Abadia de Bijloke, Gand, Bélgica, 30 de Julho de 2017
A primeira parte do romance “Le roi des aulnes” de
Michel Tournier é preenchida com o diário íntimo da infância de Abel Tiffauges,
sempre sob o signo do Colégio Saint-Christophe que ele frequentou e da amizade
com o seu companheiro Nestor.
Refere, a certo momento, os critérios que levam à
escolha dos meninos de coro no Colégio. E, para o fazer, volta ao tema de São
Cristóvão.
O Menino Jesus nos ombros de Cristóvão é ao mesmo
tempo levado e trazido. Está aí toda a sua influência. É levado pela força, e
muito humildemente e penosamente suportado sobre as águas ameaçadoras. E toda a
glória de Cristóvão é a de ser ao mesmo tempo animal de carga e custódia. Na
travessia do rio, há rapto e trabalho forçado. É verdade que ponho nestas
frases mais força e mais clareza do que elas realmente contêm, obedecendo assim
à minha vocação fundamental. Mas creio lembrar-me que Nestor teria querido
encontrar esta ambiguidade no menino de coro, e ver um prelado ajoelhar-se
perante um seu pequeno turiferário (aquele que sustenta o turífero com o
incenso, ou seja o menino de coro).
Um dia, o Superior do Colégio profere um sermão na
Missa. Inicia-o referindo-se aos Ensaios de Montaigne na parte em que ele conta
o que se pode considerar uma pequena anedota respeitando o conquistador
português do Século XVI (ele diz XV…) Afonso de Albuquerque. Albuquerque num
perigo extremo no mar pôs sobre os ombros um rapazinho, com a única finalidade
de a sua inocência lhe servir de garante e recomendação para o favor divino de
o pôr em segurança. Dito isto, o pregador prosseguiu sem dificuldade o seu
raciocínio passando ao santo patrono do Colégio, à sua aventura maravilhosa de
portador de Cristo, á sua recompensa, esse bordão folhoso e frutado. Nada
permite supor, acrescentou, que Albuquerque se tenha recordado da história de
São Cristóvão e que tenha querido imitá-lo num perigo extremo, mesmo Cristóvão
sendo o protector dos viajantes e navegadores, como todos sabem. Não, o que
é mais provável e mais exaltante, é que tanto o conquistador como o santo,
tenham recorrido à mesma fonte, ou seja, independentemente um do outro
praticaram o mesmo gesto: puseram-se sob a protecção do Menino que eles
protegiam, salvaram-se salvando, assumiram um peso, carregaram os ombros, mas
um peso de luz, uma carga de inocência. E concluiu: porque estais aqui todos
sob o signo de Cristóvão, é preciso que daqui em diante e durante toda a vossa
vida, vós saibais atravessar o mal, abrigando-vos num manto de inocência.
Chamai-vos vós Pierre, Paul ou Jacques, lembrai-vos que vós vos chamais também
Pierre Portamenino, Paul Portamenino, Jacques Portamenino. E então carregados
dessa carga sagrada, vós atravessareis os rios e as tempestades, assim como as
chamas do pecado.
José Liberato
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