Clérigos e barregãs é uma história muito antiga, de um modo
geral objeto de imensa tolerância, os senhores padres em Cabo Verde chegavam a
ter dúzias de filhos e nas nossas paróquias da chamada interioridade eram muito
comuns os vigários que vivam paredes meias com uma alegada irmã, e proliferavam
os afilhados ou crianças ditas protegidas por não se saber do pai e da mãe,
assim constava, a solicitude do senhor padre é que era importante. E já não vem
à baila os Papas e os cardeais da Cúria que tinham bastardos, muitos deles bem
tratados.
Dos anos 1970 para os anos 1980, esta estabilidade afetiva
camuflada explodiu noutra dimensão, a pedofilia e, em menor grau, o padre pai
de filhos. O dossiê ganhou volume e intensidade mediática, assentou-se a câmara
na Igreja Católica, presume-se por razões do celibato dos padres e o
encobrimento das vítimas, uma conspiração de silêncio que, como é hoje bem
visível, gerou e continua a gerar uma enorme convulsão na Igreja Católica.
Em Nome do Pai, abusos sexuais na Igreja em Portugal, por Sónia Simões, Oficina do Livro, 2023, é uma reportagem
em derredor de acontecimentos contemporâneos, mas onde o passado não foi
esquecido. A escandaleira soou nos EUA, ao tempo de João Paulo II, e o Papa
Francisco recebeu um farto processo onde Bento XVI igualmente tinha agido. A
intensidade das denúncias levou a que o Papa Francisco convocasse, em fevereiro de 2019, uma reunião que não tinha precedentes,
compareceram os presidentes das conferências episcopais do mundo com um ponto
único na ordem de trabalhos: agir resolutamente para que nenhum dos crimes
sexuais fosse doravante encoberto. Sónia Simões deixa bem claro que o alto
clero português tem agido ao retardador, é uma história um tanto escandalosa,
processos sinuosos de encobrimentos, até declarações públicas contrárias ao
decidido em Roma.
Está ainda por esclarecer o que levou este alto clero a
fingir quje escapava às obrigações da transparência, isto quando já 34 bispos
chilenos tinham renunciado, houvera a investigação na Pensilvânia, soubera-se
que um cardeal norte-americano era acusado, Irlanda, França, entre outros, as
igrejas nacionais agiram celeremente, enquanto aqui se empatava. A autora, jornalista
experimentada neste dossiê, desenvolve a sua narrativa a partir da história de
Mariana, então uma jovem que cedera às promessas de um padre vinte anos mais
velho e de quem teve um filho, fica bem claro quem e como andou neste jogo do
empata. E que havia instruções para agir, havia, desde 2009 exisita um
documento interno da Santa Sé com indicações expressas do que fazer, no caso de
um padre que tenha um filho.
A grande surpresa veio com o relatório da Comissão
Independente, os números eram demasiado violentos e indiciavam o encobrimento
do alto clero, fazia-se o chamamento às vítimas abusadas, os traumas, os sentimentos de culpa, vergonha, nojo,
revolta, perda de fé, até suicídio. É um desbobinar de histórias, avulta a
pedofilia, houve pais que se dirigiram aos bispos, a solução adotada era
transferir o padre.
Vamos então aos números. “A Comissão Independente cruzou 217
estudos sobre a generalidade dos abusos sexuais de crianças, elaborados entre
1980 e 2008, para perceber a incidência por género, deste tipo de crime na
sociedade. E a conclusão é avassaladora. As estimativas feitas a partir de 331
amostras
num total de quase 10 milhões de participantes revelam que 18 em cada 100
raparigas foi abusada sexualmente, assim como 8 em cada 100 rapazes foram
igualmente vítimas. O abusador é, na maior parte das vezes, alguém que é
próximo da vítima e em quem esta confia. Cenário propício a que, em grande
parte dos casos, os crimes não acontecem apenas uma vez, mas perdurem no tempo,
aproveitando o agressor para ir quebrando barreiras e escalar no tipo de
abusos.”
A
maior parte destes crimes não chegam às autoridades e, como é evidente, os
crimes sexuais contra menores ocorridos no meio eclesiástico é uma fração deste
tipo de crime em toda a sociedade. Só que os tempos mudaram, o encobrimento é
cada vez menos possível, as vítimas sentem-se impelidas a denunciar os abusos
sofridos e os números falam por si. “Em 2021, ano em que foram denunciados 828
crimes de abusos contra menores, a Polícia Judiciária – com competência
exclusiva na investigação deste tipo de criminalidade –, deteve 270 suspeitos.
Nesse ano, foram concluídos 351 julgamentos de abusadores sexuais e, em 397
arguidos, 293 foram condenados.” Como observa a autora, nos crimes em contexto
religioso a incidência recai sobre o sexo masculino, a maioria das vítimas são
rapazes. E aqui a autora disserta sobre as prerrogativas de poder que o padre
abusador pensa que detém, no meio social e junto da vítima, como igualmente
aborda o chamado problema da cura do abusador. A comissão francesa centrou uma
boa parte da sua pesquisa no estudo do abusador. “Mais de metade dos padres
entrevistados declararam ser homossexuais e alguns assumiram manter relações
ativas com adultos da mesma idade. Uma das explicações mais comum para os
abusos foi a necessidade de afeto ou intimidade com outras pessoas. Apontam-se
culpar à própria Igreja ou mesmo à época que se vivia – uma característica dos
abusadores em geral que raramente se sentem responsáveis pelos seus atos.”
Sónia
Simões analisa detalhadamente o caso do padre José Anastácio Alves, de que
houve conhecimento público quando se tentou entregar na Procuradoria-Geral da
República, um longo historial abafado ou menorizado. E dá-nos conta da
assembleia plenária da Conferência Episcopal Portuguesa, realizada em Fátima em
2019, era tempo efervescente e mandaria a lógica que o abuso de menores na
Igreja fosse no mínimo objeto de debate. A reunião de Roma exigia um tratamento
de choque. Tudo começou com a criação da Comissão de Proteção de Menores do
Patriarcado de Lisboa, o alto clero procurou resistir aos propósitos da
Comissão, só que o Papa Francisco voltou à carga, exigiu a nível universal,
“procedimentos tendentes a prevenir e contrastar estes crimes que atraiçoam a
confiança dos fiéis.” Após hesitações, formou-se a Comissão Independente.
Descrevem-se ainda os casos que chegaram ao Ministério Público, a autora passa
em revista como noutros países se estudam estes abusos, é um levantamento que
nos faz pensar, era impossível a partir dos resultados da Comissão Independente
não agir. Está em funcionamento o Grupo VITA – grupo de acompanhamento das
situações de abuso sexual de crianças. Em abril deste ano a Igreja emite
comunicado: “Entrámos agora numa nova fase. Estamos empenhados em prosseguir um
caminho de reparação e prevenção para que seja possível garantir o devido apoio
às vítimas e implementar uma cultura de cuidado e proteção dos menores e
adultos vulneráveis.” E a autora termina o seu trabalho dizendo: “Passaram
quatro anos desde o encontro em Roma e ainda estamos aqui.” Obra de inegável
interesse para procurar estudar o que são os bastidores da Igreja Católica em
Portugal.
Mário Beja Santos
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