quarta-feira, 15 de junho de 2022

Nunca a memória do mundo rural alcançou o cume poético de Platero e Eu.




Platero e Eu, de Juan Ramón Jiménez, é sempre esta edição que não sai das minhas estantes, por diferentes razões: por ser a mais entranhada e afetiva écloga intemporal, em que um burrito é um mediador quase antropomórfico de quem regressa ao terrunho natal, um pequenino ponto da Andaluzia; pelo esmalte da tradução, toda a riqueza desta prosa poética é obra de desvelo, à procura do termo adequado, para sorvermos o mundo rural e o companheiro de quatro patas dotado de uma capacidade de entendimento que nos comove até às lágrimas; e também pelo facto de a edição aparecer recheada com belos desenhos de um artista gráfico inesquecível, Bernardo Marques, há uma quase magia no que desenha para completar todo este vastíssimo olhar sobre tal pequenino ponto da Andaluzia, de tal modo que dá pleno ajuste àquela frase de que o que é regional tem sempre força universal. Vejo crianças a folhear recentes edições de Platero e Eu, e sempre me pergunto se lhes passa pela cabeça que este livro não escolhe gerações, estão ali registados ensinamentos para toda a vida. E pergunto-me também se os ambientalistas alguma vez notaram que este texto é um belo tratado de amor à Natureza.

Platero e Eu aparece como um encadeamento de textos, apresenta-se o burrito que é pequeno, peludo, suave, macio, tem olhos duros como dois escaravelhos de cristal negro, gosta de tangerinas, uvas moscatéis, figos roxos, é terno e mimoso. E temos a paisagem, o deslumbramento do poeta é contagiante: “Paro extasiado no crepúsculo. Platero, grãos de ocaso os olhos negros, abeira-se, mansamente, de um charco de águas de carmim, de róseo, de violeta; mergulha suavemente a boca nos espelhos, que parece que se liquefazem quando ele os toca. A tarde prolonga-se para além de si mesma, e a hora, contagiada de eternidade, é infinita, pacífica, insondável”. Mergulhamos em pleno neste universo rural, onde há cabras, crianças que brincam com Platero, fragâncias mil, borboletas brancas, canta-se a chegada da primavera: “Que manhã! O sol põe na terra a sua alegria de prata e de ouro; borboletas de cem cores brincam por toda a parte, entre as flores, dentro de casa, na fonte. O campo abre-se em estalidos, em crepitações, num fervedouro de vida nova e sã. É como se estivéssemos dentro de um grande favo de luz que fosse o interior de uma imensa e cálida rosa acesa”. Ouve-se o repicar dos sinos, vão aparecendo personagens daquela terra, há quem trate o poeta por louco, ele passeia-se com Platero indiferente aos comentários, o burrito é aquele companheiro mudo que olha a Lua, que assusta gente quando mete a cabeçorra branca na vidraça, que coxeia e chama à atenção do dono para um espinho cravado na ranilha vermelha. Aqueles passeios por todo o espaço vegetal são pacíficos para o poeta e o burrito, é uma cumplicidade sem igual: “Trato Platero como a um menino. Se o caminho se torna pedregoso e lhe peso um pouco, desço para aliviá-lo. Beijo-o, engano-o, faço-o zangar… Ele compreende que lhe quero, e não me guarda rancor. É tão igual a mim que cheguei a crer que sonha os meus próprios sonhos.” Platero tem os seus instintos

amorosos, é da primavera. E chega o verão, há o canto do grilo, aparece Darbón, o médico do Platero, pesa arrobas, é desdentado e quase não come senão miolo de pão. “Enternece-se, como uma criança, com Platero. E se vê uma flor ou um passarinho, ri-se subitamente, abrindo a boca, com uma enorme gargalhada reprimida, que acaba sempre em choro”. Pois recorda como a sua filha jaz no velho cemitério. E chegam as andorinhas, agora é dia de festa, repicam os sinos, brilham nas janelas colchas de damasco escarlate, relincha Platero, sucedem-se os passeios, aquela amizade é inquebrantável, Platero é também amigo de ajudar, há uma tísica na aldeia, importa ajudá-la: “Eu ofereci-lhe Platero para que desse um curto passeio. Montada nele, que riso o da sua esguia cara de morta, toda olhos negros e dentes brancos. As mulheres apareciam às portas para nos ver passar. Platero caminhava devagar, como se soubesse que levava um frágil lírio de cristal”.

Sucedem-se as estações e as festas, a do carnaval intimida um tanto Platero, acaba por colaborar, mas contrafeito. O poeta mergulha enternecido na sua aldeia em festa, iluminada de vermelho até ao céu, sobem agrestes valsas nostálgicas no vento suave. Há lembrança de um menino pateta que já partiu para o céu e chegamos a um domingo de procissão, poeta e burrito ficam pelo campo, dourado pelas notas caídas do alegre revoar florido, estão em paz, homem e animal fitam-se de vez em quando. De vez em quando chora-se, é o caso daquela menina que era a glória de Platero e que depois partiu, havia que registar a dor: “Que pompa Deus pôs em ti, tarde do enterro! Setembro, róseo e dourado, declinava. Do cemitério, como ressoava o sino, no poente rasgado, a caminho da glória!... Regressei contornando os muros, só e triste, entrei na casa pela porta da cerca, e, fugindo dos homens, fui ao curral e sentei-me a chorar com Platero”.

Começaram os trabalhos de outono, passaram as férias, chegaram as primeiras folhas amarelas, é tempo das belas romãs, que descrição memorável: “Platero, que agradável sabor amargo e seco o da difícil casca, dura e agarrada como uma raiz à terra! Agora, a primeira doçura, aurora feita um breve rubi, dos grãos que vem pegados à casca. Agora, Platero, o núcleo apertado, são, completo, com seus finos véus, o esquisito tesouro de ametista comestíveis, sumarentas e fortes, como coração de não sei que rainha jovem. Que cheia está, Platero! Eh, come! Que rica! Com que gozo se perdem os dentes no abundante sabor alegre e rubro!”

É uma verdadeira sinfonia pastoral entre o homem e o seu companheiro, há aqui um maravilhamento franciscano que mete o orvalho e os pardais, o sabor dos frutos, os trabalhos campestres, o fim do dia e a aurora sempre saudada. Já chegámos ao inverno, tempo daquele Sol instantâneo e débil, vai renascer o bom tempo e é nisto que o poeta encontra Platero deitado na sua cama de palha, os olhos mortiços e tristes. A partir de agora é tudo uma amizade de memória, o poeta crê que está a ser visto por Platero, a sela do burrito foi posta num cavalete de madeira, é ali que as crianças brincam, trotam pelo prado dos seus sonhos: “Arre, Platero!, arre, Platero!” E o poeta despede-se: “Doce Platero, o tratador, meu burrinho, que tantas vezes levaste a minha alma – só a minha alma! – pelos fundos caminhos de catos, de malvas e de madressilvas: para ti este livro que fala de ti, agora que podes entendê-lo. Vai para a tua alma, que já pasta no Paraíso. Montada no seu lombo de papel leva a minha, que, caminhando entre silvas em flor para a sua ascensão, todos os dias se faz melhor, mais pacífica e mais pura”.

Questiono, pois, se esta écloga admirável não é mesmo para todas as gerações.

 

Mário Beja Santos

 








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