terça-feira, 12 de dezembro de 2023

O retrato de 33 rios de todos os continentes, entre a guerra e a paz, o desastre e a esperança.




 


A Terra Tem Sede, Guerras e paz nos reinos dos rios, por Erik Orsenna, Temas e Debates, 2023, é um livro fascinante sobre o acesso à água, um pouco por todo o mundo. Mais fascinante ainda pela sedução da leitura, Orsenna regala-nos com uma inesperada visão holística, onde não faltam as dimensões antropológica, sociológica, política, etnológica e ambiental. Há mesmo algo de romanesco na sua narrativa, os pormenores tecnocientíficos são expostos com a singeleza de um mestre da escrita (Orsenna tem recebido prémios literários, como o Goncourt). Lançou-se a esta aventura alegando haver cinco fortes motivos: o rio é água, é um caminho que viaja, é uma força que só pede para vir ajudar-nos, é um reino onde não faltam lendas, religiosidade e o desenvolvimento de civilizações, e é também o Tempo, o tempo que passa e o tempo que faz. E dirá também que a Terra tem sede. “É essa a principal razão pela qual a maior parte dos rios deixou de proporcionar água suficiente para responder ao aumento das necessidades. Recebendo menos das suas fontes – chuvas, neves ou glaciares – como querem que deem o suficiente a uma população mundial cada vez mais numerosa, cada vez mais consumidora, quero eu dizer mais esbanjadora?”

E começa a sua viagem pelo Danúbio e o Reno, caminha para o próximo oriente e visita o Tigre, o Eufrates e o Jordão, em plena Ásia o Ganges, o Bramaputra, o Mekong, os rios Vermelho e Amarelo; segue-se a Austrália, o Darling e o Murray; atravessa-se o Pacífico e começa-se na América do Norte, o São Lourenço, o Mississípi e o falecido Colorado, o Panamá que é mais rio do que canal, os rios opulentos da América do Sul, obrigatoriamente o gigante Amazonas; e depois os grandes rios africanos, o Senegal, o Níger, o Congo e o Nilo, não faltarão advertências finais.

A leitura de tão saltitante, peripatética, viagem irá preocupar-nos: o Garona está seco, há falhas de gestão aqui e acolá; fez-se triunfar a via rodoviária, poluente, rios importantes deixaram de ser utilizados como vias de transporte de mercadorias; iremos ouvir falar de conflitos de água, na partilha/uso, veremos os efeitos da poluição e o preço da mudança climática, com inundações, a salinização dos deltas e a degradação da agricultura; a política estará sempre presente, Saddam Hussein mandou secar o Chatt-El-Arab, culminou num desastre ecológico e na deslocação de xiitas, seus inimigos; a barragem turca de IIlsu submergiu habitações trogloditas dos curdos; o Jordão apropriado pelos israelitas, os palestinianos deixados à míngua; e há depois aquela moldura em que se mistura a religião e o frenesim industrial, é o caso da Índia e da China; esta, que em 20% da população mundial apenas dispõe de 6% dos recursos hídricos do planeta, e que bem ou mal, sendo um dos maiores poluidores recorre à ciência e à tecnologia na proteção ecológica e ambiental.

O autor deixa-nos registos tremendos de como o uso da água pode matar povos. Ele está em Calcutá e alguém lhe diz que como ele vai no dia seguinte para o Bangladesh que diga às autoridades locais que não podem receber mais ninguém. Um ministro em Daca, o ministro da Gestão das Águas, leva Orsenna até um enorme mapa de Bengala. “Uma vez que dentro de algumas horas vai regressar a Calcutá, confio-lhe uma mensagem para o seu amigo indiano. Se essas pessoas não tivessem, sem nos dizer uma palavra, construído, em Farakka, uma barragem sobre o Ganges, não teríamos esta desgraça. Sabe o que é o nosso Bangladesh? Um delta. E de que é feito um delta? De todos os sedimentos arrastados desde montante. Quando deixa de receber sedimentos, quando uma barragem impede os sedimentos de chegar até ele, o delta morre. Compreende? Há outra coisa. Para que serve também um rio? Para lutar contra o mar. A sua corrente de água doce impede que a água salgada se sinta demasiado à vontade em nossa casa. Quando uma barragem reduz o caudal do rio, impede-o de desempenhar o seu papel protetor. Continua a seguir-me? Quando voltar a ver os seus caros amigos indianos que já não suportam ver os meus compatriotas entrar-lhes portas dentro, diga-lhes que, se não tivessem construído essa barragem iniqua, o Bangladesh continuaria a receber o que lhe é devido, os sedimentos do Ganges, a única coisa que permite manter-se à tona. E o mar deixaria de invadir-nos. E sabe com que consequências, além de inundar as nossas aldeias?” E explica-lhe outra consequência a que o aquecimento global não é alheio.

A aceleração da China, um cavalo a galope, é uma permanente transmutação. “Não tem alternativa. Como alimentar tantas pessoas, como oferecer-lhes o que reclamam, um modo de vida ‘ocidental’, sob pena de revolta? Como desenvolver suficientemente depressa um tal país antes que envelheça? Como acrescentar todos os anos à classe média 20 milhões de pretendentes? Como manter este crescimento louco sem destruir a natureza?” E há a falta de água. A China é filha do rio Amarelo, Orsenna irá percorrer projetos e realizações.

Sem nos determos na Austrália, somos surpreendidos quando o autor, na região dos Grandes Lagos, entre os Estados Unidos e o Canadá, nos informa que contêm um quarto de todas as reservas de água doce do planeta. Ficaremos a saber que o Mississípi corre riscos gravíssimos, o futuro de Nova Orleães e até o do Louisiana está tudo menos garantido. Os efeitos da globalização não são inócuos. Estamos na América e vamos ouvir falar do Mar Negro, um navio daqui oriundo, num dia de 2003, lava os seus tanques no Michigan, estava a oferecer à América um mexilhão com cerca de 2 cm de comprimento e dotado de uma vertiginosa capacidade de reprodução. Esta espécie de mexilhão acabou com o fitoplâncton, a cadeia alimentar foi quebrada, os pesqueiros encerraram, as águas do Michigan aqueceram, haverá consequências no Mississípi.

Falando das pragas do Níger, não se esquece o autor de referir a desflorestação do Futa-Djalon, a proliferação dos jacintos de água, o terrorismo dos jihadistas, a poluição das águas e dos solos devido às fugas permanentes de pipelines, por exemplo.

Assegura o leitor que esta narrativa feita de uma viagem por muitos rios e por muitíssimos problemas que ameaçam a paz e a segurança mundiais, conclui com um punhado de sugestões: há que encontrar desesperadamente uma outra maneira de consumir, reciclar mais é determinante, há que aprender a partilhar inventado o diálogo e a aceitabilidade. E quanto aos rios, é fulcral conhecê-los melhor, integrá-los na ação global, respeitá-los (não são um vazador de lixo, prever escassez com adaptação e reaprender a amá-los, eles são um pilar da nossa identidade, seguramente um dos maiores desafios para o nosso futuro).

De leitura obrigatória.



                                                                                              Mário Beja Santos





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