No âmbito das
comemorações do V Centenário da Descoberta da Guiné, a Academia Portuguesa de
História editou em 1948 o trabalho “Viagens de Luís de Cadamosto e Pedro de
Sintra”, com notas históricas por Damião Peres. Este insigne historiador
justifica a iniciativa: “Como a crónica henriquina de Azurara não abrange
feitos da Guiné posteriores a 1447, as páginas de Cadamosto constituem uma
fonte narrativa, embora de utilização cautelosa, pois nelas se encontram dados
cronológicos errados, e até, segundo se pode crer, alguma jactância atentatória
da verdade”. Esta edição da Academia Portuguesa de História reproduz o texto de
1812 com as traduções a partir do italiano os dois viajantes, da Academia Real
das Ciências, veja-se o site: http://livrosevelharias.blogspot.pt/2012/10/viagens-de-luis-de-cadamosto-e-pedro-de.html#!/2012/10/viagens-de-luis-de-cadamosto-e-pedro-de.html.
Tome-se como
ponto de partida a primeira viagem de Luís de Cadamosto. Ele vem fazer comércio
à Costa dos Escravos ou Terra dos Negros, é um veneziano que espelha os
conhecimentos da época, homem curioso, o seu relato começa no que é hoje o
Senegal. Diz assim: “O país destes primeiros negros do reino de Senega
(Senegal) é o primeiro reino dos negros da Baixa Etiópia. Os povos próximos
deste rio chamam-se Gilofos (os Jalofos)”.
É atento e
minucioso: o Cabo Verde é a terra mais alta que há em toda esta costa, para
além do dito Cabo Verde toda a costa é praia rasa. Vem a terra e comenta: Não
há no país nenhuma cidade nem lugar murado, se não aldeias e casas de palha
(que eles não sabem fazer casas de paredes porque não têm cal e têm grande
falta de pedras). O modo de vida deste rei é o seguinte: não tem rendimento
certo, além daquele que lhes dão os senhores desse país todos os anos para
estarem de bem com ele, os quais presentes são de cavalos que lá são muito
apreciados, por deles haver falta. Este rei vive também com roubos que faz, e
tem sempre muitos escravos negros que manda pilhar não só no país como nos
outros países vizinhos. Quanto ao vestir desta gente, quase todos andam nus
continuamente salvo que trazem um coiro de cabra posto em forma de calça com
que cobrem as vergonhas; mas os senhores e aqueles que podem comprar alguma
coisa vestem camisas de pano de algodão. Quanto à forma, as suas camisas são
compridas até meia coxa e largas. As mulheres desta região são muito asseadas de
corpo, pois se lavam completamente, quatro e cinco vezes por dia; e assim
também os homens, mas no comer são porcalhões e sem nenhuma educação. São
homens de muitas palavras e nunca acabam de falar; e são todos, sempre,
mentirosos e enganadores, em extremo; por outro lado, são caritativos, porque
dão de comer e beber a qualquer estrangeiro que, de passagem, chegue a sua casa
por uma refeição ou por uma noite, sem qualquer remuneração.
Cadamosto tem um
olhar de antropólogo na descrição das cerimónias, nas receções, na admiração ao
destemor dos nadadores, descreve a vida de Budomel, o rei da região.
E procura dar um
quadro da economia da terra: “Neste reino de Senega dos negros, nem daí por
diante, em nenhuma Terra do País dos Negros se produz trigo, nem centeio, nem
cevada, nem aveia, nem vinho. E visto que o país é bastante quente e não chove
em nove meses do ano. A sua comida é de milho de diversas espécies, fava e
feijões que nascem naquelas partes, os mais grados e mais belos que há no
mundo. E procede a uma descrição da comida, bebida e substâncias oleaginosas.
Fala então da fauna: nesta terra de Senega dos negros não se encontram outros
animais úteis a não ser bois, vacas e cabras; ovelhas não se criam aí, nem
poderiam viver por causa do grane calor. As vacas e bois daquele país são mais
pequenos que os nossos. Animais bravo de presa há-os: leões, onças e leopardos,
lobos e cabritos monteses; há í também elefantes selvagens. Estes elefantes
andam aos bandos. Os seus dentes grandes nunca lhes caem, a não ser por morte.
E aí animal que não ataca o homem se o homem não o atacar.
Cadamosto, com a
curiosidade comerciante, vai ver como os outros mercadejam. E observa: Porque
me acontece estar em terra muitos dias, determinei ir ver um seu mercado ou
feira que se fazia numa pradaria, não muito longe do lugar onde eu estava
hospedado; o qual se fazia à segunda e sexta-feira: fui lá duas ou três vezes.
A este mercado vinham homens e mulheres das terras que estavam em volta até
quatro ou cinco milhas, pois que os que estavam mais longe iam a outros
mercados, porque também noutros lugares se costumam fazer. Nestes mercados
compreendi muito bem que estes são gente muito pobre, pelas coisas que traziam
ao mercado para vender. Primeiramente era o algodão (mas não fiado) em pouca
quantidade; não muitos panos de algodão; legumes, milho, óleo; gamelas de pau,
esteiras de palma e todas as outras coisas de que se servem para a sua vida.
Nada se vende por dinheiro porque não há moeda nenhuma nem usam se não trocar
coisa por coisa ou duas coisas por uma coisa, e todo o seu mercado se faz por
troca. Estes negros, tanto machos como fêmeas, vinham ver-me como uma
maravilha, e parecia-lhes coisa extraordinária ver um cristão em tal lugar,
nunca dantes visto: e não menos se espantavam do meu traje e da minha brancura;
o qual traje era à espanhola, com um jibão de damasco preto, e com uma capinha
de gris; reparavam para o pano de lã, que eles não têm, e reparavam para o
jibão, e muitos pasmavam, alguns tocavam nas mãos e nos braços e com cuspo
esfregavam-me para ver se a minha brancura era tinta ou carne; e vendo que era
carne branca, ficavam-se em admiração. Vendo-se um cavalo arreado com os seus
arreios por nove até catorze escravos, conforme a qualidade e beleza do cavalo.
Admiravam-se, grandemente, de ver arder uma vela, de noite, num castiçal e isto
porque na sua terra não sabem produzir nenhuma outra luz que não seja a da
fogueira.
Prepara-se para
partir do Senegal para a Gâmbia, e ainda mais abaixo. E explica: Tive ocasião
de estar neste país do senhor Budomel alguns dias, para vender e comprar, e
saber de muitas coisas: pelo que estando do dito senhor despachado, e tenho
obtido uma certa quantidade de escravos, determinei ir para diante, e passar o
Cabo Verde e ir descobrir países novos para experimentar a minha sorte. Não
muito longe deste primeiro reino de Senega dos Negros, indo mais para diante,
havia um outro reino ou país chamado Gambra (Gâmia) no qual se encontrava
grande quantidade de ouro.
Passa junto a
terra firme de nome Cabo Verde e revela que os primeiros que o acharam foram os
portugueses talvez um ano antes de eu ir a essas partes, “o acharam
inteiramente verde pelas grandes árvores que estão verdes todo o tempo do ano”.
E rende-se à pujança da paisagem: “Nunca vi mais bela costa do que esta que se
me ofereceu; a qual é banhada por muitas ribeiras e rios pequenos e sem
importância. Esta costa é habitada por dois povos: Barbacins e Sereros, também
negros, mas não sujeitos ao rei de Senega. São grandes idólatras, não têm nenhuma
lei e são homens muito cruéis; empregam o arco e frechas, e atiram-nas com
venenos. São homens muito pretos e bem encorpados. O seu país está cheio de
mato, e é abundante em lagos e águas; e, por isso, se têm por muito seguros,
porque lá não se pode entrar se não por passos estreitos e por isso não temem
nenhum rei nem nenhum senhor das redondezas”. A viagem prossegue aprazível e
ele regista: “Correndo, com vento largo, pela dita costa, seguindo a nossa
viagem para o Sul, descobrimos a boca de um rio, com a largura, talvez, de um
tiro de arco, o qual rio se chama o rio dos Barbacins. E navegando chegámos à
boca de um rio o qual mostrava não ser inferior ao sobredito rio de Senega.
Lançámos ferro e deliberámos mandar a terra um dos nossos turgimãos, porque
todos os nossos navios tinham turgimãos pretos, trazidos de Portugal, os quais
turgimãos são escravos negros vendidos por aquele senhor de Senega aos
primeiros cristãos portugueses que vieram descobrir o país dos Negros”.
O turgimão negro
vai a terra e é morto à machadada, não houve conversas. Prosseguiu a viagem e
chegaram à boca do rio de Gambra, é uma viagem cheia de peripécias rio acima,
apercebem-se da hostilidade de quem os acompanha por terra. E relata
poeticamente: “Neste país, de manhã, ao romper do dia, não há nenhuma aurora
com o nascer do Sol, assim que desaparece o negrume da noite, logo se vê o Sol.
Por serem agentes do litoral tão rudes e selvagens, não pudemos vir à fala nem
negociar coisa nenhuma. Não passámos mais para diante por que os nossos
marinheiros não nos quiseram acompanhar. Pelo que, no ano seguinte armámos,
mais uma vez, duas caravelas a fim de percorrer mais uma vez esse grande rio.
Tendo ouvido dizer o senhor Infante D. Henrique sem licença do qual não
podíamos ir, que tínhamos tomado esta deliberação, muito lhe aprouve; e armou
uma caravela sua para que viesse a nossa companhia.
Depois da
Canária viajam sempre para o Sul e chegam ao Cabo Branco e então topou-se com
terra. Terão descoberto ilhas, não lhes deram nome nem estão identificadas.
Matam e cozinham tartarugas: “Pareceram-me bom manjar, quase tanto como carne
branca de vitela”.
Cadamosto pensa
ter chegado ao arquipélago de Cabo Verde, como escreverá Damião Peres nos
comentários à obra, o debate é interminável, as opiniões estão divididas mas
não é de excluir que ele tenha aportado em algumas ilhas. Conseguem contactar
com nativos no rio de Gambra, país de Gambra e o principal senhor da região que
se chamava Farosangoli, que estava subordinado o imperador do Mali. Havia
muitos senhores que viviam junto ao rio e em conversa com um negro este
ofereceu-se para os levar a um desses senhores. Foi assim que chegaram ao lugar
cujo nome era Bati Mansa. Descobriram que havia pouca quantidade de ouro.
Cadamosto expende larga opinião sobre os idólatras e crentes de Maomé.
Trouxeram uma pata e parte da tromba de um elefante ao Infante D. Henrique e
assombraram-se com um bicho desconhecido a que puseram o nome de peixe-cavalo,
não é mais do que o hipopótamo. Assim acabou a primeira viagem.
Mapa da Senegâmbia em 1707
É na segunda
viagem que Cadamosto chega ao que é hoje a Guiné-Bissau. Avistaram o rio
Casamansa, atingiram o Cabo Roxo e mais adiante chegaram ao rio de S. Domingos.
Houve um completo desentendimento na comunicação: “Vendo nós que estávamos em
país novo, e que não podíamos ser entendidos, concluímos que passar para diante
era inevitável”. No entanto, conseguem comprar anéis de ouro, descobrir que há
uma agricultura um tanto semelhante à que encontraram nos países acima, mas
aqui há pouquíssimo ouro. Cadamosto sente-se surpreendido pelas marés, pelos
terrenos subitamente alargados e escreve: “Há, naquela terra, maré montante e
vagante, como acontece em Veneza, o ímpeto da corrente da dita maré, quando
começa a encher, é quase incrível”.
Convém recordar
que as duas viagens de Cadamosto decorreram poucos anos antes da morte do
Infante D. Henrique. D. Afonso V, ciente da natureza do projeto henriquino e do
ponto a que chegara o conhecimento do litoral africano, manda duas caravelas
armadas e o capitão era Pedro de Sintra, escudeiro do rei. Cadamosto encontra
Pedro de Sintra el Lagos, Pedro de Sintra conta ponto por ponto todas as terras
que haviam descoberto e os nomes que lhes tinham posto. Pedro de Sintra chegara
à Guiné. As coisas ter-se-ão processado da seguinte maneira. Passaram o Cabo da
Verga, e navegaram ao longo da dita costa, pelo espaço de 80 milhas,
aproximadamente; descobriram um outro cabo que é o mais alto cabo que até hoje
fora avistado, e a meio desse cabo forma-se uma ponta aguda e alta, a modo de
ponta de diamante e todo ele está cheio de altíssimas e verdes árvores.
Puseram nome a
este cabo, o Cabo de Sagres, em memória de uma fortaleza que mandou construir o
Infante D. Henrique, a qual é propriamente uma das pontas do Cabo de S.
Vicente, à qual se pôs o nome de Sagres. E é chamada pelos portugueses Cabo de
Sagres da Guiné. No relato nota-se de que se já está a falar de uma realidade
comum à Senegâmbia, falam de pessoas idólatras porque adoram estátuas de
madeira com forma de homens e os negros quando comem ou bebem oferecem de
comida aos ídolos. E escreve-se: “São igualmente pretos, mas têm uns sinais
feitos com ferro em brasa, tanto na cara como no corpo; são mais depressa
pardos do que pretos. Não tem armas, por não haver ferro nas suas terras.
Sustentam-se de arroz, milho e legumes, isto é, fava e feijões, de qualidade
diferente dos nossos e muito maiores e mais belos. Têm carne de vaca e de
cabra, mas não em muita quantidade. Tem esta gente as orelhas todas furadas,
com buracos em toda a volta, nos quais buracos trazem vários aneizinhos de
ouro, um em seguido ao outro; também têm o nariz furado por baixo, no meio, e
aí trazem um anel de ouro, de pendurado, como trazem os nossos búfalos”.
Prossegue a
viagem e do Cabo de Sagres da Guiné atingem a Serra Leoa.
Este o essencial
dos relatos das duas viagens de Cadamosto e do que contou Pedro de Sintra.
Insiste-se que o historiador Damião Peres contesta a descoberta de algumas das
ilhas do arquipélago de Cabo Verde como Cadamosto menciona e exibe críticas
altamente desfavoráveis ao relato do viajante, a começar por Duarte Leite e
Fontoura da Costa. E após uma exposição de críticas e de muitos argumentos
contra, Damião Peres observa: “A hipótese formulada por Crone, afirma não
existir razão alguma que impeça ter-se realizado em 1456, na viagem em que
participou Cadamosto, o encontro das ilhas cabo-verdianas, embora se admita que
o melhor reconhecimento delas, preparador da sua colonização foi realizado em
1459 ou data próxima por Noli, talvez acompanhado por Diogo Gomes”. Dito de
outro modo, e à luz dos conhecimentos em meados do século XX, não se exclui que
Luís de Cadamosto tenha estado nalgumas das ilhas cabo-verdianas, mas só anos
depois é que se considera a sua descoberta e colonização a partir da viagem de
Noli e provavelmente acompanhado por Diogo Gomes.
Pedro de Sintra
terá viajado desde a foz do rio Geba até uns quilómetros além do Cabo Mesurado,
mas já teria anteriormente navegado por lá em vida do Infante D. Henrique.
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