quarta-feira, 14 de agosto de 2019

Lava Jato.

 
 

 
 
         Há quem prefira ver a série de José Padilha no Netflix, e de facto O Mecanismo inspira-se neste livro. Por isso, veja a série, muito bem, tem actores e acção, mas não deixe de ler o livro, que vale muito a pena. É de 2016, bem sei, e muita coisa aconteceu depois disso: a ascensão de Bolsonaro, a ida de Moro para o governo, as revelações desconcertantes – e escabrosas – da Vaza Jato. À distância, os elogios sobre elogios de Vladimir Netto a Sérgio Moro parecem algo ridículos, até caricatos. Ainda assim, Lava Jato é, que eu saiba, o mais completo livro sobre a Lava Jato, que nos mostra como se desencadeou uma operação gigantesca, como ela acabou com um ninho de corrupção que levava milhões aos cofres da Petrobras, isto é do Estado e do povo brasileiro, para os cofres das grandes construtoras e para as contas na Suíça de muitos políticos.
 Poderá dizer-se muita coisa, criticar-se tudo, mas como é evidente não era propósito da Lava Jato acabar com a corrupção no Brasil inteiro – e a corrupção das maiores construtoras do país foi provada e confirmada por várias instâncias, dos juízos de Curitiba ao Supremo Tribunal Federal, e há muita gente importante ainda presa. Dirão muitos que houve atropelos aos direitos humanos, já lá vamos. Dirão outros que foi tudo uma estratégia para dar cabo do PT e da candidatura presidencial de Lula, o que é simplista: no início da operação, estava-se muito, muito longe daí (e para isso é preciso ler o livro). Dizer que a Lava Jato foi montada desde o início para destruir o PT é ridículo; quando muito, poder-se-á dizer que, numa fase adiantada da operação, as coisas se encaminharam nesse sentido, o que é bem diferente. Mas, já agora, é importante sublinhar alguns pontos: desde logo, espanta que, quando a Lava Jato ia bem adiantada, e o tesoureiro do PT, João Vaccari Neto, já estava implicado, Lula ainda mantinha níveis muito altos de popularidade nas sondagens, e muito possivelmente poderia ganhar as eleições. Ou seja, apesar de tudo, apesar de se falar já há muito do triplex de Curitiba, a popularidade de Lula mantinha-se em alta. Como também é importante referir que a Lava Jato, sobretudo nos seus primórdios, descobriu uma rede de corrupção que beneficiava todos os partidos, não sendo um exclusivo do PT. Ou que Eduardo Cunha e Michel Temer também foram envolvidos, Ou que a Lava Jato decorreu, como o livro diz, em grande parte porque os governos do PT deram à Polícia Federal os poderes e os meios para actuar como actuou.
Há duas narrativas simplistas e contraditórias sobre este caso: diz-se, por um lado, e Moro disse-o vezes sem contra, que as suas decisões foram esmagadoramente confirmadas pelos tribunais superiores, ou seja, que o Estado de direito funcionou e que o poder judicial actuou. Mas diz-se também que o PT dominava o Estado de cima abaixo, controlando todos os poderes, o que não permite explicar, então, como é que o impeachment de Dilma foi votado, como é que Eduardo Cunha teve o papel que teve, como é que o poder judicial pôde actuar com independência e resistir à pressão corruptora do Partido dos Trabalhadores. Entendamo-nos: nunca houve uma pressão brutal, aberta e flagrante sobre o poder judicial como aquela que se verifica, por exemplo, na Venezuela; podem ter existido contactos sulfurosos, discretos, pressões ocultas, manobras de bastidaores – mas, pelos vistos, não surtiram efeito. Mérito exclusivo de Moro ou independência dos juízes supremos? Uma e outra explicação são plausíveis, mas uma não exclui a outra. Mais ainda: uma peça fundamental em tudo isto, o procurador-geral Rodrigo Janot, foi designado por Dilma para um novo mandato, contra imensas pressões, e numa altura em que a Lava Jato já ia bem avançada. Aliás, Janot não se mostrou um serventuário do PT, longe disso. Daí que uma conclusão se imponha: a Lava Jato foi – e é – muito mais complexa do que muitos fazem crer, de um lado e do outro da barricada. Já agora, em matéria de confrontos com o poder judicial a actual presidência de Bolsonaro não parece ser melhor, bem pelo contrário, do que a presidência de Dilma. E será que hoje avançariam processos contra o Presidente e os seus familiares, semelhantes aos que levaram à prisão de Lula e à destituição de Dilma? Pelo que se sabe, a resposta é não.    
Também é caricato dizer que Moro tinha, desde o início, ambições políticas. Vedetismo e protagonismo, sem dúvida – mas isso também não sucedeu também, e mal, com Baltasar Garzón, apelidado de «juiz-estrela», que igualmente se deixou inebriar pela fama? Ou Moro é mau e Garzón é bom, apenas por terem, como agora se diz, «agendas» diferentes? Também não se pode dizer que Moro tivesse na altura ambições políticas, pois, com a popularidade que detinha, poderia ter-se então candidatado a Presidente, e não o fez (e, convenhamos, seria um Presidente mil vezes melhor do que Bolsonaro, o que não é difícil). Até por isso, foi desastrosa a sua aceitação da pasta de ministro da Justiça, comprometendo a sua imagem, a imagem da Lava Jato, a imagem da justiça brasileira, e até comprometendo o combate futuro a novos casos de corrupção, para sempre manchados com a suspeita de que estarão a ser politicamente motivados ou juridicamente manipulados.
         Além de contar a história da Lava Jato, desde a detenção de Alberto Youssef à prisão de Lula da Silva, adoptando um registo de apoio incondicional à operação e a Sérgio Moro, o que este livro tem de interessante é o conjunto de informações que nos dá, e as reflexões que suscita. Parece estranho, por exemplo, que, numa fase inicial da operação, Moro proibisse os arguidos e as testemunhas de falarem de nomes concretos da classe política, cerceando a liberdade de depoimento (ver página 78); Moro não queria que, se alguém falasse do senador A ou do deputado B, o processo tivesse de transitar para o Supremo, o foro da classe política, e fugisse das suas mãos. É igualmente bizarro que, pelos vistos, no Brasil ainda não haja separação entre juiz de instrução e juiz de julgamento, um dos princípios básicos de um processo penal justo: quem dirige a instrução não pode aplicar as penas, como acontecia com Moro. Também parecem muito estranhas e questionáveis as penas aplicadas, sobretudo a disparidade das penas nascida da «delação premiada». Houve casos de arguidos implicados a fundo no esquema criminoso, como Alberto Youssef ou Paulo Roberto Costa, da Petrobras, que tiveram penas leves, levíssimas para a sua culpabilidade, apenas porque falaram e denunciaram terceiros. Com a agravante de Youssef, por onde tudo começou, ter violado um anterior acordo de delação premiada – celebrado ademais com Moro, aquando do «mensalão» – e, ainda assim, ser considerado apto a subscrever um novo e muito generoso acordo.
         É possível que só através da delação premiada seja possível ir ao fundo de casos como este, sobretudo num país minado pela corrupção ao mais alto nível do Estado. Mas o recurso sistemático ao método da delação premiada, numa dada investigação, sempre coloca muitas dúvidas: afinal, quem é culpado e quem é inocente? Se todos decidissem falar, ninguém seria condenado? Ou é o juiz que decide discricionariamente, aceitando e premiando generosamente a delação de uns e rejeitando o depoimento de outros? Tomemos um exemplo imaginário: na Odebrecht, um quadro superior era o grande responsável pela corrupção, conhecia os meandros, praticava os crimes, e o presidente da empresa, até para sua defesa, só tinha uma pálida ideia do que se passava; se, no decurso das investigações, o alto quadro decide colaborar com a justiça, o presidente da empresa é preso e o seu funcionário premiado? E o «prémio» abstrai do grau de dolo e da gravidade dos actos praticados, graduando a pena de acordo com a denúncia feita? Não há o risco de o princípio da culpa ser relegado para um plano secundário, em benefício exclusivo do nível de colaboração com a justiça? E não há o risco de o juiz actuar de forma arbitrária? Um caso que nos dá que pensar: a segunda pena mais pesada deste caso, os 18 anos aplicados a Pedro Barusco, foi mandada cumprir e regime aberto diferenciado, com os dias passados fora de casa, e as noites e os fins de semana em casa. Uma das penas mais pesadas, 18 anos, cumprida de uma forma tão leve… apenas porque o arguido beneficiou da delação premiada. Não é excessivo?
         Por último, algo que também nos surpreende: o modo como o juiz Moro ia levantando o segredo de justiça e divulgando na Internet trechos do processo, de uma forma selectiva, reactiva ao que se ia passando no país, fazendo, ele próprio, uma gestão política, ou político-mediática, dos autos. Talvez tenha sido essa a única forma de conquistar apoio popular e evitar que o caso fosse abafado. Talvez só assim tenha havido Lava Jato. Perguntas que ficam.
         O que fica, também, é a ideia de que o fulcro da questão, o gigantismo da empresa estatal Petrobras e a sua politização, não foi resolvido. Longe disso. Pelo contrário: há dias, a Petrobras decidiu cancelar dois contratos de prestação de serviços do escritório do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Felipe Santa Cruz, um homem em conflito aberto com Bolsonaro e com Sérgio Moro (aqui). Foi um acaso? Não. A interferência do poder político – e de Dilma – na Petrobras foi um dos cancros da Lava Jato, pelos vistos não debelado. A Moro devemos o mérito de ter conseguido resistir a pressões imensas – e a inteligência letal como conduziu a sua estratégia, jurídica e política, acima de tudo pessoal. Mas o que aconteceu depois deixa enormes dúvidas sobre muita, muita coisa. Até por isso, convém ler este livro, com uma pergunta: e em Portugal, seria possível algo desta envergadura?
 





 
 

 
 
 
 
 

2 comentários:

  1. Um antigo procurador do processo mani pulite disse já em entrevista antiga que achava muito estranho este projeto lava jato. Que aquilo seria inadmissível em Itália. Com o que se sabe agora, com as revelações dos diálogos entre o procurador e o juiz Moro, no Intercept, tenho quase a certeza que o procurador italiano defenderia agora a demissão imediata e a responsabilização criminal de ambos. Não é preciso ser jurista, aliás...

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