A vida de Arthur Koestler é em si mesma um romance. Nascido em Budapeste,
no seio de uma família judaica, escritor, jornalista e ativista político,
andarilhou pela Palestina, pela União Soviética e interveio na guerra civil de
Espanha, onde foi condenado à morte. No início da Segunda Guerra Mundial
radicou-se em Londres, altura em que corta com o partido comunista, desiludido
pelos crimes do estalinismo. É exatamente sobre as purgas desencadeadas na
década de 1930, quando Estaline assume despoticamente o poder, eliminando
sistematicamente os militantes comunistas que tinha feito a Revolução
Bolchevique e os companheiros de Lenine e de Trotsky que Arthur Koestler
escreve uma obra-prima que durante décadas circulou graças à tradução inglesa.
Em 2018 encontrou-se a versão original em alemão, agora o leitor tem à sua
disposição a tradução em português, e com o título original Eclipse do Sol, Livros do Brasil/Porto Editora, 2022.
Koestler terminaeste terrífico monumento literário já em plena Segunda
Guerra Mundial. Como observam as tradutoras, “Narra-se aqui a história da vida
e da morte de Nikolai Rubachov, um Comissário do Povo no tempo de Lenine, que é
preso de um dia para o outro e atirado para a prisão para ser interrogado, sob
acusações, completamente forjadas, de conluio com a oposição organizada a
Estaline, incluindo o planeamento do seu assassínio. Apesar de um testemunho
assinado confessando os crimes falsos, é fuzilado nas caves da prisão. A
pressão psicológica, as ameaças e a tortura haviam-no levado a assinar o que
não fez, o que, sem surpresa também para ele que bem conhecia os procedimentos,
não o livrou da execução”. Rubachov tornar-se-á no símbolo deste cortejo
infindável de crimes que os comunistas de todos os países procuravam justificar
como a defesa do socialismo naquele período de transe, da implantação do
comunismo num só país cercado de totalitarismos de sentido contrário. Koestler
sabia dos Processos de Moscovo, com os quais Estaline preparou a liquidação da
hierarquia militar soviética, na continuação de anteriores purgas em que o
ditador se foi libertando dos próceres revolucionários, eram o seu principal
incómodo ideológico, ele tinha uma visão autocrática da gestão do poder e
assumia-se como um génio, todas as suas decisões eram inatacáveis.
O que tornou este libelo acusatório uma das mais tremendas obras de
denúncia de uma atmosfera sanguinária em que uma organização foi posta
inteiramente ao serviço do culto de uma personalidade foi a portentosa
arquitetura da escrita, revelar-se-á irrepetível, ao longo da História do
comunismo soviético.
A trama organiza-se em três interrogatórios e aparece um posfácio
intitulado A Ficção Gramatical, em que uma neta lê a
um velho revolucionário o jornal onde se fala do julgamento de Rubachov. Tudo
corre numa atmosfera asfixiante, na prisão, o velho herói consegue contatar por
pancadas na parede com outro prisioneiro, foi metido numa cela onde há um catre
de tábuas, uma enxerga, duas mantas sofrivelmente limpas, um lavatório, balde e
uma janela à altura da cabeça. Rubachov fora detido em casa uma hora antes, o
porteiro do prédio é o mesmo Vassili, velho revolucionário, que aparecerá no
fim da obra. Este preso tem dores de dentes, marcha pela cela, tem poucas
dúvidas sobre o seu destino, o fuzilamento. Por sinais vai falando com alguém
que está na cela ao lado.
Rubachov passa em revista missões no estrangeiro onde foi encontrar
comunistas perseguidos pelas novas ditaduras, comunistas que não percebiam como
é que a URSS fornecia matérias-primas a inimigos ferozes do comunismo. Agora,
com todo o tempo para pode interpretar a lengalenga propagandística que
utilizara na esperança de acalmar aqueles revolucionários abandonados à sua
sorte, dá conta das patranhas da dialética, das falácias utilizadas a favor da
tese do comunismo num só país. E começam os interrogatórios. Primeiro aparece
Ivanov, um velho companheiro, revela-se amável, discute com elevação, sente-se
que o inquisidor está incomodado, sabe perfeitamente que Rubachov não pertence
a nenhuma oposição, não organizou nenhum complô para assassinar Estaline.
O herói Rubachov vai escrevendo um diário de prisão, e nisto surge outro
inquisidor, agora da nova geração, homem na casa dos 30 anos, Gletkin, este não
apoia os métodos de interrogatório feitos por Ivanov. Estamos na fase do
segundo interrogatório, o preso continua a refletir sobre as suas atividades
passadas, conhece no pátio da prisão um velho comunista que passou a maior
parte da vida em prisões, pressente que vai ser fuzilado, mas diz
constantemente que não podemos perder a esperança, o comunismo vingará. É
nestes interrogatórios com Ivanov que Rubachov eleva à décima potência a
denúncia do que seria o comunismo consequente:
“Tão consequentes que nós, no interesse de uma distribuição de terras
justa, deixámos morrer à fome, durante 1 ano e de modo planeado, cerca de 5
milhões de grandes e médios lavradores, juntamente com as suas famílias. Tão
consequentes que, com vista à libertação das pessoas das cadeias do trabalho
assalariado capitalista, mandámos cerca de 10 milhões de pessoas em trabalho
forçado para o Ártico e para as florestas virgens do Leste, sob condições que
se assemelham às dos antigos escravos das galeras. Tão consequentes que, para
decidir sobre divergências de opinião, só conhecemos um argumento: a morte,
quer se trate da questão da tonelagem dos submarinos, de adubos ou da linha do
partido a seguir na Indochina (…) A nossa imprensa e as nossas escolas cultivam
o chauvinismo, o militarismo, o dogmatismo, o conformismo e a imbecilidade. O
poder e a arbitrariedade do Governo são ilimitados e sem igual na História; a
liberdade de imprensa, a liberdade de pensamento, a liberdade de circulação
foram exterminadas tão radicalmente como se nunca tivesse havido a proclamação
dos direitos do Homem”. Mas Ivanov dá réplica. Entretanto, Bogrov, o herói
lendário do primeiro levantamento da marinhagem russa, também é fuzilado.
O terceiro interrogatório é a pedra de toque da monstruosidade sobre as
fábulas criadaspor Estaline. Ivanov será fuzilado, era brando demais a
interrogar este presoespecial, é o brutal Gletkin quem vai assumir essas
funções e conduzir Rubachov a um cansaço tal que o levará a assinar toda a papelada que lhe põem pela frente, o argumento que o faz
vacilar é de que o partido não se pode dividir, a sapiência genial do nº1 do
Kremlin não pode ser posta em causa.
Compreende-se agora como é que o retrato deste comunista revolucionário fez
explodir controvérsias e debates, que se mantêm.
Antes publicado em Portugal com o título O Zero e o Infinito, a obra-prima de Koestler é agora revelada pela primeira
vez na sua versão integral, traduzida do alemão.
De leitura obrigatória.
Mário Beja Santos
Gostei muito de ler. Grato pela partilha.
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Cumprimentos cordiais.
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Pensamentos e Devaneios Poéticos
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