segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

No Norte, há alguém ou uma casa há muito abandonada.




 

          Tenho para mim que o mais recente texto de Manuel Alegre, Tentação do Norte, Publicações Dom Quixote, 2021, é a obra mais encriptada ou polissémica do último dos nossos camonianos. Na poesia, no romance, na novela, no ensaio, nos contos, no infanto-juvenil, sobressai e dilata-se, inconfundível, a rima do resistente, as convicções que não vergam na vida do exílio; o vate possui o dom de nos abraçar na dor da memória da Guerra Colonial, sabe fascinar a criança, enternece-nos com a companhia e a fidelidade de um cão, dom inestimável a daquele bicho que gostaríamos de ter tido em nossas casas.

          Mas nesta narrativa, a tal tentação do Norte, ele provoca o leitor num enredo tão labiríntico, que se anda atarantado em busca do fio da mensagem: tudo é urgente em partir para um Norte, a despeito de uma irremediável saudade de tudo o que fica no Sul, nesse ponto que pode ser encarado com azimute, há lá algo de insubstituível, por enquanto é uma reminiscência, impõe-se partir sem bagagem; e abruptamente fala-se de uma ameaça que houve no passado, seria tempo de clandestinidade, e aqui faz-se a confissão de quem discorre andou sempre com a geografia e os pontos cardiais do avesso, seja como for, há que partir para encontrar a outra metade; será devaneio, houve mesmo encontro amoroso, do que foge aquele refugiado em Arzila (será Argel?), é peregrinação insana para um ponto em que o Atlântico é mais azul, quem ousa matar aquele fugitivo, ou clandestino, ou perigoso ou oposicionista político?, mas será tudo mesmo sonho, há uma voz de mulher a chamar? Há polícias políticas, medonhas, sedentas de sangue, no seu encalço?

          E o leitor continua vergastado pelos túneis da viagem, muito provavelmente houve no passado um fugitivo político que foi parar a Berlim Leste, parecia que alguém lhe dedicava um amor profundo, terá havido uma paixão recíproca, mas quem seguia em viagem já não estava ali, havia que partir, uma missão a cumprir, uma certeza inabalável, um entranhado amor à liberdade, uma bandeira a agitar, talvez versos incendiários, que perduram nos tempos de hoje. E prontamente o leitor é desviado para um alegado quadro real, simula-se uma carta a um diretor de revista, há para ali uma grande confusão sobre a história de um conto, houve um amor não consumado, sim, a polícia política portuguesa montou-lhe cerco, houve que fugir, os amantes desencontraram-se, tudo se passou há muito tempo, o dado relevante é que ele telefona a pedir encontro, ela chama-se Ju, ele sabe da carta enviada ao diretor da revista, por portas e travessas, conta-lhe as peripécias que viveu, então ficamos a saber que há uma praia do Norte “onde sei que me esperas de cabelos ao vento”, temos aqui uma outra cifra, será aquele Norte um anseio de liberdade, é-se octogenário e mantém-se firmeza no fio de prumo de toda aquela convicção que meteu fugas, a iniquidade da prisão, o deixar tudo para trás em nome de uma causa que continua a latejar numa idade maior? 

          Nada se esclarece, até parece que se turva ainda mais, agora alguém admoesta Sacha, entramos numa atmosfera em que alguém pretende pôr os pontos nos ii, exige contenção a quem anda a inventar uma tentação no Norte, passado é passado, frágil é a lembrança, ainda por cima vivemos numa sociedade de hiperconsumo, com desafios energéticos, com o paradigma do digital, com a litania do empreendedorismo, para quê rememorar histórias de luta, descobrimos que a Ju quer pôr alguma ordem nesta invenção daquele passado com tiros e perseguições, ela ficou à espera e ele responde que houve o envio do esboço de um conto, o início de uma narrativa poética, o palerma do diretor da revista não tinha nada de se intrometer, houve tiros e houve caçadeira, alguém preparou a emboscada, o intrigante é que não se sabe se foi um atentado político ou ajuste de contas disfarçado.

          Ju responde a Sacha e sentimos um raio de luz: “Não sei quem procuras, se o que fui ou quem fomos ou se tu mesmo, o outro, ou talvez a outra, a quem não existe a não ser na tal praia batida pelo vento, no Norte do Norte”. Pois bem, para alívio de quem anda nesta montanha-russa de emoções, há um encontro entre talvez Sacha e um agente torcionário, um velho muito velho, curvado quase até à cintura, isto na Praça da Figueira, há recriminações, o torcionário tem as suas alegações finais: “O senhor era resistente, combatia contra o regime. Agora é tudo outra gente. E nós, meu caro senhor, estamos na margem, cada um na sua. Nem vencedores nem vencidos”. Se houve crimes, já prescreveram, se há memória desses crimes, também ela também começa a prescrever. Seguem-se cartas. Chegou a vez de Manuel Alegre dizer quem é e de nos assegurar que não desiste do encontro, fica exarado: “De vez em quando, há de irromper em mim o impulso inevitável e então partirei, porque sei que estás lá, entre mar e vento, numa praia, ao Norte”. É bem possível que tudo culmine numa clarificação: fiquem sabendo que o poeta, o resistente, o defensor das liberdades, sabe onde está a sua causa, haja para aí uma atoarda de monstros, de algozes, ele sentirá a pulsão, como sempre na vida comprovou, virá a tentação do Norte.

          Se não foi esta a mensagem do vate, eu que me sinta apoucado por não ter sabido enfrentar tão desmedida prosa poética, desencadear este aparato de cifras em torno da tentação do Norte. 


Mário Beja Santos 





 



 

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