domingo, 4 de junho de 2017

Jorge de Sena, genuíno exemplo.




 
 
         Durante os treze anos que viveu nos Estados Unidos, ninguém fez tanto pela promoção da língua portuguesa e da cultura dos países lusófonos como Jorge de Sena. Entregou-se à missão em prol das letras luso-brasileiras e luso-africanas com o fervor de um neo-convertido. Toda a sua vida nos Estados Unidos foi totalmente dedicada ao magistério, à crítica, ao ensaísmo e à criação literária. Muitos dos que tiveram o privilégio de conhecê-lo não podiam acreditar que um só homem pudesse fazer e produzir tanto. Só pelo que se refere ao magistério basta dizer que, quando eu fazia a minha tese de doutoramento sob a direcção dele, havia mais treze candidatos ao doutoramento nas mesmas condições. Além disso, ministrava uma média de três cursos por semestre. Todos ficavam deslumbrados perante a vastidão da sua obra – desde a crítica literária à poesia, passando pela história da cultura e das ideias, pela ficção e pelo teatro. Quando o conselho administrativo da Universidade da Califórnia já não dispunha de mais postos para premiar o mérito de Jorge de Sena, não viu outra saída senão honrá-lo com o título de marshal da Universidade. Foi por ocasião da investidura nesse alto cargo honorífico que um dos administradores pediu a Jorge de Sena que aproveitasse a oportunidade para finalmente anunciar publicamente o nome dos coautores da obra que corria em seu nome. É que não queria acreditar que um só homem pudesse escrever tanto e desempenhar tantos cargos académicos, desde o de professor ao de investigador, supervisor de teses doutorais, conferencista através do mundo, Chefe do Departamento de Espanhol e Português e do Departamento de Literatura Comparada.
         Tive a honra de encontrar Jorge de Sena pela primeira vez em fins de Dezembro de 1965, em Chicago, por ocasião do congresso anual da Associação Americana de Línguas Modernas. Decidido finalmente a fazer o doutoramento (Ph. D.) em Português e Espanhol, estava indeciso entre fazê-lo na Universidade de Harvard ou na Universidade de Wisconsin, em Madison, aonde Jorge de Sena chegara pouco tempo antes, vindo do Brasil. Após uma breve conversa com o homem que já me habituara a admirar como escritor, desvaneceram-se todas as dúvidas. E chegado o Verão de 1966, fui iniciar os meus estudos de doutoramento na Universidade de Wisconsin, sob a direcção de Jorge de Sena. Das três cadeiras que fiz nesse primeiro curso de Verão, de oito semanas, duas foram com Jorge de Sena: uma sobre a Civilização Brasileira e outra sobre o Teatro Brasileiro Contemporâneo. Os meus colegas e eu ficámos fascinados com a competência rara, com o brilhantismo e com o espírito de dedicação do engenheiro escritor, investigador e professor. Sempre bem disposto, sempre pontual, sempre bem preparado, o autor de Estudos de História e de Cultura era um estímulo constante para todos nós. Algumas das suas aulas faziam lembrar os episódios de uma telenovela: era com pena que se via acabar umas e era com ansiedade que se esperava por outras.
         No capítulo da dedicação, raros foram os professores que me impressionaram tanto como Jorge de Sena. Não só não faltava a uma aula, como estava sempre disposto a receber os alunos no seu escritório – e em sua casa – para toda a espécie de esclarecimentos e de ajuda. Mais: a sua biblioteca pessoal estava também à disposição dos colegas e dos alunos. E a dedicação não acabava aí. Terminado o curso de Verão, e longe de Wisconsin, entregues ao magistério, vários eram os alunos que se dirigiam ao autor de os Grão-Capitães, pedindo opiniões sobre autores e sobre obras. E, com uma pontualidade exemplar, lá chegavam as longas cartas de Jorge de Sena, recheadas de factos e de doutrina.
         Tendo convivido com Jorge de Sena durante três cursos de Verão e um ano lectivo, foi-me dado presenciar a sua actividade mercuriana. Diante da máquina de escrever, num pequeno escritório, onde apenas havia espaço para a secretária, umas três cadeiras e uma estante com a Enciclopédia Britânica e com História Genealógica da Real Casa Portuguesa de Dom António Caetano de Sousa (as estantes com os outros livros encontravam-se na sala de estar, na sala de jantar e um pouco por toda a casa), Jorge de Sena era uma máquina criadora. Punha uma folha na máquina de escrever e saía um artigo; punha outra folha na máquina e saía um poema; punha uma outra folha e saía um conto. Escrevia com uma rapidez frenética, como se estivesse possuído por aquele demónio interior de que fala Platão. Correcções? Poucas mais que as gralhas ocasionadas pela velocidade vertiginosa com que escrevia. Trabalhos de crítica literária, de história, de cultura, em geral só eram revistos quando chegavam da tipografia. Quanto aos poemas, só mesmo as gralhas tipográficas eram corrigidas. O autor de Metamorfoses era contra a revisão de poemas. O poema acontecia. Corrigido, já era outro poema, sentido num momento distinto, vivido sob um estado de espírito diferente.
         Quem para um momento a considerar a vastidão, a variedade e a profundidade da obra de Jorge de Sena há-de imaginar que ele não fazia outra coisa senão escrever. De maneira alguma. Jorge de Sena lia muito e era um conversador incansável. Em casa dele, em casa dos colegas, era o grande animador de tertúlias sem fim. Nessas tertúlias, o que mais impressionava em Jorge de Sena era a vastidão dos seus conhecimentos e o entusiasmo com que os expunha. Numa recepção em que houvesse, por exemplo, professores de várias literaturas estrangeiras, Jorge de Sena brilhava sempre. Para surpresa dos especialistas em Petrarca, em Garcilaso, em Cervantes, em Shakespeare, em T. S. Elliot, em Ezra Pound, em Rimbaud, em Paul Valéry, em Goethe, em Rilke, Jorge de Sena tinha sempre algo de profundo e de inédito a dizer sobre esses e muitos outros monstros sagrados da literatura universal. Coadjuvado por uma inteligência rara, por uma memória prodigiosa, por uma curiosidade intelectual sem limites, inflamado pelo fogo sagrado dos génios, ninguém como Jorge de Sena distribuía com tanta generosidade e desinteresse da sua extraordinária riqueza cultural.
         Dotado de talento invulgar e frequentemente visitado pelo génio criador, Jorge de Sena tinha plena consciência do que podia e do que valia. Brioso e brilhante como poucos, havia duas coisas que Jorge de Sena dificilmente tolerava: a mediocridade e a desonestidade intelectual. Mas esse sentimento só o exteriorizava geralmente sob a forma da palavra escrita em prefácios, em posfácios e em centenas de artigos que fazem as delícias de todos aqueles que apreciam uma boa polémica. Ao castigar a mediocridade e a desonestidade intelectual de alguns dos seus companheiros no magistério e nas letras, fazia-o Jorge de Sena apenas com um objectivo em mente: o de contribuir com o seu muito saber e o seu apuradíssimo senso crítico para a dignidade das artes e das letras e da profissão a que se dedicou com corpo e alma.
         Como pessoa, Jorge de Sena irradiava simpatia. Tratava os colegas e os alunos com muita compreensão, afecto e requintes de cortesia. Tinha o sorriso e a elegância espiritual de um autêntico gentleman.
         Partiu o grande e saudoso Mestre e, com ele, o luso-brasileiro-americano que melhor testemunho deu, entre os seus contemporâneos, da língua e da cultura do mundo lusófono, já no país em que nasceu – Portugal -, já na pátria que adoptou – o Brasil -, já no país onde trabalhou e tombou heroicamente. Para os amantes do bom teatro, da boa ficção, e da boa poesia, deixou uma obra imorredoura; para os leitores e professores dignos de tal nome, deixou uma obra crítica original e valiosíssima; para os que se propõem a missão de promover a língua portuguesa e as letras e a cultura do mundo lusófono, deixou o mais genuíno dos exemplos.
 
                           (Este depoimento, pedido ao autor pelo Director do Tempo, Nuno Rocha, foi publicado no dia 6 de Julho de 1978.)   
 
António Cirurgião
 
 

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