Há quem prefira ver a série de José
Padilha no Netflix, e de facto O
Mecanismo inspira-se neste livro. Por isso, veja a série, muito bem, tem
actores e acção, mas não deixe de ler o livro, que vale muito a pena. É de
2016, bem sei, e muita coisa aconteceu depois disso: a ascensão de Bolsonaro, a
ida de Moro para o governo, as revelações desconcertantes – e escabrosas – da
Vaza Jato. À distância, os elogios sobre elogios de Vladimir Netto a Sérgio
Moro parecem algo ridículos, até caricatos. Ainda assim, Lava Jato é, que eu saiba,
o mais completo livro sobre a Lava Jato, que nos mostra como se desencadeou uma
operação gigantesca, como ela acabou com um ninho de corrupção que levava
milhões aos cofres da Petrobras, isto é do Estado e do povo brasileiro, para os
cofres das grandes construtoras e para as contas na Suíça de muitos políticos.
Poderá dizer-se muita coisa, criticar-se tudo,
mas como é evidente não era propósito da Lava Jato acabar com a corrupção no
Brasil inteiro – e a corrupção das maiores construtoras do país foi provada e
confirmada por várias instâncias, dos juízos de Curitiba ao Supremo Tribunal
Federal, e há muita gente importante ainda presa. Dirão muitos que houve atropelos
aos direitos humanos, já lá vamos. Dirão outros que foi tudo uma estratégia
para dar cabo do PT e da candidatura presidencial de Lula, o que é simplista:
no início da operação, estava-se muito, muito longe daí (e para isso é preciso
ler o livro). Dizer que a Lava Jato foi montada desde o início para destruir o
PT é ridículo; quando muito, poder-se-á dizer que, numa fase adiantada da
operação, as coisas se encaminharam nesse sentido, o que é bem diferente. Mas,
já agora, é importante sublinhar alguns pontos: desde logo, espanta que, quando
a Lava Jato ia bem adiantada, e o tesoureiro do PT, João Vaccari Neto, já
estava implicado, Lula ainda mantinha níveis muito altos de popularidade nas
sondagens, e muito possivelmente poderia ganhar as eleições. Ou seja, apesar de
tudo, apesar de se falar já há muito do triplex de Curitiba, a popularidade de
Lula mantinha-se em alta. Como também é importante referir que a Lava Jato,
sobretudo nos seus primórdios, descobriu uma rede de corrupção que beneficiava
todos os partidos, não sendo um exclusivo do PT. Ou que Eduardo Cunha e Michel
Temer também foram envolvidos, Ou que a Lava Jato decorreu, como o livro diz,
em grande parte porque os governos do PT deram à Polícia Federal os poderes e
os meios para actuar como actuou.
Há
duas narrativas simplistas e contraditórias sobre este caso: diz-se, por um
lado, e Moro disse-o vezes sem contra, que as suas decisões foram
esmagadoramente confirmadas pelos tribunais superiores, ou seja, que o Estado
de direito funcionou e que o poder judicial actuou. Mas diz-se também que o PT
dominava o Estado de cima abaixo, controlando todos os poderes, o que não
permite explicar, então, como é que o impeachment de Dilma foi votado, como é
que Eduardo Cunha teve o papel que teve, como é que o poder judicial pôde
actuar com independência e resistir à pressão corruptora do Partido dos
Trabalhadores. Entendamo-nos: nunca houve uma pressão brutal, aberta e
flagrante sobre o poder judicial como aquela que se verifica, por exemplo, na
Venezuela; podem ter existido contactos sulfurosos, discretos, pressões
ocultas, manobras de bastidaores – mas, pelos vistos, não surtiram efeito.
Mérito exclusivo de Moro ou independência dos juízes supremos? Uma e outra
explicação são plausíveis, mas uma não exclui a outra. Mais ainda: uma peça
fundamental em tudo isto, o procurador-geral Rodrigo Janot, foi designado por
Dilma para um novo mandato, contra imensas pressões, e numa altura em que a
Lava Jato já ia bem avançada. Aliás, Janot não se mostrou um serventuário do
PT, longe disso. Daí que uma conclusão se imponha: a Lava Jato foi – e é –
muito mais complexa do que muitos fazem crer, de um lado e do outro da
barricada. Já agora, em matéria de confrontos com o poder judicial a actual
presidência de Bolsonaro não parece ser melhor, bem pelo contrário, do que a
presidência de Dilma. E será que hoje avançariam processos contra o Presidente
e os seus familiares, semelhantes aos que levaram à prisão de Lula e à
destituição de Dilma? Pelo que se sabe, a resposta é não.
Também
é caricato dizer que Moro tinha, desde o início, ambições políticas. Vedetismo
e protagonismo, sem dúvida – mas isso também não sucedeu também, e mal, com
Baltasar Garzón, apelidado de «juiz-estrela», que igualmente se deixou inebriar
pela fama? Ou Moro é mau e Garzón é bom, apenas por terem, como agora se diz, «agendas»
diferentes? Também não se pode dizer que Moro tivesse na altura ambições
políticas, pois, com a popularidade que detinha, poderia ter-se então candidatado
a Presidente, e não o fez (e, convenhamos, seria um Presidente mil vezes melhor
do que Bolsonaro, o que não é difícil). Até por isso, foi desastrosa a sua aceitação
da pasta de ministro da Justiça, comprometendo a sua imagem, a imagem da Lava
Jato, a imagem da justiça brasileira, e até comprometendo o combate futuro a
novos casos de corrupção, para sempre manchados com a suspeita de que estarão a
ser politicamente motivados ou juridicamente manipulados.
Além de contar a história da Lava Jato,
desde a detenção de Alberto Youssef à prisão de Lula da Silva, adoptando um registo
de apoio incondicional à operação e a Sérgio Moro, o que este livro tem de
interessante é o conjunto de informações que nos dá, e as reflexões que
suscita. Parece estranho, por exemplo, que, numa fase inicial da operação, Moro
proibisse os arguidos e as testemunhas de falarem de nomes concretos da classe
política, cerceando a liberdade de depoimento (ver página 78); Moro não queria que, se alguém
falasse do senador A ou do deputado B, o processo tivesse de transitar para o
Supremo, o foro da classe política, e fugisse das suas mãos. É igualmente
bizarro que, pelos vistos, no Brasil ainda não haja separação entre juiz de
instrução e juiz de julgamento, um dos princípios básicos de um processo penal
justo: quem dirige a instrução não pode aplicar as penas, como acontecia com
Moro. Também parecem muito estranhas e questionáveis as penas aplicadas, sobretudo
a disparidade das penas nascida da «delação premiada». Houve casos de arguidos
implicados a fundo no esquema criminoso, como Alberto Youssef ou Paulo Roberto
Costa, da Petrobras, que tiveram penas leves, levíssimas para a sua
culpabilidade, apenas porque falaram e denunciaram terceiros. Com a agravante
de Youssef, por onde tudo começou, ter violado um anterior acordo de delação
premiada – celebrado ademais com Moro, aquando do «mensalão» – e, ainda assim,
ser considerado apto a subscrever um novo e muito generoso acordo.
É possível que só através da delação
premiada seja possível ir ao fundo de casos como este, sobretudo num país
minado pela corrupção ao mais alto nível do Estado. Mas o recurso sistemático
ao método da delação premiada, numa dada investigação, sempre coloca muitas
dúvidas: afinal, quem é culpado e quem é inocente? Se todos decidissem falar,
ninguém seria condenado? Ou é o juiz que decide discricionariamente, aceitando
e premiando generosamente a delação de uns e rejeitando o depoimento de outros?
Tomemos um exemplo imaginário: na Odebrecht, um quadro superior era o grande
responsável pela corrupção, conhecia os meandros, praticava os crimes, e o
presidente da empresa, até para sua defesa, só tinha uma pálida ideia do que se
passava; se, no decurso das investigações, o alto quadro decide colaborar com a
justiça, o presidente da empresa é preso e o seu funcionário premiado? E o
«prémio» abstrai do grau de dolo e da gravidade dos actos praticados, graduando
a pena de acordo com a denúncia feita? Não há o risco de o princípio da culpa
ser relegado para um plano secundário, em benefício exclusivo do nível de
colaboração com a justiça? E não há o risco de o juiz actuar de forma
arbitrária? Um caso que nos dá que pensar: a segunda pena mais pesada deste caso, os 18 anos aplicados a Pedro Barusco, foi mandada cumprir e regime aberto diferenciado, com os dias passados fora de casa, e as noites e os fins de semana em casa. Uma das penas mais pesadas, 18 anos, cumprida de uma forma tão leve… apenas porque o arguido beneficiou da delação premiada. Não é excessivo?
Por último, algo que também nos
surpreende: o modo como o juiz Moro ia levantando o segredo de justiça e
divulgando na Internet trechos do processo, de uma forma selectiva, reactiva ao
que se ia passando no país, fazendo, ele próprio, uma gestão política, ou
político-mediática, dos autos. Talvez tenha sido essa a única forma de
conquistar apoio popular e evitar que o caso fosse abafado. Talvez só assim
tenha havido Lava Jato. Perguntas que ficam.
O que fica, também, é a ideia de que o
fulcro da questão, o gigantismo da empresa estatal Petrobras e a sua
politização, não foi resolvido. Longe disso. Pelo contrário: há dias, a
Petrobras decidiu cancelar dois contratos de prestação de serviços do
escritório do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Felipe Santa Cruz, um homem em conflito aberto com
Bolsonaro e com Sérgio Moro (aqui). Foi um acaso? Não. A interferência do poder
político – e de Dilma – na Petrobras foi um dos cancros da Lava Jato, pelos
vistos não debelado. A Moro devemos o mérito de ter conseguido resistir a
pressões imensas – e a inteligência letal como conduziu a sua estratégia,
jurídica e política, acima de tudo pessoal. Mas o que aconteceu depois deixa
enormes dúvidas sobre muita, muita coisa. Até por isso, convém ler este livro, com uma pergunta: e em Portugal, seria possível algo desta envergadura?
Texto excelente.
ResponderEliminarUm antigo procurador do processo mani pulite disse já em entrevista antiga que achava muito estranho este projeto lava jato. Que aquilo seria inadmissível em Itália. Com o que se sabe agora, com as revelações dos diálogos entre o procurador e o juiz Moro, no Intercept, tenho quase a certeza que o procurador italiano defenderia agora a demissão imediata e a responsabilização criminal de ambos. Não é preciso ser jurista, aliás...
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