“«There'll always be an England» to stand before the world as a symbol and a
citadel of freedom."
Jorge VI, 23 Setembro 1940
Há 70 anos, o imbatível cerimonial
britânico voltava a impressionar o mundo. A despedida do Rei que partira
demasiado cedo, tolhido pela Guerra, pela doença e pelo indesejado peso da
Coroa, foi um momento extraordinário de pompa fúnebre.
Às portas de Westminster Hall, ao
som do incontornável Big Ben, das salvas de canhão e das marchas fúnebres, o
grande cortejo arrancou com milhares de soldados com armas invertidas, em sinal
de luto, a desfilar pelas ruas de Londres com o corpo do último Imperador da
Índia que foi também um improvável herói e um rei amado e respeitado,
genuinamente, pelos seus súbditos, que agora o choravam.
Se o reinado de Jorge VI começara
sob o peso da abdicação do irmão e com uma opinião pública favorável ao
casamento de Eduardo VIII com Wallis Simpson, a sua postura corajosa e
inspiradora durante a Guerra transformou-o num monarca respeitado, querido e
próximo do povo. A fibra da sua mulher, a Rainha Isabel, foi uma parte
fundamental dessa mudança de atitude da opinião pública. A célebre
frase – “The children will not leave unless I do. I shall not leave unless their
father does, and the king will not leave the country in any circumstances,
whatever.” - ficou para a História da resistência britânica.
O esforço militar britânico para
libertar uma Europa em que era o único farol de liberdade teve reflexo numa
nutrida representação militar de aliados mas também de países de neutralidade
dúbia. Portugal, que decretou luto nacional pela morte do Rei, teve também
uma representação militar dos três ramos das Forças Armadas: o General Barros
Rodrigues, Chefe do Estado Maior do Exército, o General Santos Cintra, então Comandante
Geral da Aeronáutica Militar, e o Vice-Almirante Oliveira Pinto, Chefe do
Estado Maior Naval.
Mas foi o então Ministro dos
Negócios Estrangeiros do governo de Salazar, Paulo Cunha, que liderou a
delegação. Foi um dos portugueses que desfilaram pelas ruas de Londres e depois
de Windsor, no último adeus a Jorge VI. Os outros eram o futuro embaixador
Gonçalo Caldeira Coelho e o Secretário do Ministro (e futuro professor
universitário) Fernando Pessoa Jorge, falecido em 2020, e alguns militares listados na edição especial
da London Gazette que detalha o cortejo.
Cinco
reis, quatro rainhas e uma grã-duquesa, os presidentes de França, Turquia e
Jugoslávia, uma vintena de príncipes, muitos ministros dos estrangeiros,
incluindo o americano Dean Acheson e o alemão Konrad Adenauer. Dos muitos que atravessaram
Londres a 15 de Março de 1952, faz agora 70 anos, são muito poucos os que ainda
vivem para contar. E no que se pretendia a despedida de um herói da Segunda
Grande Guerra, símbolo da resistência do mundo livre à tirania de Hitler, houve
ainda reminiscências das feridas profundas abertas pelo conflito.
A
Rainha Isabel II tinha então 25 anos; tem hoje 95.
O
Duque de Kent tinha 16 e hoje tem 86 anos. Seguiu, imberbe, ao lado do tio, o
ex-Rei Eduardo VIII, então Duque de Windsor. Este regressara a Londres para o
funeral do irmão e sucessor, sozinho, sem a sua Wallis por quem deixara um
Império inteiro. Pareceu inquieto e desconfortável, de uniforme, num papel que
já não era o seu. Por várias vezes durante o cortejo se inclinou para o jovem
Duque de Kent, parecendo dar-lhe conselhos, como para aliviar a tensão.
Alberto
da Bélgica, então Príncipe de Liège, tinha 17 e tem hoje 87 anos. Haveria de
reinar como Rei dos Belgas entre 1993 e 2013, mas a sua presença em Londres, em
representação do seu irmão, o igualmente jovem e inseguro Rei Balduíno,
suscitou uma crise política e constitucional em Bruxelas, a acrescentar às
muitas que se sucediam desde o fim da Guerra. Leopoldo III, pai de ambos, rendera
a Bélgica a Hitler em Maio de 1940 apesar dos avisos, por escrito, de Jorge VI,
para que fosse menos herói e não se deixasse capturar.
Os
ingleses
viram a capitulação belga como uma traição insuportável. O governo belga
fugira para o exílio. O Rei decidira ficar para lutar, mas, inesperadamente, decidira
capitular, arriscando a prisão e expondo o flanco britânico aos alemães. O antigo Primeiro-Ministro inglês Lloyd George
escreveu que a rendição de Leopoldo fora o mais esquálido exemplo de perfídia e
de pusilanimidade: “You can rummage in
vain through the black annals of the most reprobate Kings of the earth to find
a blacker and more squalid sample of perfidy and poltroonery than that
perpetuated by the King of the Belgians.”
Churchill
foi mais cauteloso do que Lloyd George, mas não deixou de isolar o Rei
Leopoldo, elogiando apenas a bravura do exército belga e o Governo no exílio.
Mas tentou dizer que o Rei capitulara sem aviso prévio, o que era mentira,
porque Leopoldo prevenira o Rei Jorge VI e esteve tentara demovê-lo. Este tema foi
polémico para os resto da vida de Churchill, com alterações à versão francesa
das suas memórias para tentar conter a ira belga.
Em
qualquer circunstância a postura de Leopoldo foi tudo menos de lealdade para
com os Aliados. Tentou, ao longo dos anos, retirar legitimidade ao governo no
exílio e manteve-se firme nesse desiderato até ao fim – embora esse governo
tenha mais tarde, ele próprio, chegado a defender a rendição... Mas Leopoldo nunca
aceitou a qualificação como traidor. Sentiu-se injustiçado. Afinal, do seu
ponto de vista sacrificara-se pelo seu povo, fora preso durante anos pelos
nazis e impedido de regressar mesmo depois do fim da Guerra. Rejeitou
repetidamente as injúrias de Churchill e dos franceses.
Jorge
VI não retirou a Leopoldo a Ordem da Jarreteira, como fez com o Imperador do
Japão, apesar de instado a fazê-lo. Tinha-lha concedido em 1937, quando
Leopoldo fez uma Visita de Estado a Londres. Mas o Rei belga foi efectivamente
marginalizado. Não foi convidado para o casamento da Princesa Isabel e do
Príncipe Filipe em 1947 e ficou um clima de tensão que voltou a fervilhar em
pleno em 1952.
Leopoldo
III acabou por abdicar quando, ao regressar a Bruxelas em 1950, depois de um
referendo que determinou o regresso do exílio (o seu irmão Carlos era o
Regente), se viu rodeado de protestos violentos e mortes. Sucedeu-lhe, um ano
depois, o seu jovem filho Balduíno, figura frágil que viria a relevar-se um rei
absolutamente notável.
Quando
a corte belga, aos poucos dias da morte de Jorge VI, invocou uma questão de
protocolo e etiqueta para não enviar a Londres o Rei mas antes o seu irmão
Alberto, instalou-se uma crise política. O Primeiro-Ministro tentou, em vão,
que a imprensa não publicasse o comunicado da Casa Real. Tentou demover o Rei
da sua decisão. Também em vão. Tudo foi visto como uma vingança de Leopoldo III
e uma evidência da influência desmesurada deste e da sua segunda, belíssima e
popularmente odiada mulher, Liliana, Princesa de Réthy, sobre o seu filho, o
Rei.
Chamaram-lhe,
na imprensa francófona, o drama da corte de Bruxelas. O argumento de que o Rei
Balduíno não podia ir porque não tinha ainda visitado oficialmente o Reino
Unido era facilmente desmontável e foi ridicularizado, trazendo novas sombras
sobre o início do seu reinado e voltando a agitar as bandeiras do
colaboracionismo belga durante a Segunda Guerra.
Foi
uma lição aprendida em Bruxelas: em Março de 1953, mesmo sem visita oficial, o
Rei Balduíno voou para Londres para participar no funeral da avó da Rainha
Isabel II e mãe de Jorge VI, a Rainha Maria. Isabel II retribuiria o gesto. Em
Agosto de 1993, participou em Bruxelas no funeral do Rei Balduíno, partindo,
também ele, de forma súbita e inesperada. Uma gaffe protocolar, contudo, havia de marcar a presença britânica: o
Príncipe Filipe, Duque de Edimburgo, compareceu com a banda de grã-cruz a Ordem
do Leopardo, do Zaire, antigo Congo Belga, em vez da Ordem de Leopoldo, da
Bélgica... Mas não se tratou de um insulto à antiga colónia, nem ao antigo
colonizador. As ordens estariam, afinal, arrumadas por ordem alfabética.
*
* *
A
urna de Jorge VI, coberta com o Estandarte Real e com a Coroa Imperial, o
Ceptro (com o maior diamante do mundo) e o Orbe tremeluzindo sobre ela, foi
puxada por dezenas de marinheiros. A seu lado caminharam duas pessoas que
viriam a ser relevantes no futuro da Família Real: à frente, o
ajudante-de-campo do Rei, Peter Townsend, que viria a causar o primeiro
escândalo do reinado de Isabel II, quando se conheceu a sua relação com a
Princesa Margarida; logo atrás dele, o Visconde Althorp, futuro Conde Spencer e
depois pai da Princesa Diana e avô do futuro Rei de Inglaterra, o actual Duque
de Cambridge.
O
esplendor da última viagem foi exemplar. Ao som dos passos dos soldados e das
marchas militares, a urna, garrida de cores heráldicas e diamantes, passou por
ruas sombrias, apinhadas de gente enlutada. A dor pela partida do Rei era
genuína e, em primeiro lugar, na sua família. A Rainha Maria enterrava o seu
terceiro filho e a urna deteve-se junto à janela de Marlborough House, de onde
assistiu. A Rainha Isabel ficava viúva aos 51 anos e assim permaneceria por
mais 50, num vazio súbito que teve dificuldades em preencher. O povo, ainda
dilacerado pelas feridas da Guerra, perdia agora um dos símbolos da sua luta.
George VI
Now
he has laid the burden down,
Even
a King at last may rest:
Now
he puts off the unwelcomed crown
That
heavy on his temples pressed.
The
frets of state, the bitter wars,
The
cares that filled that anxious breast
These
marked him like a soldier’s scars.
But
even a King at last may rest.
Grant
him Thy peace, O Lord, we pray.
Who
of us all has earned it best,
Who
wore for us his life away -
Give
thou this King a warrior’s rest.
Edward Shanks (1892-1953), Sunday Times, Fevereiro 1952
Em Windsor, o som estridente das gaitas-de-foles
escocesas acompanhou o cortejo desde a estação de comboios, com os mesmos
dignitários, a mesma solenidade, a mesma dor popular. Na Capela de São Jorge,
incrível panteão de tantas dinastias, depois de uma brevíssima cerimónia
religiosa, o Rei-de-Armas da
Jarreteira pronunciou os títulos do falecido Rei, enquanto a urna baixava
dramaticamente, concluindo de forma solene um reinado curto e heróico, de
resistência e muita dor, mas de firme defesa da liberdade que continua a ser
timbre do Reino Unido.
Ademar Vala Marques
Fevereiro 2022
(Imagens da imprensa da época)
Publicação de nível histórico, cujo texto é muito bem ilustrado pelas fotos. Grato pela bênção da partilha
ResponderEliminar.
Saudações poéticas
.
Pensamentos e Devaneios Poéticos
.