quinta-feira, 18 de março de 2021

Viagens de Luís de Cadamosto e de Pedro de Sintra.

 





No âmbito das comemorações do V Centenário da Descoberta da Guiné, a Academia Portuguesa de História editou em 1948 o trabalho “Viagens de Luís de Cadamosto e Pedro de Sintra”, com notas históricas por Damião Peres. Este insigne historiador justifica a iniciativa: “Como a crónica henriquina de Azurara não abrange feitos da Guiné posteriores a 1447, as páginas de Cadamosto constituem uma fonte narrativa, embora de utilização cautelosa, pois nelas se encontram dados cronológicos errados, e até, segundo se pode crer, alguma jactância atentatória da verdade”. Esta edição da Academia Portuguesa de História reproduz o texto de 1812 com as traduções a partir do italiano os dois viajantes, da Academia Real das Ciências, veja-se o site: http://livrosevelharias.blogspot.pt/2012/10/viagens-de-luis-de-cadamosto-e-pedro-de.html#!/2012/10/viagens-de-luis-de-cadamosto-e-pedro-de.html.

Tome-se como ponto de partida a primeira viagem de Luís de Cadamosto. Ele vem fazer comércio à Costa dos Escravos ou Terra dos Negros, é um veneziano que espelha os conhecimentos da época, homem curioso, o seu relato começa no que é hoje o Senegal. Diz assim: “O país destes primeiros negros do reino de Senega (Senegal) é o primeiro reino dos negros da Baixa Etiópia. Os povos próximos deste rio chamam-se Gilofos (os Jalofos)”.

É atento e minucioso: o Cabo Verde é a terra mais alta que há em toda esta costa, para além do dito Cabo Verde toda a costa é praia rasa. Vem a terra e comenta: Não há no país nenhuma cidade nem lugar murado, se não aldeias e casas de palha (que eles não sabem fazer casas de paredes porque não têm cal e têm grande falta de pedras). O modo de vida deste rei é o seguinte: não tem rendimento certo, além daquele que lhes dão os senhores desse país todos os anos para estarem de bem com ele, os quais presentes são de cavalos que lá são muito apreciados, por deles haver falta. Este rei vive também com roubos que faz, e tem sempre muitos escravos negros que manda pilhar não só no país como nos outros países vizinhos. Quanto ao vestir desta gente, quase todos andam nus continuamente salvo que trazem um coiro de cabra posto em forma de calça com que cobrem as vergonhas; mas os senhores e aqueles que podem comprar alguma coisa vestem camisas de pano de algodão. Quanto à forma, as suas camisas são compridas até meia coxa e largas. As mulheres desta região são muito asseadas de corpo, pois se lavam completamente, quatro e cinco vezes por dia; e assim também os homens, mas no comer são porcalhões e sem nenhuma educação. São homens de muitas palavras e nunca acabam de falar; e são todos, sempre, mentirosos e enganadores, em extremo; por outro lado, são caritativos, porque dão de comer e beber a qualquer estrangeiro que, de passagem, chegue a sua casa por uma refeição ou por uma noite, sem qualquer remuneração.

Cadamosto tem um olhar de antropólogo na descrição das cerimónias, nas receções, na admiração ao destemor dos nadadores, descreve a vida de Budomel, o rei da região.

E procura dar um quadro da economia da terra: “Neste reino de Senega dos negros, nem daí por diante, em nenhuma Terra do País dos Negros se produz trigo, nem centeio, nem cevada, nem aveia, nem vinho. E visto que o país é bastante quente e não chove em nove meses do ano. A sua comida é de milho de diversas espécies, fava e feijões que nascem naquelas partes, os mais grados e mais belos que há no mundo. E procede a uma descrição da comida, bebida e substâncias oleaginosas. Fala então da fauna: nesta terra de Senega dos negros não se encontram outros animais úteis a não ser bois, vacas e cabras; ovelhas não se criam aí, nem poderiam viver por causa do grane calor. As vacas e bois daquele país são mais pequenos que os nossos. Animais bravo de presa há-os: leões, onças e leopardos, lobos e cabritos monteses; há í também elefantes selvagens. Estes elefantes andam aos bandos. Os seus dentes grandes nunca lhes caem, a não ser por morte. E aí animal que não ataca o homem se o homem não o atacar.

Cadamosto, com a curiosidade comerciante, vai ver como os outros mercadejam. E observa: Porque me acontece estar em terra muitos dias, determinei ir ver um seu mercado ou feira que se fazia numa pradaria, não muito longe do lugar onde eu estava hospedado; o qual se fazia à segunda e sexta-feira: fui lá duas ou três vezes. A este mercado vinham homens e mulheres das terras que estavam em volta até quatro ou cinco milhas, pois que os que estavam mais longe iam a outros mercados, porque também noutros lugares se costumam fazer. Nestes mercados compreendi muito bem que estes são gente muito pobre, pelas coisas que traziam ao mercado para vender. Primeiramente era o algodão (mas não fiado) em pouca quantidade; não muitos panos de algodão; legumes, milho, óleo; gamelas de pau, esteiras de palma e todas as outras coisas de que se servem para a sua vida. Nada se vende por dinheiro porque não há moeda nenhuma nem usam se não trocar coisa por coisa ou duas coisas por uma coisa, e todo o seu mercado se faz por troca. Estes negros, tanto machos como fêmeas, vinham ver-me como uma maravilha, e parecia-lhes coisa extraordinária ver um cristão em tal lugar, nunca dantes visto: e não menos se espantavam do meu traje e da minha brancura; o qual traje era à espanhola, com um jibão de damasco preto, e com uma capinha de gris; reparavam para o pano de lã, que eles não têm, e reparavam para o jibão, e muitos pasmavam, alguns tocavam nas mãos e nos braços e com cuspo esfregavam-me para ver se a minha brancura era tinta ou carne; e vendo que era carne branca, ficavam-se em admiração. Vendo-se um cavalo arreado com os seus arreios por nove até catorze escravos, conforme a qualidade e beleza do cavalo. Admiravam-se, grandemente, de ver arder uma vela, de noite, num castiçal e isto porque na sua terra não sabem produzir nenhuma outra luz que não seja a da fogueira.

Prepara-se para partir do Senegal para a Gâmbia, e ainda mais abaixo. E explica: Tive ocasião de estar neste país do senhor Budomel alguns dias, para vender e comprar, e saber de muitas coisas: pelo que estando do dito senhor despachado, e tenho obtido uma certa quantidade de escravos, determinei ir para diante, e passar o Cabo Verde e ir descobrir países novos para experimentar a minha sorte. Não muito longe deste primeiro reino de Senega dos Negros, indo mais para diante, havia um outro reino ou país chamado Gambra (Gâmia) no qual se encontrava grande quantidade de ouro.

Passa junto a terra firme de nome Cabo Verde e revela que os primeiros que o acharam foram os portugueses talvez um ano antes de eu ir a essas partes, “o acharam inteiramente verde pelas grandes árvores que estão verdes todo o tempo do ano”. E rende-se à pujança da paisagem: “Nunca vi mais bela costa do que esta que se me ofereceu; a qual é banhada por muitas ribeiras e rios pequenos e sem importância. Esta costa é habitada por dois povos: Barbacins e Sereros, também negros, mas não sujeitos ao rei de Senega. São grandes idólatras, não têm nenhuma lei e são homens muito cruéis; empregam o arco e frechas, e atiram-nas com venenos. São homens muito pretos e bem encorpados. O seu país está cheio de mato, e é abundante em lagos e águas; e, por isso, se têm por muito seguros, porque lá não se pode entrar se não por passos estreitos e por isso não temem nenhum rei nem nenhum senhor das redondezas”. A viagem prossegue aprazível e ele regista: “Correndo, com vento largo, pela dita costa, seguindo a nossa viagem para o Sul, descobrimos a boca de um rio, com a largura, talvez, de um tiro de arco, o qual rio se chama o rio dos Barbacins. E navegando chegámos à boca de um rio o qual mostrava não ser inferior ao sobredito rio de Senega. Lançámos ferro e deliberámos mandar a terra um dos nossos turgimãos, porque todos os nossos navios tinham turgimãos pretos, trazidos de Portugal, os quais turgimãos são escravos negros vendidos por aquele senhor de Senega aos primeiros cristãos portugueses que vieram descobrir o país dos Negros”.

O turgimão negro vai a terra e é morto à machadada, não houve conversas. Prosseguiu a viagem e chegaram à boca do rio de Gambra, é uma viagem cheia de peripécias rio acima, apercebem-se da hostilidade de quem os acompanha por terra. E relata poeticamente: “Neste país, de manhã, ao romper do dia, não há nenhuma aurora com o nascer do Sol, assim que desaparece o negrume da noite, logo se vê o Sol. Por serem agentes do litoral tão rudes e selvagens, não pudemos vir à fala nem negociar coisa nenhuma. Não passámos mais para diante por que os nossos marinheiros não nos quiseram acompanhar. Pelo que, no ano seguinte armámos, mais uma vez, duas caravelas a fim de percorrer mais uma vez esse grande rio. Tendo ouvido dizer o senhor Infante D. Henrique sem licença do qual não podíamos ir, que tínhamos tomado esta deliberação, muito lhe aprouve; e armou uma caravela sua para que viesse a nossa companhia.

Depois da Canária viajam sempre para o Sul e chegam ao Cabo Branco e então topou-se com terra. Terão descoberto ilhas, não lhes deram nome nem estão identificadas. Matam e cozinham tartarugas: “Pareceram-me bom manjar, quase tanto como carne branca de vitela”.

Cadamosto pensa ter chegado ao arquipélago de Cabo Verde, como escreverá Damião Peres nos comentários à obra, o debate é interminável, as opiniões estão divididas mas não é de excluir que ele tenha aportado em algumas ilhas. Conseguem contactar com nativos no rio de Gambra, país de Gambra e o principal senhor da região que se chamava Farosangoli, que estava subordinado o imperador do Mali. Havia muitos senhores que viviam junto ao rio e em conversa com um negro este ofereceu-se para os levar a um desses senhores. Foi assim que chegaram ao lugar cujo nome era Bati Mansa. Descobriram que havia pouca quantidade de ouro. Cadamosto expende larga opinião sobre os idólatras e crentes de Maomé. Trouxeram uma pata e parte da tromba de um elefante ao Infante D. Henrique e assombraram-se com um bicho desconhecido a que puseram o nome de peixe-cavalo, não é mais do que o hipopótamo. Assim acabou a primeira viagem.



Mapa da Senegâmbia em 1707


 

É na segunda viagem que Cadamosto chega ao que é hoje a Guiné-Bissau. Avistaram o rio Casamansa, atingiram o Cabo Roxo e mais adiante chegaram ao rio de S. Domingos. Houve um completo desentendimento na comunicação: “Vendo nós que estávamos em país novo, e que não podíamos ser entendidos, concluímos que passar para diante era inevitável”. No entanto, conseguem comprar anéis de ouro, descobrir que há uma agricultura um tanto semelhante à que encontraram nos países acima, mas aqui há pouquíssimo ouro. Cadamosto sente-se surpreendido pelas marés, pelos terrenos subitamente alargados e escreve: “Há, naquela terra, maré montante e vagante, como acontece em Veneza, o ímpeto da corrente da dita maré, quando começa a encher, é quase incrível”.

Convém recordar que as duas viagens de Cadamosto decorreram poucos anos antes da morte do Infante D. Henrique. D. Afonso V, ciente da natureza do projeto henriquino e do ponto a que chegara o conhecimento do litoral africano, manda duas caravelas armadas e o capitão era Pedro de Sintra, escudeiro do rei. Cadamosto encontra Pedro de Sintra el Lagos, Pedro de Sintra conta ponto por ponto todas as terras que haviam descoberto e os nomes que lhes tinham posto. Pedro de Sintra chegara à Guiné. As coisas ter-se-ão processado da seguinte maneira. Passaram o Cabo da Verga, e navegaram ao longo da dita costa, pelo espaço de 80 milhas, aproximadamente; descobriram um outro cabo que é o mais alto cabo que até hoje fora avistado, e a meio desse cabo forma-se uma ponta aguda e alta, a modo de ponta de diamante e todo ele está cheio de altíssimas e verdes árvores.

Puseram nome a este cabo, o Cabo de Sagres, em memória de uma fortaleza que mandou construir o Infante D. Henrique, a qual é propriamente uma das pontas do Cabo de S. Vicente, à qual se pôs o nome de Sagres. E é chamada pelos portugueses Cabo de Sagres da Guiné. No relato nota-se de que se já está a falar de uma realidade comum à Senegâmbia, falam de pessoas idólatras porque adoram estátuas de madeira com forma de homens e os negros quando comem ou bebem oferecem de comida aos ídolos. E escreve-se: “São igualmente pretos, mas têm uns sinais feitos com ferro em brasa, tanto na cara como no corpo; são mais depressa pardos do que pretos. Não tem armas, por não haver ferro nas suas terras. Sustentam-se de arroz, milho e legumes, isto é, fava e feijões, de qualidade diferente dos nossos e muito maiores e mais belos. Têm carne de vaca e de cabra, mas não em muita quantidade. Tem esta gente as orelhas todas furadas, com buracos em toda a volta, nos quais buracos trazem vários aneizinhos de ouro, um em seguido ao outro; também têm o nariz furado por baixo, no meio, e aí trazem um anel de ouro, de pendurado, como trazem os nossos búfalos”.

Prossegue a viagem e do Cabo de Sagres da Guiné atingem a Serra Leoa.

Este o essencial dos relatos das duas viagens de Cadamosto e do que contou Pedro de Sintra. Insiste-se que o historiador Damião Peres contesta a descoberta de algumas das ilhas do arquipélago de Cabo Verde como Cadamosto menciona e exibe críticas altamente desfavoráveis ao relato do viajante, a começar por Duarte Leite e Fontoura da Costa. E após uma exposição de críticas e de muitos argumentos contra, Damião Peres observa: “A hipótese formulada por Crone, afirma não existir razão alguma que impeça ter-se realizado em 1456, na viagem em que participou Cadamosto, o encontro das ilhas cabo-verdianas, embora se admita que o melhor reconhecimento delas, preparador da sua colonização foi realizado em 1459 ou data próxima por Noli, talvez acompanhado por Diogo Gomes”. Dito de outro modo, e à luz dos conhecimentos em meados do século XX, não se exclui que Luís de Cadamosto tenha estado nalgumas das ilhas cabo-verdianas, mas só anos depois é que se considera a sua descoberta e colonização a partir da viagem de Noli e provavelmente acompanhado por Diogo Gomes.

Pedro de Sintra terá viajado desde a foz do rio Geba até uns quilómetros além do Cabo Mesurado, mas já teria anteriormente navegado por lá em vida do Infante D. Henrique.

 

                                                                                                       Mário Beja Santos





2 comentários:

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