenários, alguns
deles da maior inquietação. Para se evitar o pior vamos ouvir o conselheiro
Acácio: “Hoje vemos regressar os velhos espectros que há cem anos conduziram a
catástrofe, e a questão crucial é saber se aprendemos ou não a lição, mas
nestes contextos de alto risco voltaremos a ter os destinos da História nas
mãos dos seus principais políticos. Qual será o seu bom senso e o seu sentido
de responsabilidade relativamente ao destino de todos nós, dos nossos idosos e
dos nossos descendentes? A resposta será dada nos próximos anos!”
Enfim,
nada melhor que consultar a Pitonisa ou enfrentar o silêncio da Esfinge…
Tanto preconceito....
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