Guardo para mim que Carlos de Oliveira foi o grande
artífice da revolução literária em Portugal, na década de 1940, iniciou-se no
movimento neorrealista, de que mais tarde se desvinculará, neste tempo
produzirá um romance de alto calibre, Casa na Duna, na década seguinte
outro prodígio, Uma Abelha na Chuva, outro tumulto
literário acontecerá na década de 1970, com Finisterra: paisagem e
povoamento. Distingue-se de qualquer outro escritor pelo permanente cuidado
em rever as suas obras até as reduzir à quintessência do medular, uma prosa sem
um pingo de enxúndia, uma economia na prosa sem igual, tenho agora nas mãos a
5ª edição, de 1977, afinou o estilo, faz-se inteiramente compreender com a
eliminação de todo o pormenor vagante:
“Na gândara há aldeolas ermas, esquecidas entre pinhais,
no fim do mundo. Nelas vivem homens semeando e colhendo, quando o estio poupa
as espigas e o inverno não desaba em chuva e lama. Porque então são ramagens
torcidas, barrancos, solidão, naquelas terras pobres.
Ao fundo dum desses sítios, há uma pequena lagoa que o
calor de julho seca. A aldeia chama-se Corrocovo e a lagoa nem sequer tem nome.
Quando a água se escoa, a concha gretada está coberta de bunho. As mulheres
ceifam-no, estendem-no ao sol, e entrançam esteiras que vão vender às feiras da
vila de Corgos.
Mariano Paulo e os amigos descem da quinta, caçam ali os
patos bravos, quando o outono os leva de passagem para as terras quentes do
sul. O charco espalha sezões nos casebres à borda de água e agasalha as aves
para os senhores da aldeia derrubarem a tiro. Aves com frio, caçadas
crepusculares”.
Entram em cena os personagens, logo Mariano Paulo, o Dr.
Seabra e o Guimarães, mais adiante o Lobisomem (de corpanzil vergado e uma das
pernas arrastar). A prosa é esquemática, totalmente elucidativa: “O povoado
escreve sobre a duna que há perto de duzentos anos os pinhais começaram a
fixar. No alto, a descer para o poente, fica a quinta dos Paulos. A casa tem
dois pisos e é ampla e velha. Uma larga alpendrada resguarda-lhe as janelas da
chuva, das nortadas. A telha é antiga, canelada, e o tempo enegreceu a caiação.
A quinta desdobra em leiras de pinhal, vinha, milho, pela gândara dentro”.
Nesta casa viveu o fundador, Silvério Coxo, o velho Paulo, agora Mariano e o
seu cismático filho, Hilário, mas também Maria dos Anjos, que aquece a cama de
Mariano, e há a criada, Palmira, que cuidou de Hilário, órfão logo que chegou a
este mundo. E ficamos igualmente a ver como cresceu aquele domínio agrário: “Os
Paulos, um após outro, tinham conseguido alargar a quinta, leira sobre leira,
num tempo em que os camponeses trocavam a terra a canecas de vinho. Corrocovo
via a fazenda acumular-se, a quinta alastrar sobre pequenos campos vizinhos. Os
homens entregavam a terra vendida e começavam a cavá-la por conta alheia,
ganhando a jorna certas dos patrões. A quinta cresceu, abocanhado tudo: pinhal,
searas e poisios”. Os tempos são de mudança, chegaram as máquinas, Mariano
recusa-as, deplora aquele filho sempre alheado de tudo, incapaz do entusiasmo.
Palmira casa com Luciano Taipa, jornaleiro da quinta, todo o dinheiro que
acumulara reverte para solo agrícola do casal, tudo redundará em fracasso,
Luciano emigrará. Aquela estrutura agrária definha: “O trabalho da quinta era
feito enxadas, a uva esmagada sem prensas, o milho escarolado à mão. A
aguardente de Corrocovo corria ainda do tosco alambique, como nos tempos do
velho Paulo. A compra da grande máquina destiladora fora sempre adiada. Os
homens continuariam a calcar os cachos, o bagaço, a escarolar as espigas. Na
quinta, tudo nascia da sua paciência”. E veio o mau ano agrícola. “Nevoeiro,
míldio, lagartas e calor, doenças a grassar no chão macerado. O vento quente
bafejava as culturas, matava por sua conta. A terra, que era verde, tornara-se
amarela”. Estalou a miséria na aldeia, a quinta esbarrondava-se, o
desprendimento de Hilário desalentava Mariano. Este ainda sonhou em adquirir os
fornos de caldo do Guimarães, houve hipoteca, mas foi resgatada, nada se
alterou. A quinta parecia viver fora do tempo. Hilário dá sinais de
perturbação, é arrogante com o feitor, Firmino, este esteve para ir às vias de
facto, tudo por causa de uma égua que Hilário retalhara o dorso a chicote. Há
gente estranha pelos matos, talvez um fantasma portador de prenúncios maus.
Mariano sente um alento quando monta uma fábrica de telhas. Hilário sempre
indiferente, anda perdido de amores por Guilhermina, que quase sempre o
escorraça, tem outros amantes a valer. Aquele pedaço de terra barrenta que
parecia ir trazer novos tempos férteis aos Paulos, subitamente perdeu valor.
Durante tempos, a telha vendia-se bem, as encomendas cresciam, Mariano, vendo
aquele Hilário incapaz de tudo, pensa em casar-se com Maria dos Anjos, quer ter
herdeiros a sério. Mas chega a derrocada:
“Foi então que a grande estrada que descia da vila
começou a aproximar-se de Corrocovo, a abrir-se por entre o mato, a deitar
pinhais inteiros ao chão. Apareceu em frente da aldeia o piso certo de saibro e
pedra. E a multidão de britadores, homens de picaretas, pás, enxadas, com a
ajuda dos cilindros enormes, enfiou a estrada ao meio do lugar. Negociantes,
porqueiros, carros de milho, fruta, couve, gado e celeiros, passavam agora em
Corrocovo, na estrada nova, para as feiras da vila”. Assim se condenou a fábrica de telha, a concorrência
das grandes indústrias vendia mais barato.
E como na tragédia grega, tudo se precipita, a maldição
tem o seu auge. Na festa de Nossa Senhora da Lagoa, Hilário vê a sua
Guilhermina a dançar com Basílio, o lodo do ciúme veio à tona, agride-o brutalmente.
Basílio não se faz rogado, tira vingança, mata-o com uma enxada, enterrada de
alto a baixo na cabeça. Mariano entende que chegou a hora de destruir a quinta,
tem ali a lenha da cozinha, as latas de petróleo, a palha dos corrais, os
fósforos, imagina as chamas a crescer dos dois lados do pátio, a devorar a
casa, a adega, as tulhas, a nogueira plantada por Silvério Coxo, fundador da
quinta. Assim o pensou e assim o fará, tem de alcançar a sua vitória sobre o
destino, aquele mundo antigo irá desaparecer, não será desafiado por aquele que
se anuncia, Mariano prefere que tudo se perca, aquela quinta é a metáfora de
uma estrutura agrária que entrou em derrocada num Portugal que balbucia a
industrialização.
Escassa centena e meia de páginas de uma densidade tal
que deixa o leitor de antemão informado que temos aqui texto clássico, do
melhor que produzimos no século XX.
Mário Beja Santos
Acredito que seja um livro fascinantes de ler
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Saudações cordiais
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Pensamentos e Devaneios Poéticos
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Peço encarecidamente, sem ironia (porque é o fio de ariadne que eu procurava), quais os argumentos que provam a desvinculação de Oliveira do movimento neorrealista. Agradecia muito a resposta, até para a minha igual conjetura. Admiro a crítica pessoal sobre a polémica literária, mas deploro, como alguém escreveu, que a mudança seja pela desilusão ideológica e que por isso a clareza estética e militante tenha dado lugar à ilegibilidade (como alguém escreveu).
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