Salazar
tem vindo a ser editado entre o essencial e o supérfluo. Há os vasculhadores da
coscuvilhice, à procura de amantes, de consultas a bruxas e videntes, a sua
relação com os milionários; há os que revelam que na sua obra havia também um
fosso entre o verso e o reverso, desmontam a animosidade do ditador aos
partidos como agências de colocação e mostram provas de centenas e centenas de
cartas que revelam que em São Bento também havia a fraqueza do compadrio; têm
sido feitas inúmeras incursões sobre o seu pensamento político, tudo sabe a
água chilra, a biografia política de Salazar, escrita por Filipe Ribeiro de
Meneses, tem futuro garantido para os próximos vinte anos, nada tem a ver com
as laudes de Franco Nogueira, que se arrogou de escrever para a História, sem o
contraditório, chegando a pôr a palavra de Salazar que este queria resistir a
uma terceira guerra mundial conferisse importância ao nosso Império, imagine-se
a barbaridade; houve até um historiador, que deixou obra válida, Joaquim
Veríssimo Serrão, que reservou um volume da sua História de Portugal à era de
Salazar, baseando-se nos seus discursos, no Diário do Governo e nas
extraordinárias memórias do Almirante Américo Thomaz. Acontece que há gente
disposta a repetir o que disse Salazar, como citá-lo ajudasse a compreender o
homem e a sua obra, um dos tais enganos em que muitos incorrem.
Fernando
Castro Brandão tem investigação sobre a figura de Salazar. Acaba de publicar
Salazar, Citações, da sua organização, Livros d’Hoje, 2023. Na apresentação,
apela à necessidade de isenção para estudar a figura do chefe absoluto do
Estado Novo. E escreve como um Santo António a falar aos peixes: “Para julgar é
indispensável conhecer. Qualquer juízo de valor do passado não deve ser feito à
luz da realidade atual. Importa, portanto, ter um enquadramento histórico; sem
isso a visão torna-se necessariamente distorcida.”
Pode
ser fraqueza minha, nenhuma obra de citações permite iluminar a cena do ditador
do Estado Novo e de meio século da História de Portugal. Vamos ter fraseado
solto sobre o que Salazar discursou ou conversou sobretudo com António Ferro ou
alegadamente terá dito a Franco Nogueira sobre Portugal, a política, o
Ultramar, a censura, a educação, a democracia e o comunismo, como avaliou
certas personalidades, e até Salazar por Salazar. Como não há comentários, para
quem o está a ler em estado de inocência, ficamos a saber que ele falava com
muito à vontade da raça portuguesa, que o lugar da mulher era como dona de casa
e fada do lar, que umas das vezes éramos um pequeno país sobrepovoado, outras
vezes um país grande; que sobre nós recaía uma fatal brandura dos nossos
costumes, que o nosso grande problema é o da formação das elites que eduquem e
dirijam a nação; que o fado amolece o caráter português, que somos medularmente
individualistas, se bem que generosos, afetivos e emocionais; que a falta de
perseverança é o feito capital dos portugueses; que a História de Portugal é
uma oscilação entre tirania e anarquia e que os portugueses odeiam os seus
chefes e atacam-nos sem mercê até derrubá-los; para que não houvesse qualquer
equívoco foi dito e redito: “Somos antiparlamentares, antidemocratas e queremos
constituir um Estado corporativo; também disse a uma jornalista francesa,
Christine Garnier que o poder só pode agradar aos tolos ou aos predestinados, o
historiador Filipe Ribeiro de Meneses evocará que ele se considerava
imprescindível, a ponto de numa peça política notável, o discurso que proferiu
em Braga em 28 de maio de 1966, após uma síntese que apresentou do que era o
país antes do Estado Novo e sob a sua alçada, terá insinuado que era o momento
azado para pôr termo a uma amargurada vida política, os oligarcas agitaram-se
apavorados e pode ver-se no documento televisivo o olhar desdenhoso que ele
lhes lançou, proferindo que não se podia mudar o rumo às coisas e ele teria que
ficar ao leme, o rumo a seguir era inquestionável e exigia-lhe tal sacrifício.
Aqui
se faz uma pausa para verberar a falta de enquadramento e até da diacronia nas
citações, se é verdade se naqueles anos 1930 e 1940 ele podia exaltar, sabendo
de largos consensos, a União Nacional, ele irá definhar, Marcello Caetano
di-lo-á sem rodeios, passara a ser um lugar onde se recebiam os amigos do
regime e se fazia posta restante de diferentes peditórios, desde obras públicas
a empregos. Essa atmosfera não é espelhada na natureza das citações que o autor
regista; porém, não deixa de ser curioso que quando Salazar em discurso se
refere ao assassinato de Humberto Delgado mentirá com todos os dentes da boca
em 1967, dizendo que Delgado vinha entregar-se, isto quando ele já sabia da
execução por uma equipa da PIDE.
Fora da realidade está uma parte considerável
da visão do ditador, no Pós-Guerra. Dirá a Jacques Ploncard d'Assac, um
escritor e jornalista da Extrema Direita, fugitivo do regime de Vichy, que “A
África é o complemente natural da Europa, necessário à sua vida, à sua defesa,
à sua subsistência. Sem a África, a Rússia pode desde já ditar ao Ocidente os
termos em que lhe permite viver”; como dirá em discurso que estávamos em África
há 400 anos, frase rotunda, pois não explica aonde e como; completamente hostil
ao princípio da autodeterminação…
Em
nenhum momento desta antologia de citações o leitor preparado ou impreparado
entenderá o objetivo da obra; se era para perceber o homem no seu tempo, não é
um ramalhete de citações (diga-se de passagem, algumas delas bem urdidas) que
nos levam ao esclarecimento dos mais de 40 anos de regime que ele liderou. Já
sabíamos que era anticomunista, que tinha achado muito bem aqueles primeiros
anos da obra de Hitler a escorraçar os comunistas e os outros, que os pintores
que ele preferia chamavam-se Henrique Medina e Eduardo Malta, e que não se
coibia de certas frases de jactância e prosápia, cuidando da sua imagem de
sábio, veja-se esta conversa com o António Ferro: “A causa da atual decadência
da Arte e da Literatura parece ser estranha à ação do Estado e estar antes
ligada à feição da vida de hoje. As grandes obras constroem-se no silêncio, e a
nossa época é barulhenta, terrivelmente indiscreta. Hoje não se erguem
catedrais, constroem-se estádios. Não se fazem teatros, multiplicam-se os
cinemas. Não se fazem obras, fazem-se livros. Não se procuram ideias,
procuram-se imagens. Por outro lado, os meios mecânicos – o fonógrafo, a
telefonia, etc. – matam a produção, congelam-na. A vida é, assim, toda
exterior, toda artificial. Por isso, entre os artistas, só os arquitetos e os
urbanistas têm cada vez mais que fazer.” E com a maior desfaçatez deste mundo,
referindo-se a Teilhard de Chardin, chama-lhe mistificador, o que, no mínimo,
brada aos céus.
Reconheça-se
que este político era um prosador de primeiríssima água, que não precisava de
voltar à ribalta neste fogaréu de frases que de modo algum iluminam o
conhecimento ou a compreensão do que foi a ditadura do Estado Novo e o que ia
na cabeça do seu chefe. É possível que esta obra seja muito boa para nostálgico
e saudosistas, mas quanto a isenção…
Mário Beja Santos
Sem comentários:
Enviar um comentário