quinta-feira, 9 de junho de 2022

A magistral denúncia dos abomináveis crimes do estalinismo.


 


 

A vida de Arthur Koestler é em si mesma um romance. Nascido em Budapeste, no seio de uma família judaica, escritor, jornalista e ativista político, andarilhou pela Palestina, pela União Soviética e interveio na guerra civil de Espanha, onde foi condenado à morte. No início da Segunda Guerra Mundial radicou-se em Londres, altura em que corta com o partido comunista, desiludido pelos crimes do estalinismo. É exatamente sobre as purgas desencadeadas na década de 1930, quando Estaline assume despoticamente o poder, eliminando sistematicamente os militantes comunistas que tinha feito a Revolução Bolchevique e os companheiros de Lenine e de Trotsky que Arthur Koestler escreve uma obra-prima que durante décadas circulou graças à tradução inglesa. Em 2018 encontrou-se a versão original em alemão, agora o leitor tem à sua disposição a tradução em português, e com o título original Eclipse do Sol, Livros do Brasil/Porto Editora, 2022. 

Koestler terminaeste terrífico monumento literário já em plena Segunda Guerra Mundial. Como observam as tradutoras, “Narra-se aqui a história da vida e da morte de Nikolai Rubachov, um Comissário do Povo no tempo de Lenine, que é preso de um dia para o outro e atirado para a prisão para ser interrogado, sob acusações, completamente forjadas, de conluio com a oposição organizada a Estaline, incluindo o planeamento do seu assassínio. Apesar de um testemunho assinado confessando os crimes falsos, é fuzilado nas caves da prisão. A pressão psicológica, as ameaças e a tortura haviam-no levado a assinar o que não fez, o que, sem surpresa também para ele que bem conhecia os procedimentos, não o livrou da execução”. Rubachov tornar-se-á no símbolo deste cortejo infindável de crimes que os comunistas de todos os países procuravam justificar como a defesa do socialismo naquele período de transe, da implantação do comunismo num só país cercado de totalitarismos de sentido contrário. Koestler sabia dos Processos de Moscovo, com os quais Estaline preparou a liquidação da hierarquia militar soviética, na continuação de anteriores purgas em que o ditador se foi libertando dos próceres revolucionários, eram o seu principal incómodo ideológico, ele tinha uma visão autocrática da gestão do poder e assumia-se como um génio, todas as suas decisões eram inatacáveis. 

O que tornou este libelo acusatório uma das mais tremendas obras de denúncia de uma atmosfera sanguinária em que uma organização foi posta inteiramente ao serviço do culto de uma personalidade foi a portentosa arquitetura da escrita, revelar-se-á irrepetível, ao longo da História do comunismo soviético. 

 A trama organiza-se em três interrogatórios e aparece um posfácio intitulado A Ficção Gramatical, em que uma neta lê a um velho revolucionário o jornal onde se fala do julgamento de Rubachov. Tudo corre numa atmosfera asfixiante, na prisão, o velho herói consegue contatar por pancadas na parede com outro prisioneiro, foi metido numa cela onde há um catre de tábuas, uma enxerga, duas mantas sofrivelmente limpas, um lavatório, balde e uma janela à altura da cabeça. Rubachov fora detido em casa uma hora antes, o porteiro do prédio é o mesmo Vassili, velho revolucionário, que aparecerá no fim da obra. Este preso tem dores de dentes, marcha pela cela, tem poucas dúvidas sobre o seu destino, o fuzilamento. Por sinais vai falando com alguém que está na cela ao lado.

Rubachov passa em revista missões no estrangeiro onde foi encontrar comunistas perseguidos pelas novas ditaduras, comunistas que não percebiam como é que a URSS fornecia matérias-primas a inimigos ferozes do comunismo. Agora, com todo o tempo para pode interpretar a lengalenga propagandística que utilizara na esperança de acalmar aqueles revolucionários abandonados à sua sorte, dá conta das patranhas da dialética, das falácias utilizadas a favor da tese do comunismo num só país. E começam os interrogatórios. Primeiro aparece Ivanov, um velho companheiro, revela-se amável, discute com elevação, sente-se que o inquisidor está incomodado, sabe perfeitamente que Rubachov não pertence a nenhuma oposição, não organizou nenhum complô para assassinar Estaline. 

O herói Rubachov vai escrevendo um diário de prisão, e nisto surge outro inquisidor, agora da nova geração, homem na casa dos 30 anos, Gletkin, este não apoia os métodos de interrogatório feitos por Ivanov. Estamos na fase do segundo interrogatório, o preso continua a refletir sobre as suas atividades passadas, conhece no pátio da prisão um velho comunista que passou a maior parte da vida em prisões, pressente que vai ser fuzilado, mas diz constantemente que não podemos perder a esperança, o comunismo vingará. É nestes interrogatórios com Ivanov que Rubachov eleva à décima potência a denúncia do que seria o comunismo consequente: 

“Tão consequentes que nós, no interesse de uma distribuição de terras justa, deixámos morrer à fome, durante 1 ano e de modo planeado, cerca de 5 milhões de grandes e médios lavradores, juntamente com as suas famílias. Tão consequentes que, com vista à libertação das pessoas das cadeias do trabalho assalariado capitalista, mandámos cerca de 10 milhões de pessoas em trabalho forçado para o Ártico e para as florestas virgens do Leste, sob condições que se assemelham às dos antigos escravos das galeras. Tão consequentes que, para decidir sobre divergências de opinião, só conhecemos um argumento: a morte, quer se trate da questão da tonelagem dos submarinos, de adubos ou da linha do partido a seguir na Indochina (…) A nossa imprensa e as nossas escolas cultivam o chauvinismo, o militarismo, o dogmatismo, o conformismo e a imbecilidade. O poder e a arbitrariedade do Governo são ilimitados e sem igual na História; a liberdade de imprensa, a liberdade de pensamento, a liberdade de circulação foram exterminadas tão radicalmente como se nunca tivesse havido a proclamação dos direitos do Homem”. Mas Ivanov dá réplica. Entretanto, Bogrov, o herói lendário do primeiro levantamento da marinhagem russa, também é fuzilado. 

O terceiro interrogatório é a pedra de toque da monstruosidade sobre as fábulas criadaspor Estaline. Ivanov será fuzilado, era brando demais a interrogar este presoespecial, é o brutal Gletkin quem vai assumir essas funções e conduzir Rubachov a um cansaço tal que o levará a assinar toda a papelada que lhe põem pela frente, o argumento que o faz vacilar é de que o partido não se pode dividir, a sapiência genial do nº1 do Kremlin não pode ser posta em causa. 

Compreende-se agora como é que o retrato deste comunista revolucionário fez explodir controvérsias e debates, que se mantêm. 

Antes publicado em Portugal com o título O Zero e o Infinito, a obra-prima de Koestler é agora revelada pela primeira vez na sua versão integral, traduzida do alemão. 

De leitura obrigatória.

 

Mário Beja Santos 



 

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