O dia 9 de Março de 2013
foi um Sábado, e como era normal comigo em Argel, levantava-me um pouco mais
tarde e escrevia. Guardei assim desse período “argelino” da minha vida
uma quantidade de escritos que agora mostram o que fui e senti nesse tempo.
Nesse
dia escrevi:
“…Os
jornais portugueses acompanham-me durante mais tempo que em Portugal. Antes de
os deitar fora leio e releio procuro coisas que me toquem.
No
Expresso de há uma semana, 2 de Março, vinha um artigo sobre as Tapeçarias de
Portalegre.
Esta
arte foi talvez menos mitificada em Portugal que outras. Naquela fúria de
complexo de inferioridade português que “aí somos os melhores do mundo”. Assim
éramos o primeiro produtor mundial de cortiça, os doces de ovos eram únicos, as
nossas praias inigualáveis, etc.etc..
Eu
em novo ainda fui nessa cantiga, mas depressa percebi que, por exemplo, a
Espanha que eu tinha sido ensinado a ver como inimigo e como canto ignorado,
era um país soberbo, com um flamenco que me leva às lágrimas, com uma cidade –
Barcelona – que não conheço outra igual, com uma alegria e um fogo de pasmar,
com Plazas Mayores cheias de gente ao fim da tarde…
Há
medida que ia ficando mais velho percebi que o que era mesmo bom era a
diferença. Deixei de perceber aquela gente que diz que gosta da Primavera, ou
do Outono. Eu gosto é do rolar das estações. Gosto da chuva e dias cinzentos
pela força e nostalgia. Gosto dos dias cheios de sol pela vida que nos trazem.
Gosto do nevoeiro pelo mistério. Gosto da tempestade pelo que me assusta.
Gosto
da terra por que é firme. E do mar porque se move e é líquido. Gosto do meu
País, porque é meu e nele fui formado. Mas gosto da França porque é bela. E da
Inglaterra porque é confortável e teatral. E da Itália porque de lá vimos. E de
tantos outros pelas razões que cada um tem.
Gosto
de me encantar e que me embalem os sonhos com novos sonhos.
Tudo
isto para voltar ao Expresso e às Tapeçarias de Portalegre.
A
jornalista que escreveu o artigo teve a sensibilidade e o bom senso de
transcrever “ipsis verbis” as opiniões da responsável pela Manufactura,
Fernanda Fortunato, que entrou na casa em 1957, a Escola Industrial feita, para
o desenho de preparação das tapeçarias:
“…Encontrei
lá colegas antigas da Escola Industrial, mais velhas que eu e uma do meu tempo.
Diz-me ela: “Estou a ampliar é assim e assado” (…) não percebia nada mas
ia dizendo que sim com a cabeça. Não houve aprendizagem nenhuma,
nem preparação nenhuma. Mas lá fiquei a trabalhar sozinha no turno da noite,
das 19 h à meia-noite. Estava projectado na parede um desenho do Almada, uma
tapeçaria que está no Forte de Santa Luzia em Viana do Castelo, “A passagem do
Rio Lethes”. Com toda a atenção ia desviando o original e desenhando quadrado a
quadrado. Consegui que aquilo batesse certo, pensei. Passada a fase de correcção,
porém, comecei a olhar e apercebi-me que não tinha dado ao desenho a alma
necessária – na altura não lhe chamei isso – percebi que alguma coisa faltava
na forma que eu lhe tinha dado. Foi então que comecei a desenhar como deve ser.
(…) Dei-me conta tão tarde que me tinha apaixonada pelas tapeçarias que nem
sequer sei quando foi. Terá sido pouco a pouco? Terá sido repentinamente? Não
sei. Talvez tenha sido fruto de uma descoberta de um outro mundo, de uma
sensibilidade que não conhecia e sobretudo da relação com os artistas. (…) Isso
mexeu muito comigo. Aquele mundo que parece irreal, aquelas
sensibilidades todas que se calhar têm a ver comigo e que não estavam
exploradas… Uma pessoa não se pode esquecer de onde vem e eu tenho isso muito
presente. (…) O Almada e a mulher do Almada, casal exemplar, a sabedoria
daquele homem, a capacidade de criar. A Maria Keil, uma senhora deliciosa,
bonita, pequena, a caminhar na nossa sala de desenho tinha uma ondulação… O
arquitecto Raul Lino, que veio cá com a esposa dele, já com 90 anos, que
maravilha de casal… Eu fiz uma aprendizagem com essa gente toda e eles
deixaram-me muito na passagem por aqui. O Renato Torres que tinha sido meu
professor na Escola Industrial e que vim a encontrar aqui, tinha afinal razão.
Todo aquele sofrimento de que ele falava nas aulas e que eu nunca percebi
enquanto aluna, o sofrimento de quem cria, só o entendi a conviver com
artistas. Uma pessoa não percebe essa dor enquanto não lida com eles. É por
isso que é tão importante conhecê-los. Quando depois estamos a mexer nas coisas
deles, intuitivamente somos capazes de perceber porque pintaram assim.(…) É
preciso viver com os terrores da Paula Rego, como é que uma pessoa lhe pode
chamar, é preciso conviver comos universos complexos de Armando Alves, de Júlio
Resende, de Vieira da Silva e de Arpad, com o impacto da cor de José de
Guimarães, com humor de Júlio Pomar, com a generosidade de Camarinha…Tenho medo
de me esquecer de alguém… Mas nada disto se explica sem ser vivenciado,
partilhado. (…) Eduardo Nery, Rigo (…) são pessoas extraordinárias, também. Mas
agora olho para eles e sinto-os muito meninos. Está lá tudo, mas é de outra
forma. Eles também são outros. Há uma forma de estar diferente. Por isso pintam
de uma maneira diferente. As desilusões parece que não são tão fortes. Há
outras esperanças… A Joana Vasconcelos, por exemplo, é muito engraçada porque
tem uma exuberância que me fala de alegria, não me fala de sofrimento. Ela é
cor, e a tapeçaria também. A tapeçaria é tudo o que eles quiserem. ”
Tudo
isto é prodigioso e não há comentários possíveis…”
Eis
senão quando, por afazeres profissionais de necessidade de restauro de um
grande tapeçaria, me dirigi à Manufactura de Tapeçarias e tive o gosto de ter
visita guiada pela mesma Senhora Dona Fernanda Fortunato que, mostrando-me, com
simplicidade, o extraordinário acervo de milhares de cartões assinados por uma
plêiade de artistas, o cuidado na guarda de novelos com dezenas de anos para
eventuais restauros em cores originais, na explicação de que a lã utilizada é,
pela necessidade de grande qualidade, não só da matéria prima como da tosquia,
a proveniente de ovinos australianos e só da zona da cabeça e, finalmente
no trabalho artesanal que se desenvolve na transcrição dos cartões e na feitura
de tapeçaria a que assisti, confesso que com comoção, ao entrelaçar manualmente
fio a fio numa teia que se estendia num tear manual ao longo de metros e me era
explicado a diferença entre Portalegre e Gobelins.
Depois,
numa voz simultâneamente simples, triste e resignada, a Senhora Dona Fernanda
Fortunato contou-me o fim anunciado da Manufactura, sem muito dinheiro para
pagar a pessoal, sem qualquer acordo com um qualquer Ministério para formar
pessoal na arte, sem encomendas do Estado que seria a ajuda que se pediria.
E
já de saída, no pequeno museu, entre cartas de Régio e Almada, pasmei perante a
beleza de Sintra plasmada em tapeçaria à espera de comprador.
Portalegre, Abrigada, 18
de Fevereiro de 2021
Miguel Geraldes Cardoso
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