Platero e Eu, de Juan Ramón Jiménez, é sempre esta edição que não sai das minhas
estantes, por diferentes razões: por ser a mais entranhada e afetiva écloga
intemporal, em que um burrito é um mediador quase antropomórfico de quem
regressa ao terrunho natal, um pequenino ponto da Andaluzia; pelo esmalte da
tradução, toda a riqueza desta prosa poética é obra de desvelo, à procura do
termo adequado, para sorvermos o mundo rural e o companheiro de quatro patas
dotado de uma capacidade de entendimento que nos comove até às lágrimas; e
também pelo facto de a edição aparecer recheada com belos desenhos de um artista
gráfico inesquecível, Bernardo Marques, há uma quase magia no que desenha para
completar todo este vastíssimo olhar sobre tal pequenino ponto da Andaluzia, de
tal modo que dá pleno ajuste àquela frase de que o que é regional tem sempre
força universal. Vejo crianças a folhear recentes edições de Platero e Eu, e
sempre me pergunto se lhes passa pela cabeça que este livro não escolhe
gerações, estão ali registados ensinamentos para toda a vida. E pergunto-me
também se os ambientalistas alguma vez notaram que este texto é um belo tratado
de amor à Natureza.
Platero e Eu aparece como um encadeamento
de textos, apresenta-se o burrito que é pequeno, peludo, suave, macio, tem
olhos duros como dois escaravelhos de cristal negro, gosta de tangerinas, uvas
moscatéis, figos roxos, é terno e mimoso. E temos a paisagem, o deslumbramento
do poeta é contagiante: “Paro extasiado no crepúsculo. Platero, grãos de ocaso
os olhos negros, abeira-se, mansamente, de um charco de águas de carmim, de
róseo, de violeta; mergulha suavemente a boca nos espelhos, que parece que se
liquefazem quando ele os toca. A tarde prolonga-se para além de si mesma, e a
hora, contagiada de eternidade, é infinita, pacífica, insondável”. Mergulhamos
em pleno neste universo rural, onde há cabras, crianças que brincam com
Platero, fragâncias mil, borboletas brancas, canta-se a chegada da primavera:
“Que manhã! O sol põe na terra a sua alegria de prata e de ouro; borboletas de
cem cores brincam por toda a parte, entre as flores, dentro de casa, na fonte. O
campo abre-se em estalidos, em crepitações, num fervedouro de vida nova e sã. É
como se estivéssemos dentro de um grande favo de luz que fosse o interior de
uma imensa e cálida rosa acesa”. Ouve-se o repicar dos sinos, vão aparecendo
personagens daquela terra, há quem trate o poeta por louco, ele passeia-se com
Platero indiferente aos comentários, o burrito é aquele companheiro mudo que
olha a Lua, que assusta gente quando mete a cabeçorra branca na vidraça, que
coxeia e chama à atenção do dono para um espinho cravado na ranilha vermelha.
Aqueles passeios por todo o espaço vegetal são pacíficos para o poeta e o
burrito, é uma cumplicidade sem igual: “Trato Platero como a um menino. Se o
caminho se torna pedregoso e lhe peso um pouco, desço para aliviá-lo. Beijo-o,
engano-o, faço-o zangar… Ele compreende que lhe quero, e não me guarda rancor.
É tão igual a mim que cheguei a crer que sonha os meus próprios sonhos.”
Platero tem os seus instintos
amorosos, é da primavera. E chega o verão,
há o canto do grilo, aparece Darbón, o médico do Platero, pesa arrobas, é
desdentado e quase não come senão miolo de pão. “Enternece-se, como uma
criança, com Platero. E se vê uma flor ou um passarinho, ri-se subitamente,
abrindo a boca, com uma enorme gargalhada reprimida, que acaba sempre em
choro”. Pois recorda como a sua filha jaz no velho cemitério. E chegam as
andorinhas, agora é dia de festa, repicam os sinos, brilham nas janelas colchas
de damasco escarlate, relincha Platero, sucedem-se os passeios, aquela amizade
é inquebrantável, Platero é também amigo de ajudar, há uma tísica na aldeia,
importa ajudá-la: “Eu ofereci-lhe Platero para que desse um curto passeio.
Montada nele, que riso o da sua esguia cara de morta, toda olhos negros e
dentes brancos. As mulheres apareciam às portas para nos ver passar. Platero
caminhava devagar, como se soubesse que levava um frágil lírio de cristal”.
Sucedem-se as estações e as festas, a do
carnaval intimida um tanto Platero, acaba por colaborar, mas contrafeito. O
poeta mergulha enternecido na sua aldeia em festa, iluminada de vermelho até ao
céu, sobem agrestes valsas nostálgicas no vento suave. Há lembrança de um
menino pateta que já partiu para o céu e chegamos a um domingo de procissão,
poeta e burrito ficam pelo campo, dourado pelas notas caídas do alegre revoar
florido, estão em paz, homem e animal fitam-se de vez em quando. De vez em
quando chora-se, é o caso daquela menina que era a glória de Platero e que
depois partiu, havia que registar a dor: “Que pompa Deus pôs em ti, tarde do
enterro! Setembro, róseo e dourado, declinava. Do cemitério, como ressoava o
sino, no poente rasgado, a caminho da glória!... Regressei contornando os
muros, só e triste, entrei na casa pela porta da cerca, e, fugindo dos homens,
fui ao curral e sentei-me a chorar com Platero”.
Começaram os trabalhos de outono, passaram
as férias, chegaram as primeiras folhas amarelas, é tempo das belas romãs, que
descrição memorável: “Platero, que agradável sabor amargo e seco o da difícil
casca, dura e agarrada como uma raiz à terra! Agora, a primeira doçura, aurora
feita um breve rubi, dos grãos que vem pegados à casca. Agora, Platero, o
núcleo apertado, são, completo, com seus finos véus, o esquisito tesouro de
ametista comestíveis, sumarentas e fortes, como coração de não sei que rainha
jovem. Que cheia está, Platero! Eh, come! Que rica! Com que gozo se perdem os
dentes no abundante sabor alegre e rubro!”
É uma verdadeira sinfonia pastoral entre o
homem e o seu companheiro, há aqui um maravilhamento franciscano que mete o
orvalho e os pardais, o sabor dos frutos, os trabalhos campestres, o fim do dia
e a aurora sempre saudada. Já chegámos ao inverno, tempo daquele Sol
instantâneo e débil, vai renascer o bom tempo e é nisto que o poeta encontra
Platero deitado na sua cama de palha, os olhos mortiços e tristes. A partir de
agora é tudo uma amizade de memória, o poeta crê que está a ser visto por
Platero, a sela do burrito foi posta num cavalete de madeira, é ali que as
crianças brincam, trotam pelo prado dos seus sonhos: “Arre, Platero!, arre,
Platero!” E o poeta despede-se: “Doce Platero, o tratador, meu burrinho, que
tantas vezes levaste a minha alma – só a minha alma! – pelos fundos caminhos de
catos, de malvas e de madressilvas: para ti este livro que fala de ti, agora que
podes entendê-lo. Vai para a tua alma, que já pasta no Paraíso. Montada no
seu lombo de papel leva a minha, que, caminhando entre silvas em flor para a
sua ascensão, todos os dias se faz melhor, mais pacífica e mais pura”.
Questiono, pois, se esta écloga admirável
não é mesmo para todas as gerações.
Mário Beja Santos
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