Durante
os treze anos que viveu nos Estados Unidos, ninguém fez tanto pela promoção da
língua portuguesa e da cultura dos países lusófonos como Jorge de Sena.
Entregou-se à missão em prol das letras luso-brasileiras e luso-africanas com o
fervor de um neo-convertido. Toda a sua vida nos Estados Unidos foi totalmente
dedicada ao magistério, à crítica, ao ensaísmo e à criação literária. Muitos
dos que tiveram o privilégio de conhecê-lo não podiam acreditar que um só homem
pudesse fazer e produzir tanto. Só pelo que se refere ao magistério basta dizer
que, quando eu fazia a minha tese de doutoramento sob a direcção dele, havia
mais treze candidatos ao doutoramento nas mesmas condições. Além disso, ministrava
uma média de três cursos por semestre. Todos ficavam deslumbrados perante a vastidão
da sua obra – desde a crítica literária à poesia, passando pela história da
cultura e das ideias, pela ficção e pelo teatro. Quando o conselho
administrativo da Universidade da Califórnia já não dispunha de mais postos
para premiar o mérito de Jorge de Sena, não viu outra saída senão honrá-lo com
o título de marshal da Universidade.
Foi por ocasião da investidura nesse alto cargo honorífico que um dos
administradores pediu a Jorge de Sena que aproveitasse a oportunidade para
finalmente anunciar publicamente o nome dos coautores da obra que corria em seu
nome. É que não queria acreditar que um só homem pudesse escrever tanto e
desempenhar tantos cargos académicos, desde o de professor ao de investigador, supervisor
de teses doutorais, conferencista através do mundo, Chefe do Departamento de
Espanhol e Português e do Departamento de Literatura Comparada.
Tive a
honra de encontrar Jorge de Sena pela primeira vez em fins de Dezembro de 1965,
em Chicago, por ocasião do congresso anual da Associação Americana de Línguas
Modernas. Decidido finalmente a fazer o doutoramento (Ph. D.) em Português e
Espanhol, estava indeciso entre fazê-lo na Universidade de Harvard ou na Universidade
de Wisconsin, em Madison, aonde Jorge de Sena chegara pouco tempo antes, vindo
do Brasil. Após uma breve conversa com o homem que já me habituara a admirar
como escritor, desvaneceram-se todas as dúvidas. E chegado o Verão de 1966, fui
iniciar os meus estudos de doutoramento na Universidade de Wisconsin, sob a
direcção de Jorge de Sena. Das três cadeiras que fiz nesse primeiro curso de
Verão, de oito semanas, duas foram com Jorge de Sena: uma sobre a Civilização
Brasileira e outra sobre o Teatro Brasileiro Contemporâneo. Os meus colegas e
eu ficámos fascinados com a competência rara, com o brilhantismo e com o
espírito de dedicação do engenheiro escritor, investigador e professor. Sempre
bem disposto, sempre pontual, sempre bem preparado, o autor de Estudos de História e de Cultura era um
estímulo constante para todos nós. Algumas das suas aulas faziam lembrar os
episódios de uma telenovela: era com pena que se via acabar umas e era com
ansiedade que se esperava por outras.
No
capítulo da dedicação, raros foram os professores que me impressionaram tanto
como Jorge de Sena. Não só não faltava a uma aula, como estava sempre disposto
a receber os alunos no seu escritório – e em sua casa – para toda a espécie de
esclarecimentos e de ajuda. Mais: a sua biblioteca pessoal estava também à
disposição dos colegas e dos alunos. E a dedicação não acabava aí. Terminado o
curso de Verão, e longe de Wisconsin, entregues ao magistério, vários eram os
alunos que se dirigiam ao autor de os Grão-Capitães,
pedindo opiniões sobre autores e sobre obras. E, com uma pontualidade exemplar,
lá chegavam as longas cartas de Jorge de Sena, recheadas de factos e de
doutrina.
Tendo
convivido com Jorge de Sena durante três cursos de Verão e um ano lectivo,
foi-me dado presenciar a sua actividade mercuriana. Diante da máquina de
escrever, num pequeno escritório, onde apenas havia espaço para a secretária,
umas três cadeiras e uma estante com a Enciclopédia
Britânica e com História Genealógica
da Real Casa Portuguesa de Dom António Caetano de Sousa (as estantes com os
outros livros encontravam-se na sala de estar, na sala de jantar e um pouco por
toda a casa), Jorge de Sena era uma máquina criadora. Punha uma folha na
máquina de escrever e saía um artigo; punha outra folha na máquina e saía um
poema; punha uma outra folha e saía um conto. Escrevia com uma rapidez
frenética, como se estivesse possuído por aquele demónio interior de que fala
Platão. Correcções? Poucas mais que as gralhas ocasionadas pela velocidade
vertiginosa com que escrevia. Trabalhos de crítica literária, de história, de
cultura, em geral só eram revistos quando chegavam da tipografia. Quanto aos
poemas, só mesmo as gralhas tipográficas eram corrigidas. O autor de Metamorfoses era contra a revisão de
poemas. O poema acontecia. Corrigido, já era outro poema, sentido num momento
distinto, vivido sob um estado de espírito diferente.
Quem
para um momento a considerar a vastidão, a variedade e a profundidade da obra
de Jorge de Sena há-de imaginar que ele não fazia outra coisa senão escrever.
De maneira alguma. Jorge de Sena lia muito e era um conversador incansável. Em
casa dele, em casa dos colegas, era o grande animador de tertúlias sem fim.
Nessas tertúlias, o que mais impressionava em Jorge de Sena era a vastidão dos seus
conhecimentos e o entusiasmo com que os expunha. Numa recepção em que houvesse,
por exemplo, professores de várias literaturas estrangeiras, Jorge de Sena
brilhava sempre. Para surpresa dos especialistas em Petrarca, em Garcilaso, em
Cervantes, em Shakespeare, em T. S. Elliot, em Ezra Pound, em Rimbaud, em Paul
Valéry, em Goethe, em Rilke, Jorge de Sena tinha sempre algo de profundo e de
inédito a dizer sobre esses e muitos outros monstros sagrados da literatura
universal. Coadjuvado por uma inteligência rara, por uma memória prodigiosa,
por uma curiosidade intelectual sem limites, inflamado pelo fogo sagrado dos
génios, ninguém como Jorge de Sena distribuía com tanta generosidade e
desinteresse da sua extraordinária riqueza cultural.
Dotado
de talento invulgar e frequentemente visitado pelo génio criador, Jorge de Sena
tinha plena consciência do que podia e do que valia. Brioso e brilhante como
poucos, havia duas coisas que Jorge de Sena dificilmente tolerava: a
mediocridade e a desonestidade intelectual. Mas esse sentimento só o exteriorizava
geralmente sob a forma da palavra escrita em prefácios, em posfácios e em
centenas de artigos que fazem as delícias de todos aqueles que apreciam uma boa
polémica. Ao castigar a mediocridade e a desonestidade intelectual de alguns
dos seus companheiros no magistério e nas letras, fazia-o Jorge de Sena apenas
com um objectivo em mente: o de contribuir com o seu muito saber e o seu
apuradíssimo senso crítico para a dignidade das artes e das letras e da profissão
a que se dedicou com corpo e alma.
Como
pessoa, Jorge de Sena irradiava simpatia. Tratava os colegas e os alunos com
muita compreensão, afecto e requintes de cortesia. Tinha o sorriso e a
elegância espiritual de um autêntico gentleman.
Partiu
o grande e saudoso Mestre e, com ele, o luso-brasileiro-americano que melhor
testemunho deu, entre os seus contemporâneos, da língua e da cultura do mundo
lusófono, já no país em que nasceu – Portugal -, já na pátria que adoptou – o
Brasil -, já no país onde trabalhou e tombou heroicamente. Para os amantes do
bom teatro, da boa ficção, e da boa poesia, deixou uma obra imorredoura; para
os leitores e professores dignos de tal nome, deixou uma obra crítica original
e valiosíssima; para os que se propõem a missão de promover a língua portuguesa
e as letras e a cultura do mundo lusófono, deixou o mais genuíno dos exemplos.
(Este depoimento,
pedido ao autor pelo Director do Tempo,
Nuno Rocha, foi publicado no dia 6 de Julho de 1978.)
António
Cirurgião
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