Luís Eloy Azevedo
“Agora que as instituições são outras, o
castigo dos antigos ditadores pode representar um acto de ódio ou de vingança,
mas nenhuma influencia terá sobre a marcha dos negócios públicos. (…) A esses
tribunais, quer o julguem em nome da lei, quer em nome da opinião, ele só pede
justiça para o seu nome e para os seus actos, justiça para as suas rectas
intenções e respeito pelos seus infortúnios”
João Franco[1]
Resumo: O processo
instaurado a João Franco após a implantação da República é um caso judicial
muito pouco conhecido nos dias de hoje, mas de enorme importância pelo seu
carácter pioneiro
Tratava-se,
afinal, de uma inédita imputação criminal efectuada, por factos ocorridos no
desempenho de funções, contra um ex-Presidente do Conselho de Ministros, uma
das figuras mais importantes e controversas da pré-República.
Representava,
igualmente, a tentativa de concretização da “responsabilidade ministerial”, uma matéria jurídica muito difícil
de alinhavar, amplamente debatida, externa e internamente, até aos dias de
hoje.
Por
todos esses motivos, a aposta na divulgação deste leading case, onde a fronteira entre a responsabilidade política e
a responsabilidade penal não é nítida, afigura-se fundamental.
Palavras-chave: João Franco; Afonso Costa; República;
Responsabilidade Ministerial; Política; Justiça nas transições de regime.
A “recomposição de uma cidade dividida” (na expressão de Maquiavel) é,
desde sempre, uma matéria crucial da agenda política dos vencedores.
Como pode um regime e um
judiciário de um sistema fazer justiça sobre as acções e motivações de pessoas
com fidelidade a outro sistema?
Situada na confluência da
política, da justiça e da história, esta matéria convoca inúmeras estratégias e
problemas de articulação entre as lógicas respectivas de cada uma.
O ajuste de contas com o
passado por parte do regime republicano instaurado a 5 de Outubro de 1910
convoca, curiosamente, muitos dos problemas que a justiça transicional tem
analisado, normalmente
apenas associados aos processos de transição ou retorno para a democracia. A
forma como o poder político lidou com a magistratura vinda da monarquia, entre
a contemporização e a cólera, e como o saneamento
dos seus quadros foi cogitado (e nalguns casos executado) é fundamental para
perceber os impulsos, as hesitações, as mutações e as inquietações que se
estabelecem entre a política e a justiça nas transições de regime.
O processo instaurado a
João Franco após a implantação da República é um caso judicial muito pouco
conhecido nos dias de hoje, mas de enorme importância pelo seu carácter
pioneiro. Este processo emblemático, até pelas suas fortes implicações
comunicacionais, foi o joker de toda
a relação entre o poder republicano e o poder judicial.
Tratava-se, afinal, de
uma inédita imputação criminal efectuada, por factos ocorridos no desempenho de
funções, contra um ex-Presidente do Conselho de Ministros, uma das figuras mais
importantes e controversas da pré-República[2].
Representava, igualmente,
a tentativa de concretização da “responsabilidade
ministerial”, uma matéria jurídica muito difícil de alinhavar, amplamente
debatida, externa e internamente, até aos dias de hoje[3].
Por todos esses motivos,
com recurso a fontes jornalísticas e judiciais, a aposta na divulgação deste leading case, onde a fronteira entre a
responsabilidade política e a responsabilidade penal não é nítida, afigura-se
fundamental.
A responsabilização dos
ministros era uma matéria constitucional muito debatida e delicada[4]. Estava prevista na Carta
Constitucional (arts. 103 a 105). Na linha do sistema britânico, a Câmara dos
Pares desempenhava funções judiciais sendo sua competência exclusiva julgar os
delitos cometidos pelos membros da família real, ministros e conselheiros de
Estado, pelos deputados e pelos próprios pares do reino. Os crimes que
envolvessem responsabilidade ministerial e os crimes cometidos pelos
conselheiros de Estado teriam mesmo que ser acusatoriamente promovidos pela Câmara
dos Deputados (arts. 37.º e 41.º da Carta Constitucional). No entanto, à natural
responsabilização política que se processava perante as Câmaras não
correspondeu nunca uma responsabilização penal efectiva, com escassa
intervenção da Camara dos Pares e nulo sancionamento prático, apesar de alguns
projectos de intenção[5].
Na verdade, a Carta
Constitucional referia:
“É da privativa atribuição da mesma Câmara
[dos Deputados] decretar que tem lugar acusação dos ministros de Estado e
conselheiros de Estado” (art. 37.º) e acrescentava, “É da atribuição exclusiva da Câmara dos Pares: conhecer dos delitos
individuais cometidos pelos membros da Família Real, ministros de Estado e pares,
os delitos dos deputados, durante o período da legislatura” (art. 41.º, 1.º)
estabelecendo que “Os ministros de Estado
serão responsáveis: por traição; por peita, suborno, ou concussão; por abuso do
poder; pela falta de observância da lei; pelo que obrarem contra a liberdade,
segurança, ou propriedade dos cidadãos; por qualquer dissipação dos bens
públicos” (art. 103.º e seus parágrafos).
Mas o artigo 104.º da
mesma Carta impunha, também claramente que “Uma
lei particular especificará a natureza destes delitos e a maneira de proceder
contra eles”. Ora, esta lei nunca
chegou a ser promulgada, apesar das múltiplas propostas que, ao longo
tempo, foram apresentadas na Câmara dos Deputados[6].
A concretização da responsabilidade
ministerial esbarrava nalguns postulados difíceis de ultrapassar como a
garantia administrativa ou o princípio da separação de poderes. A primeira, introduzida
em 1835, respeitava à necessidade de prévia autorização do governo para os
funcionários serem demandados civil e criminalmente baseado no dever de
obediência e na eficiência de uma administração toldada pelo medo do processo
judicial. O segundo, traduzia um princípio de Montesquieu acolhido
constitucionalmente.
As relações complicadas
entre a magistratura e a República não se podem desligar do anticlericalismo
constitutivo da ideologia republicana que chocava com a formação católica e
conservadora, maioritária na magistratura de então. Qualquer revés do lado
republicano era, assim, imediatamente associado a uma santa aliança clerical-monárquica-judiciária,
com forte aquecimento do ambiente político-judicial.
Um
contencioso que emergiu como o mais paradigmático das relações difíceis entre republicanos
e monárquicos, com o judiciário de permeio, estava relacionado com o consulado
de João Franco e o célebre caso dos adiantamentos à família real[7].
Tal processo judicial tem
antecedentes que convém elucidar.
João Franco, depois de
tomar posse como Presidente do Conselho em 1906, apresentou ao Parlamento um
projecto de lei sobre contabilidade pública onde pretendia regularizar a
questão dos adiantamentos à família real, admitindo que o Ministério da Fazenda
procedia, de há muito, a «adiantamentos» de somas avultadas aos membros da
família real. Como esta não tivesse regularizado integralmente essas dívidas,
nunca apuradas com inteiro rigor, o governo pretendia agora, por um lado,
aumentar a lista civil do rei de 100 para 190 contos e, por outro, proceder a
um acerto de contas que passava, designadamente, pelo não pagamento pelo Estado
de rendas referentes a prédios pertencentes à coroa e a venda ao Estado do iate
real D. Amélia.
A sessão de 20 de Novembro de 1906 da Câmara
dos Deputados ficaria célebre pela intervenção do então deputado Afonso Costa sobre
essa questão.
Num longo discurso, com a
sua habilidade argumentativa habitual, o líder republicano aproveitou o erro daquele
desvendamento público e desferiu um violentíssimo ataque a
João Franco e à monarquia.
Começou por exigir que o
Presidente do Conselho “pode e deve ser
obrigado a trazer à Câmara, o mais cedo possível, os documentos relativos aos
adiantamentos. É a opinião pública que o exige: ela o obrigará, em nome da lei,
a trazer à Câmara esses documentos, que são da Nação, e eu iria, em nome dela,
arrancar ao Ministério, se tivesse meio de o fazer”.
Depois, assumindo-se como
representante da legalidade e do interesse nacional avançou: “Em todo o caso eu quero desde já dizer a S.
Ex.ª, em resposta à sua declaração de que serão regularizados os créditos da
casa real, que o País não consentirá nessa regularização. O País não consentirá
em nenhum aumento da lista civil; não consentirá em nenhuma regularização de
dinheiros desviados criminosamente dos cofres públicos”.
De seguida, Afonso Costa coloca, pela primeira
vez, a conduta do Governo e do Rei no plano criminal, subindo claramente um
patamar que, aliás, bem manobrava como eminente jurista e professor de direito:
“O País não transige com crimes, nem com
criminosos; nem admite ao Sr. Presidente do Conselho que S. Ex.ª se coloque no
papel de encobridor, transformando assim a sua vida pública e a sua própria
vida pessoal, de sorte a não poder continuar a merecer o conceito em que é tido
pelos seus amigos e pelos seus adversários, que o respeitam. Nos legem habemus.
Nós temos lei! Não se trata agora de adiantamentos a um funcionário público
qualquer nos termos gerais e usuais, como disse o Sr. Conde de Penha Garcia.
Trata-se de verdadeiros desvios de dinheiro, contra lei expressa. Esta lei é a
de 28 de Junho de 1890, para a qual chamo a atenção da Câmara e do País
inteiro. Que diz a lei? Ouça a Nação! Depois de fixar em réis 525.000$000 as
dotações e alimentos de toda a família real, diz expressamente o artigo 6.º:
«Nenhuma outra quantia além das mencionadas, qualquer que seja a sua natureza
ou denominação, será abonada para as despesas da casa real.» Não há nada mais
claro, não há nada mais terminante, não há nada mais imperativo”.
E terminou esse discurso
em crescendo, levando a sua acusação ao limite, com uma frase que deixaria uma marca
forte e muitas sequelas: “Por muito menos
crimes do que os cometidos por D. Carlos I, rolou no cadafalso, em Franca, a
cabeça de Luís XVI!”[8].
Seguiu-se um enorme
tumulto na Câmara e foi aprovada uma censura regimental a Afonso Costa com a
inédita suspensão de funções de deputado e a imposição da sua saída da sala,
com intervenção da força policial[9].
O efeito pretendido estava
produzido e a imprensa republicana entronizou o seu líder como um herói
nacional.
Este incidente e a
questão dos adiantamentos nunca mais seria deixada cair pela imprensa, em geral
e por Afonso Costa, em particular, queimando, em lume brando, o que restava do prestígio
dos partidos tradicionais e da monarquia[10].
Depois de liquidados os
adiantamentos, com uma análise curiosa e contundente, o republicano Lopes de
Oliveira resumia assim a situação: “é a
presidência do Conselho de Ministros que regula as contas e gratifica o
monarca…assim se equilibrava tudo, alegava-se…mas o que não se equilibrava era
o prestigio da coroa; (…) E, pela discriminação das verbas apuradas,
verificava-se que Hintze e José Luciano haviam mentido, negando a existência
dos adiantamentos!”. E rematava lapidarmente “Ia tudo ao fundo…Eram todos loucos, eram todos imbecis, ou eram todos
criminosos?”.
Após o regicídio, Afonso
Costa voltaria à carga, a 14 de Julho de 1908, referindo na Câmara “não estamos em tribunal criminal, não está
aberta a Penitenciária e o Limoeiro, é certo, mas o partido do maldito e os
ministros dos partidos que fizeram os adiantamentos não podem voltar a
governar. (…) os partidos rotativos que fizeram os adiantamentos, enterraram definitivamente
a monarquia, e assassinaram-na” (Diário
da Câmara dos Deputados, Sessão n.º 42, de 14 de Julho de 1908).
A 28 de Julho de 1908, na
Câmara dos Deputados, Afonso Costa, refere que “no mesmo dia em que tomou o poder este Governo os antigos Ministros
haviam de ter sido metidos em prisões e submetidos a julgamento, a que não
podem, de resto, furtar-se. É tarde para começar o castigo dos criminosos, mas
a todo o tempo é tempo”. E assume que lhe cumpre e é “o seu dever”, trazer á Câmara “a
sua acusação publica aos Ministros da última ditadura, devidamente
fundamentada, quer sob o ponto de vista jurídico, quer como político”.
E termina, “mandando para a mesa a sua proposta, que lhe
parece mais completa do que a acusação de Mariano de Carvalho, apresentada por
Manuel de Arriaga. Essa proposta, que o orador leu, tem por fim decretar a
acusação dos ex-Ministros de Estado João Ferreira Franco Pinto Castelo Branco, António
José Teixeira de Abreu, Fernando Augusto Miranda Martins de Carvalho, António
Carlos Coelho de Vasconcelos Porto, Ayres de Ornelas e Vasconcelos, Luciano
Afonso da Silva Monteiro e José Malheiro Reymão”. Nos termos regimentais, a
proposta ficou para segunda leitura (Diário
da Câmara dos Deputados, Sessão n.º 51, de 28 de Julho de 1908).
A 29 de Julho é lida a
acusação de Afonso Costa imputando àqueles responsabilidade pelos delitos de
traição, abuso do poder, falta de observância da lei, ataques á liberdade e
segurança dos cidadãos e dissipação dos bens públicos (Carta Constitucional,
artigo 103.°) referindo que a própria Carta diz que só esta Câmara pode
decretar a acusação dos Ministros (artigo 37.°) e que a dos Dignos Pares é a
única competente para os julgar (artigo 41.°, § 1.°), funcionando então como
tribunal de justiça criminal, nos termos da lei de 15 de Fevereiro de 1849 e do
regulamento interno de 1 de Abril de 1892. Feita a segunda leitura, a admissão
da proposta de
Afonso Costa é submetida à votação da Câmara dos Deputados,
e é rejeitada. (Diário da Câmara dos
Deputados, Sessão n.º 52, de 29 de Julho de 1908).
A 27 de Junho de 1910,
com audiência do Conselho de Estado, foi decretada a dissolução da Câmara dos
Deputados eleita em 5 de Abril de 1908 e convocadas para 28 de Agosto novas
eleições (D.G. n.º 139, de 28 de Junho de 1910).
Como consequência da
revolução republicana de 5 de Outubro de 1910, a 18 de Outubro, é publicado o
decreto com força de lei de 17
Outubro de 1910 pelo qual: “Fica abolido
o Conselho de Estado” e “Fica abolida
a actual Câmara dos Dignos Pares do Reino, sendo considerados nulos os
privilégios, regalias e imunidades de que gozavam os seus membros” (D.G.
n." 11, de 18 de Outubro de 1910) e a 21 de Outubro, é publicado o decreto
com força de lei de 10 de Outubro de 1910 pelo qual:
“são
revogadas todas as leis de excepção que submetem quaisquer indivíduos a juízos
criminais excepcionais, e nomeadamente: a lei de 13 de Fevereiro de 1896, sobre
anarquismo; as leis de 21 de Abril de 1892 e 3 de Abril de 1896, na parte em
que mandam deportar diversas categorias de delinquentes por tempo indefinido a
Lei de 12 de Junho de 1901, que retirou ao júri certas competência
para julgar crimes (...); todos os diplomas, e nomeadamente, o decreto de 28 de
Agosto de 1893, a lei de 3 de Abril de 1896, o decreto de 20 de Janeiro de 1898
e o decreto de 19 de Novembro de 1902, que instituíram e deram competência e
atribuições ao chamado "Juízo de Instrução Criminal", o qual fica
extinto para sempre”.
Já com Afonso Costa como
Ministro da Justiça, sem perda de tempo, a 25 desse mês, o visconde da Ribeira
Brava apresenta no 1.º Juízo de Investigação Criminal de Lisboa uma
participação contra João Franco e os restantes ministros franquistas. A
acusação retomava a proposta anterior de Afonso Costa, imputando a João Franco
os crimes especificados no art. 103.º da Carta Constitucional: traição, abuso
de poder, falta de observância das leis, ataque à liberdade e à segurança dos
cidadãos e dissipação de bens públicos. O processo foi instruído com um exemplar
do Jornal republicano O Mundo, de 29
de Julho de 1908, onde se transcrevia o projecto de acusação que Afonso Costa
apresentara na Câmara dos Deputados e declarava como transcrita na sua denúncia
essa acusação, oferecendo nove testemunhas, muitas delas envolvidas no
movimento revolucionário de 28 de Janeiro de 1908, entre as quais Egas Moniz[11].
O Ministério Público
promove de imediato a formação de corpo de
delito com a inquirição das testemunhas oferecidas. Refira-se que a margem de
autonomia do Ministério Público para sindicar a bondade da acusação ou alterar
o seu teor era nula. Como referia Alberto dos Reis, em 1905, os magistrados do
Ministério Público eram vistos como “representantes
do poder executivo junto da autoridade judiciária, e daqui a sua amovibilidade,
a subordinação hierárquica ao ministro da justiça e a responsabilidade para com
esse ministro pela execução das ordens recebidas”[12]. O Ministério Público
era, em Portugal, como nos seus congéneres europeus, um instrumento dócil nas
mãos do Governo do qual dependia em absoluto.
No dia seguinte, a 26 de Outubro, foram
ouvidas sete das nove testemunhas oferecidas por Ribeira Brava. As duas que
faltaram imediatamente substituídas por outras duas, que depuseram no dia 27.
E, a 28, o Ministério Público dá a sua querela contra os arguidos: João Franco
(Presidente do Conselho de Ministros e Ministro do Reino), Teixeira de Abreu,
(Justiça), Martins de Carvalho (Fazenda), Vasconcellos Porto (Guerra), Ayres de
Ornellas (Marinha), Luciano Monteiro (Estrangeiros) e Malheiro Reymão (Obras Públicas).
No dia 29 de Outubro, o juiz pronuncia João
Franco e
restantes arguidos:
“por terem promulgado e posto em execução,
desde
10 de Maio de 1907 a 31 de Janeiro de 1908 setenta decretos, regulando matéria
de exclusiva competência do poder legislativo, suspendendo a execução das leis
e arrogando-se o poder de legislar, praticando assim o crime punível pelo art.
301, n.º1 do Código Penal, e terem promulgado o Decreto de 30 de Agosto de
1907, pelo qual o rei D. Carlos deu por paga ao Estado uma parte que este lhe
havia adiantado com bens da Coroa, estabelecendo em seguida que ficassem a
cargo do Estado despesas na importância de 160 000S de réis anuais, que por lei
estavam a cargo do Monarca, com o intuito fraudulento de aumentar a lista civil
nesta quantia sob pretexto de liquidar contas com o Estado, o que, segundo o
mesmo despacho, constitui crime punível pelo art. 451.º, n.º 3, com referência
ao art. 421.º, n.º 4, do Código Penal, mas como simples tentativa, visto que não
se mostra que D. Carlos chegasse a receber aquela quantia”.
O mesmo juiz, porém, não
pronuncia os arguidos pelos restantes factos alegadamente criminosos
mencionados na acusação, “com o
fundamento de lhes ser aplicável a amnistia concedida por Decreto de 8 de Maio
de 1908, e de não estarem sequer constatados no corpo de delito os elementos
constitutivos de alguns deles” (Gazeta da Relação de Lisboa, 24.º Ano, n. °
51, 22-12-1910, p. 405).
No dia 30 de Outubro, de
manhã, João Franco é preso na sua casa de Sintra, vestiu-se de fraque e calça
preta, pôs um chapéu de coco e foi levado para a Boa-Hora sob captura.
Ao interrogatório, no
gabinete do juiz que lhe notificou a pronúncia (Bernardo Meireles Leite),
assistiram Germano Marques, como representante do ministro da Justiça, Daniel
Rodrigues, amigo de Afonso Costa, e alguns amigos de João Franco. Era acusado
de ter promulgado e posto em execução desde 10.5.07 (início da ditadura) a
31.1.08 (véspera do regicídio) setenta decretos modificando matéria da exclusiva
competência do poder legislativo, tendo igualmente impedido, por via desses
decretos, a execução das leis do País e era também acusado de ter liquidado a
dívida régia do Estado, usando para isso de haveres que não eram propriedade do
falecido monarca, mas sim bens da coroa, aumentando do mesmo passo a lista
civil, fraudulentamente, em cento e sessenta contos[13].
Franco protestou contra a
sua prisão recorrendo, sendo-lhe fixada uma caução de duzentos contos
prontamente paga por um seu correligionário (Luís Sommer) perante uma multidão
colérica.
Tal multidão foi-se
reunir à porta de Bernardino Machado, na sua casa à Estrela, que se dirigiu aos
manifestantes lembrando-lhes[14]:
“Assim como nós protestámos sempre contra uma
justiça monárquica, assim agora também não queremos uma justiça republicana,
mas justiça em toda a pura limpidez da sua missão. É necessário não darmos a
impressão de que estamos fazendo uma obra de vingança (...) Viva a República”.
Quanto ao processo,
recorreu dele João Franco para a Relação[15] e
também o Ministério Publico interpôs agravo contra a parte do despacho do 1º Juiz
de Investigação Criminal de Lisboa que não pronunciou João Franco e os seus
ministros pelos alegados crimes, considerados amnistiados pelo Decreto de 8 de
Maio de 1908. Por sua vez, João Franco interpõe dois agravos: um contra o
despacho do 1.º Juízo de Investigação Criminal de Lisboa que o pronunciou e
outro contra o despacho que arbitrou a fiança em 200 000$000 de réis.
A 16 de Novembro, em
sessão do Tribunal da Relação de Lisboa, é distribuído a Mendonça David, como
juiz relator, o processo de agravo interposto pelo delegado do Procurador da
República, e a César Brandão o processo de agravo de João Franco relativo ao
valor fiança que lhe fora arbitrada. (Gazeta da Relação de Lisboa, vol. 24.º, n.º
41, p. 328). A 19 de Novembro, em sessão do Tribunal da Relação de Lisboa, é distribuído
a Abel de Mattos Abreu, como juiz relator, o processo de agravo interposto por
João Franco contra o despacho que o pronunciou (Gazeta da Relação de Lisboa
vol. 24, n.º 43, p. 335).
A 10 de Dezembro, os
juízes Mendonça David, relator, Andrade e
Horta e Costa acordam, em conferência na Relação, relativamente ao
agravo interposto pelo Ministério Público, que “desnecessário se torna
apreciar a competência do processo e a validade do corpo de delito,
visto que pela amnistia acaba todo o procedimento criminal, qualquer
que ele seja; por estes fundamentos, negam provimento ao agravo” (Gazeta da
Relação de Lisboa, 24.° Ano, n.º 51, p. 405).
A 14 de Dezembro, os juízes
Abel de Mattos Abreu (relator), Barbosa Vianna e Pimenta de Castro julgam, em
conferência na Relação, relativamente ao agravo interposto por João Franco
contra o despacho de pronúncia “incompetente
o juízo recorrido e o meio empregado para conhecer dos factos a que respeita a
pronúncia e anulam todo o processo, na parte relativa ao agravante, dando
nestes termos provimento ao recurso” (D.G. n. ° 66 de 22 de Dezembro de
1910)[16]. No mesmo dia 14 de
Dezembro é produzido na Relação de Lisboa um outro acórdão, este relativo ao agravo
interposto por José Malheiro Reymão, co-réu de João Franco: contra o despacho que
o pronunciou, em que os Juízes Basílio Veiga (Relator), Abel Abreu e Barbosa
Vianna “dão provimento ao recurso,
anulando todo o processo, que mandam se arquive” (D.G de 22 de Dezembro de
1910).
Em suma, os juízes,
acolhendo a tese da defesa, consideraram aquela instância judicial incompetente
para julgar João Franco e os outros co-réus.
Os argumentos da decisão
relatada por Matos Abreu[17], curiosamente um juiz que
quase tinha sido considerado um herói
republicano em 1907, quando se recusara a aplicar o decreto ditatorial de
João Franco, eram lapidares:
“Os actos praticados pelos ministros no exercício das suas funções só
podem ser processados e punidos mos termos da lei de responsabilidade
ministerial, ordenada no art.º 104 da Carta Constitucional, e que apesar de
proposta por diferentes ministros, ainda não foi aprovada. Só a câmara dos
deputados pode decretar a acusação dos ministros, e rejeitada a proposta de
acusação não poe ser renovada. A legislação ditatorial novíssima nem aboliu a
camara dos deputados, nem revogou a Carta Constitucional, nem conferiu ao poder
judicial competência para conhecer dos crimes cometidos pelos ministros de
Estado. Em nenhum caso os tribunais comuns poderiam conhecer destes crimes sem
a existência de lei especial de responsabilidade ministerial e sem que a
acusação fosse aprovada pela câmara dos deputados. A lei penal não tem efeitos
retroactivos, excepto na parte favorável aos criminosos, e ninguém pode ser
sentenciado pela autoridade competente em virtude de lei anterior e na forma
por ela prescrita. (…) Os actos ditatoriais são de origem ou carácter político
e como tais devem julgar-se compreendidos nos decretos que amnistiam estes
crimes[18]”.
O governo, irritado com a
sentença, transferiu esses juízes para a Relação de Nova Goa, “naturalmente por não haver ainda Relação em
Timor”[19].
Tal afastamento foi ordenado por Decreto de 21.12.1910, onde se lia no art. 1.º:
“Os juízes Abel de Matos Abreu, Basílio
Alberto Lencastre da Veiga, António Augusto Barbosa Vianna e Manuel Pereira
Pimenta de Sousa e Castro deixam de pertencer ao Tribunal da Relação de Lisboa
e são colocados nas quatro vagas existentes no Tribunal da Relação de Nova Goa,
(…)”.
Acusando os juízes de
estarem “acobertados pela intangibilidade
que a República se deu pressa em assegurar à magistratura” este Decreto é
precedido de um extenso relatório, fundamental para perceber as crispações
entre o poder judicial e o novo poder político, no qual se justificava o
afastamento em virtude de, no entender do governo, aqueles juízes “se terem insurgido abertamente contra alguns
princípios essenciais da República Portuguesa tais como: a responsabilidade
ministerial, a igualdade de todos os cidadãos perante a justiça, a
incompatibilidade absoluta entre os crimes de desvios de dinheiros públicos e
os abusos de origem ou caracter político”[20].
Alfredo Pimenta, num
curioso artigo, apoia a decisão sancionatória argumentando com a força legal da revolução republicana:
“Porque princípios nos regemos? Pelos princípios da revolução. Onde estão
concretizados? Na ditadura republicana. Não há constituição política em
Portugal. Há o poder soberano da revolução materializado no Governo Provisório,
e exercendo-se e manifestando-se através dele”[21].
Claro que esta interessante,
mas arrojada, argumentação não era suficientemente jurídica para fazer vencimento.
A 1 de Fevereiro de 1911,
tendo o Ministério Público interposto recurso do acórdão da Relação de Lisboa de
10 de Dezembro de 1910, que confirmava a decisão da primeira instância entender
que alguns factos criminosos atribuídos pela acusação a João Franco e outros
ex-ministros estavam compreendidos na amnistia concedida pelo Decreto de 8 de
Maio de 1908, o Supremo Tribunal de Justiça considerou que “no acórdão recorrido se fez exacta aplicação
do direito à hipótese, negam, por isso, provimento ao recurso” (Gazeta da
Relação de Lisboa, 24. ° Ano, n.° 80, 1911, p. 638).
A 7 de Fevereiro, tendo,
também, o Ministério Público recorrido do Acórdão da Relação de Lisboa de 14 de
Dezembro de 1910 “que por incompetência
do juízo e da forma do processo anulou o processo criminal em que o ex-ministro
do Estado João Ferreira Franco Pinto Castelo Branco fora indiciado”, o
Supremo Tribunal de Justiça concedeu “provimento
ao recurso, julgando competente o juízo e idónea a forma do processo, anulam o
acórdão recorrido na sua conclusão, por ter julgado contra o direito , e mandam
que os autos baixem à mesma Relação, para que pelos juízes a quem competir por
distribuição seja dado cumprimento à lei, conhecendo-se de todos os outros
pontos que foram objecto de recurso” (Gazeta da Relação de Lisboa, 24º Ano,
n.º 68, 1911, p. 538)[22].
Esta vitória republicana
foi, porém, efémera, pois, a 5 de Abril de 1911, após este processo ter baixado
do Supremo Tribunal de Justiça, foi proferido no Tribunal da Relação de Lisboa
um novo acórdão pelo qual julgaram amnistiado pelo Decreto de 8 de Maio de 1908
o crime de excesso de poder de que era acusado João Franco e
“considerando, quanto à tentativa de
burla pela promulgação do
Decreto de 30 de Agosto de 1907, que no corpo de delito se não acham
verificados os elementos constitutivos desse crime (...) mandam que o
processo baixe à 1ª instância para que se continue e complete o corpo
de delito, quanto ao crime de peculato” (Gazeta da Relação de lisboa,
25.ºAno, n." 36, 1911, p. 284).
A fragilidade jurídica da
acusação acabou, assim, por prevalecer. A argumentação para a derrubar limitou-se
a enunciar princípios gerais de direito: nomeadamente, o de que só se pode
incriminar uma pessoa por actos definidos como crimes em lei anterior aos
mesmos. Em Portugal não havia lei que determinasse a responsabilidade dos
ministros pelos seus actos de governo. Várias vezes se haviam apresentado
projectos-lei sobre a matéria, mas nenhum deles fora aprovado. Mesmo que fosse
possível a acusação aos antigos ministros, esta caberia à Câmara dos Deputados,
que estava dissolvida, não havendo ainda instituição que a substituísse. A
acusação de João Franco fora já proposta ao parlamento pelo deputado Afonso
Costa, em 1908, e rejeitada por grande maioria. Visto que a acusação fora já
rejeitada pela única entidade competente para a apreciar, e tendo em conta as
outras razões, consideravam os juízes que o tribunal da Relação não era
competente para apreciar o processo.
Aliás, o próprio
Ministério Público terá tido consciência dessa fragilidade, tendo-lhe João
Franco apontado que “na sua minuta, foge
do terreno, para ele ingrato e escorregadio, da discussão serena e fria dos
princípios jurídicos e da interpretação dos textos legais, e refugia-se no
vasto e imaginoso campo das doutrinas abstractas, das citações históricas ou
anedóticas e das declamações políticas”[23].
Na verdade, o grande
criador deste processo, na sua vertente política e jurídica, o Ministério
Público real era, como vimos, desde o início, Afonso Costa.
Sem entrar em
perspectivas maniqueístas que o colocam como um génio absoluto ou como o diabo,
podemos assumir, com Vasco Pulido Valente, que o Ministro da Justiça era o “mais lúcido, inteligente e arguto dos
políticos do regime” e que “não deu o
mais pequeno passo que não fosse cuidadosamente destinado a acariciar as
susceptibilidades dos militantes. (…) em meados de Outubro, com o autêntico
génio dramático de todos os grandes políticos, montou um brilhante golpe de
auto-propaganda. Por sua ordem, «os ditadores» de 1908, ou seja, o governo João
Franco, foram processados por «abuso de poder e violação da Constituição
(monárquica)». Esta iniciativa, sem justificação legal possível, trouxe-lhe
consideráveis benefícios. Por um lado, voltou a opinião conservadora,
partidariamente neutra, não apenas contra os radicais, mas contra a República.
Por outro, deliciou os militantes que acharam que a medida «para sempre
explodira o mito» da «intangibilidade dos grandes»[24].
Afonso Costa via no poder
um instrumento de transformação da realidade e mesmo perdendo o processo,
separou as águas, contou as espingardas e talvez até estivesse menos
interessado em determinar responsabilidades do que em fortalecer as fundações
do frágil Estado republicano. No mais, coerentemente, continuou a defender o princípio
de que os ministros deviam ser julgados em tribunais comuns, como quaisquer
outros cidadãos[25].
Para os republicanos
visava-se, além do mais, mostrar que a sua prática e moral eram diferentes e
que era inadmissível a confusão entre a fortuna privada e os dinheiros
públicos, daí resultando a sujeição dos ministros à lei, em condições iguais às
dos outros cidadãos, tendo como consequência o rigor e a transparência do
Tesouro Público.
No contexto de
deslegitimação do poder monárquico percebe-se bem a importância simbólica conferida
ao processo João Franco, o qual foi igualmente aproveitado para um braço de
ferro entre o novo poder e a Justiça.
Em conclusão: o duelo
entre a Justiça, a Política e João Franco revela todas as fraquezas do
envolvimento da primeira no palco do julgamento de acções de fundo governativo
nas transições de regime. Costuma-se dizer que a justiça política está para a
justiça como a música militar está para a música: é de um outro género. No
entanto, o poder político emergente normalmente não a dispensa pela legitimação
acrescida que resulta da exposição e condenação judiciária, bem superior a
qualquer execução sumária dos derrotados.
No entanto, essa opção
tem custos elevados. Para a magistratura, pela dificuldade de reconstrução de
credibilidade abalada e pela sujeição à crítica do quadrante derrotado com as
suas decisões e para o poder político pela dificuldade de lidar com um poder independente, mas que pretende colocar do seu lado.
A história da conhecida decepção
republicana com a justiça reenvia para um quadro clássico: o poder judicial
como um dos poderes mais produtivos simbolicamente, mas também um dos mais
conservadores e menos instrumentalizáveis ou propícios a acolher a mudança e a urgência
política e revolucionária.
[1] Contra-Minutas de Agravo de João Ferreira
Castelo Branco, (Ferin, 1911), p. 30 e 45. A segunda parte desta peça
jurídica é da autoria de João Franco assumindo um carácter confessional e de
defesa política da sua acção governativa.
[2] João Ferreira Franco Pinto
Castelo Branco (1855-1929) foi um político preponderante da fase final da
monarquia constitucional portuguesa. Natural do Fundão e formado em direito
pela Universidade de Coimbra. Foi delegado do procurador régio nas comarcas de
Sátão, Baião, Alcobaça, e Lisboa entre Janeiro de 1877 e Janeiro de 1885.
Acabou por optar pela vida política sendo eleito deputado e ocupando vários
postos ministeriais e a presidência do conselho de ministros (1906-1908).
[3] Benjamin Constant
que nos debates constitucionais posteriores à queda de Napoleão emergiu como o
grande teórico da responsabilidade penal dos ministros dizia que estes “sont souvent dénoncés, accusés quelquefois,
condamnés rarement, punis presque jamais”. O princípio da responsabilidade
penal emergiu em Inglaterra, no fim do século XVII, com a sistematização do
processo de impeachment, nas duas
câmaras, visando acusar os ministros cuja conduta era considerada perigosa,
nomeadamente, contrariando actos reais. Em França, ficou célebre o episódio
seminal de 5 de Setembro de 1661 quando Luís XIV mandou prender, à saída do
Conselho, Nicolas Fouquet, que superintendia as Finanças desde 1653 e que foi
condenado e morreu na cadeia em 1680 (de acordo com o mote O Rei não sabe fazer mal, o ministro Sim!). A história da
responsabilidade dos ministros, elemento constitutivo do regime parlamentar,
traduziu a dificuldade de arbitrar a obrigação prestar contas diante dos
eleitos da nação ou dos juízes e a necessária racionalização de mecanismos de controle
politico que permitam exercer as funções com o mínimo de serenidade. Ainda de
leitura fundamental, Les ministres devant la justice, Étude
Collective organisée par L'Association Française pour L'Histoire de la Justice,
(Paris: Actes Sud, 1997) e Olivier Beaud e Jean-Michel Blanquer (direction), La Responsabilité des Gouvernants, (Paris:
Seuil, 2000).
[4] A esse respeito,
basta ler a sessão das Cortes Gerais e
Extraordinárias da Nação Portugueza de 14-12-1821 p. 3408 e segs. in “http://debates.parlamento.pt/catalogo/mc/c1821”.
[5] Entre 1842 e 1856
registaram-se dez denúncias contra ministros na Câmara dos Deputados (a maior
parte contra Costa Cabral) decidindo-se, em todos os casos não haver lugar a
acusação. E entre 1857 e 1886 não foi levantada pelos deputados qualquer
acusação contra ministros de Estado, segundo dados constantes de Alberto José
Belo, A Câmara dos Pares na Época das
Grandes Reformas Políticas 1870-1895, (ICS, 2015), p. 116.
[6] Por exemplo,
Francisco de Medeiros defendeu que devia ser suprimida a jurisdição criminal da
Câmara dos Pares para conhecer dos delitos dos membros da família real, pares
do reino, deputados, ministros e outros, por ser “um corpo essencialmente político” e atribuída ao Supremo Tribunal
de Justiça, em secções reunidas, com vista a respeitar a divisão de poderes. E
perante o “receio de que a fraqueza senil
destes magistrados não desse garantias bastantes de acerto, firmeza e isenção,
no julgamento de tão ilustres delinquentes”, Francisco Medeiros esgrimia
que “se uns velhos juízes no último
quartel desta mundana vida enganosa, mais próximos já de Deus que dos homens,
não podem dar garantias seguras de boa e firme administração da justiça; onde
se encontrarão elas então?” Sentenças, (Direito
e Processo Civil), Lisboa: (M. Gomes, 1905), p. 53. Para desenvolvimento, Luis
Eloy Azevedo (coord.) Mais Figuras do
Judiciário Séculos XIX-XX, (Lisboa: Almedina, 2016).
[7] Os adiantamentos
à família real, espécie de empréstimos de que a família real dependia há muito
para os seus gastos, normalmente escondidos mas liquidados em 1907 por João
Franco foi um erro estratégico da sua governação. Pretendendo comprometer os
seus antecessores acabou por destapar uma questão que viria a pesar muito
negativamente na sua imagem e na do Rei. Como referiu Rocha Martins “quase todos os monárquicos tinham julgado
inconvenientes as declarações de João Franco acerca dos adiantamentos.
Preferia-se o eterno mistério à volta dessas quantias que ele vinha confessar”,
João Franco O Último Cônsul de D. Carlos,
(Lisboa: Gradiva, 2007), p. 203.
[8] Discurso
constante de A. H. Oliveira
Marques, Obras de Afonso Costa, Discursos Parlamentares, I: 1900-1910,
(Lisboa: Europa-América, 1973), págs. 158-183.
[9] Eduardo Schwalbach, descrevendo a situação pelo lado
monárquico, refere que “os deputados
republicanos romperam todos os diques e vazavam sobre a Coroa os mais
desabridos impropérios” e que Afonso Costa “gritava como um possesso”, Á
Lareira do Passado, (Lisboa: Ed. do Autor, 1944), p. 246. João Chagas, pelo
lado republicano, criticava a expulsão de Afonso Costa da sala, dizendo que “é preciso não ter a menor noção do que seja um
cidadão investido no mandato parlamentar para fazer uma coisa destas” e que
“dir-se-ia que quem o fez não foi uma
assembleia de representantes da nação, mas um bando de energúmenos”, 1908, Subsídios para história da ditadura, (Lisboa,
Ed. do Autor, 1908), p. 61.
[10] Lopes d’ Oliveira,
História da República Portuguesa, (Lisboa:
Inquérito, 1947), p. 245.
[11] Para descrição
factual desenvolvida, José de Araújo Coutinho, Augusto Cancella de Abreu Episódios de uma Vida, (Prime Books, 2010),
p. 51 e segs.
[12] «Ministério
Público», texto republicado, Revista do
Ministério Público, n.º 66 (1996), p. 189. Para desenvolvimento e
ilustração dessa absoluta subalternidade ao poder, ao longo de todo o século XIX, Luís Eloy
Azevedo, «Direito Penal, Magistratura e Inquérito Judicial no Século XIX
Português», Revista do Ministério Público
n.º 102, 2005.
[13] De salientar que
vários governos tinham tido condutas ditatoriais similares à de João Franco e
só este estava no pelourinho. O conceito de ditadura de então era muito
diferente do que temos actualmente e estava longe de ter a conotação que hoje
lhe atribuímos. Tratava-se sobretudo de um modo de governar à margem do
Parlamento e que era uma forma habitual e muito usada, por todos, de governar
(contabilizando-se uma dezena delas só entre 1852 e 1859). Assim, o recurso à
ditadura “foi prática mais ou menos
corrente durante toda a monarquia constitucional, sendo uma forma, legitimada
consuetudinariamente, de contornar a crónica ingovernabilidade de um parlamento
clientelar”, José Miguel Sardica, A
dupla face do franquismo na crise da monarquia portuguesa, (Lisboa: Cosmos,
1994), p. 61. Aliás, uma das linhas de defesa de João Franco foi precisamente
essa, referindo que o Ministério Público considera que “são muitas as ditaduras que se têm feito em Portugal, e quase todas
elas abusivas. Mas porque é que, nessas condições, só o arguido e os seus
colegas de governo foram arrastados para os tribunais? O que fez e o que faz
hoje o Ministério Público relativamente aos outros ditadores, réus dos mesmos
supostos crimes?”, Contra-Minutas,
ob. e loc. cit. p. 30.
[14] Ver relato e
transcrição destas palavras em O Mundo
de 31 de Outubro de 1910. A multidão, segundo este jornal, proferia expressões
como “o povo é que o devia justiçar!”
e “não pode haver lei para quem fez o que
ele fez”. Também, pelo mesmo diapasão, o jornal republicano radical da
manhã Republica Portugueza de 31de
Outubro de 1910 refere que Bernardino Machado acalmou o povo dizendo que “o ditador foi entregue ao poder judicial,
que é uma entidade autónoma e, portanto, não podia intrometer-se nas decisões
que ele julgasse conveniente tomar, certo que os juízes estão absolutamente
identificados com os princípios democráticos do governo não havendo razão para
supor que eles tenham menosprezado a justiça inflexível que tem de ser apanágio
da República”.
[15] O texto elaborado
pelos advogados do réu foi editado pela livraria Ferin, em Lisboa, 1910, e
intitula-se “Minuta de agravo interposto
por João Franco Pinto Castelo Branco contra o despacho do 1º Juízo de
Investigação Criminal de Lisboa que o pronunciou”. Nesse texto de 29
páginas, Sousa Queiroga e Pinto de Mesquita consideravam, para além do mais,
competente para apreciar a responsabilidade de Franco a Câmara dos Deputados,
uma vez que o governo se esquecera de considerar a dita Câmara dissolvida.
[16] O Mundo apelida imediatamente que “ali estão juízes da monarquia, para julgarem
monarquicamente” e adverte que “ao
governo da República corre o dever de remodelar fundamentalmente os tribunais e
os serviços da magistratura portuguesa” (16 de Dezembro de 1910).
[17] Abel de Matos
Abreu (1849-1931), cuja figura mereceria outro desenvolvimento, nasceu em Pala,
concelho de Mortágua, a 4 de Junho de 1849. Concluiu a licenciatura em Direito
em Coimbra, no ano de 1872. Ingressou na magistratura e tornou-se conhecido
como juiz do Tribunal do Comércio de Lisboa, quando, a 4 de Julho de 1907,
negou, em sucessivas sentenças, força legal a um decreto do Governo, presidido
por João Franco, que em ditadura, isto é, governando com as Cortes dissolvidas,
estabelecera normas sobre a cobrança de pequenas dívidas, deixando os grandes
devedores em posição privilegiada. Esta resistência ao Governo valeu-lhe
instantânea notoriedade, com a imprensa da oposição a louvar a sua atitude.
Depois do incidente acima relatado de 1910 voltaria a ocupar o seu lugar de
juiz do Tribunal da Relação de Lisboa, cargo em que permanecerá até 1 de Abril
de 1919, data em que ascendeu a juiz conselheiro do Supremo Tribunal de
Justiça. O seu filho Augusto Cancela de Abreu desempenhou funções de Ministro
das Obras Públicas e de Ministro do Interior durante o Estado Novo.
[18] Revista «O Direito», n.º 20, de 24 de Dezembro de
1910, p. 318.
[19] Na expressão de O Mundo de 22 de Dezembro de 1910.
[20] O Mundo considerou a pena leve e acusou os
juízes de “transformar as becas naquilo
que foi o manto dos reis: capa de ladrões” e considerou que “desviando para longe magistrados que tão
escandalosamente a desserviam, o governo da República fez bem, se é que não fez
pouco” (27.12.1910). O célebre escritor Fialho de Almeida, um republicano
convertido depois a João Franco, criticou ferozmente todo este processo e o
facto de João Franco ter saído inicialmente da Boa Hora “apupado e perseguido por uma escolta daquela turbamulta das ruas que,
segundo parece, é quem governa e dirige as acções do governo republicano” e
que “o começo do regime novo cheira
diabolicamente ao fim do velho” e que esta atitude perante o poder judicial
era bem pior do que qualquer das fortes represálias ordenadas pelo governo
franquista, instalando um clima em que qualquer pessoa que não concordasse com o
regime podia ser ameaçada e despedida. Numa indignada
crónica, Fialho de Almeida, o autor de “Os Gatos”, insurgia-se contra a
passividade com que a magistratura portuguesa recebera esta afronta,
submissamente, sem protestos: “O Governo
Provisório, precedendo denuncias e ameaças de um pasquim amarrado em delator
oficial dos desacatos à Republica, acaba de transferir para a Relação de Goa
(India Portuguesa), os juízes que pronunciaram a inculpabilidade de João Franco
e Malheiros Reimão em todos os actos da chamada ditadura franquista dias antes,
e também por denuncias do mesmo pasquim, transferira para os Açores um juiz
acusado de… jantar com o ex-ministro franquista Teixeira d´Abreu! Corre que
outras medidas de violência serão tomadas no sentido de desarmarem pelo terror
as massas de cidadãos que não aderiram à Republica (inumeráveis), e
permaneceram onde estavam, visto não quererem ser tachados pelos jornais do
governo, de canalhas e de infames, que foi o que sucedeu às que aderiram. Esta
fraternidade da Republica iguala os sentimentos de liberdade e d´igualdade a
que assistindo vimos, desde o inicio. Esperava-se, valha a verdade, que a
magistratura em massa protestasse contra os insólitos decretos de desterro dos
quatro juízes, decretos que acatados põem um precedente mais violento do que as
represálias do governo de João Franco contra os revolucionários de 28 de
Janeiro; e pode-se dizer, levarão os juízes à coação de d´doravante julgarem só
pelo critério dos rancores ministeriais, não podendo até jantar senão com quem
o snr. Afonso Costa dê licença” in
Saibam Quantos (Cartas e artigos Político), Livraria Clássica, Lisboa,
1924, pp. 5-7 e 66-67.
[21] República Portugueza de 25 de Dezembro
de 1910.
[22] Esta decisão de
Agostinho Domingues e Mendes de Abreu foi apelidada pelo O Mundo de “belo documento
jurídico que restabelece a boa doutrina facciosamente esquecida pelos juízes
que foram mandados para Goa” (15.2.1911). O Acórdão, transcrito naquele
jornal, tinha como principal argumento que “pela
abolição da monarquia constitucional e proclamação do novo regime caducaram,
logo extinguindo-se de facto e de direito, as instituições políticas
fundamentais do Estado que lhe eram inerentes, e se consubstanciavam no
organismo da realeza decaída tais como as camaras legislativas dos pares do
reino e deputados da Nação Portuguesa”.
[23] Contra-Minutas cit. p. 23.
[24] «Moderados e radicais na I República: da
conciliação ao terror (Outubro de 1910-Agosto de 1911)» Análise Social, Vol. XI (2.º-3.º), 1975 (n.º 42-43), pp. 242-243. A
volatilidade da argumentação jurídica, nomeadamente em períodos de crise,
permite atribuir algum exagero a Vasco Pulido Valente quando considera que a
iniciativa não tinha “justificação legal possível”.
Provavelmente a razão estará mais com Benjamin Constant quando salientava que “em questões desta natureza, o crime e a
inocência são raramente de uma evidencia completa”, Olivier Beaud e Jean-Michel Blanquer, ob.
e loc. cit. p. 26.
[25] Numa importante
intervenção na Assembleia Constituinte, a 14 de Agosto de 1911, insurgindo-se
contra uma proposta de criação de tribunal especial para julgamento dos crimes
de responsabilidade dos ministros, referiu “que
um Ministro é um cidadão como outro qualquer, e que pode praticar actos que
tenham de ser julgados pelo poder judicial. (…) É ao poder judicial que os
Ministros devem ser entregues. Quem é que há de defender a lei constitucional,
quem é que há de defender a própria lei ordinária senão o poder judicial? Se
não for assim nós não fazemos uma Republica. Então os Ministros não podem
praticar um crime de qualquer natureza, ou seja, com os dinheiros públicos, ou
seja, uma ofensa ao direito da Constituição? Podem perfeitamente ser chamados
aos tribunais comuns, e não precisar de tribunais especiais para os julgarem.
Nós desde 14 de outubro que não temos um tribunal de excepção. E essa garantia
é a do povo, de todo o cidadão. E perante os tribunais que nós todos nos
sentimos dignificados pela perfeita igualdade ante a justiça única. Nós não
precisamos senão dos tribunais comuns, da lei comum igual para todos. Desde 14
de outubro ainda ninguém chamou nenhum dos Ministros aos tribunais, mas se
houvesse algum monárquico, algum homem atrabiliário que chamasse qualquer de
nós aos tribunais, tinha que ver que nenhum dos Ministros da Republica se
sentia mal dentro dos tribunais comuns, porque só os criminosos podem sentir-se
afrontados” Diário da Assembleia
Constituinte, Sessão n.º 47 de 14 de Agosto de 1911.
(originalmente publicado na revista Julgar, nº 42)
Ele era o alvo preferencial dos regicidas, mas safou-se à última hora, pelo que foi accionado o plano B que sacrificou a cabeça da Monarquia.
ResponderEliminarNão creio. Mataram quem queriam matar. E foi muita pena e grande perda. Toda a história à volta do regicídio é uma vergonha, e uma vergonha para muita gente.
ResponderEliminarA ferocidade com que um ladrão como Afonso Costa perseguia os seus oponentes políticos continua a surpreender-me.
ResponderEliminarOs herdeiros deste bandido continuam por aí…