Um dos capítulos mais negros da História de Portugal:
A rede bombista que nos aterrorizou em 1975 e 1976
As Bombas Que Aterrorizaram Portugal, por Fernando Cavaleiro Ângelo, Casa das Letras, 2023, é uma
obra de investigação de leitura indeclinável para quem pretenda mergulhar nos
bastidores da rede bombista a que estiveram associados o ELP, o MDLP, partidos
da direita radical, membros da Igreja Católica, antigos servidores da PIDE/DGS,
antigos combatentes da guerra de África, militares como António de Spínola,
Alpoim Calvão, entre muitos outros. Uma escrita fluente, muito segura, um
profundo conhecimento do funcionamento dos serviços secretos, revelando
documentação até hoje inédita, uma organização da investigação que permite abarcar
a história das políticas de terror, implementada por grupos nacionalistas ou
por serviços secretos, o autor tem uma inegável mestria no tratamento da
sequência histórica desde o despontar da atividade terrorista que terá tido o
seu marco em 11 de março de 1975, até ao seu declínio em finais de 1976. Temos
aqui as figuras de proa, a enunciação dos grandes acontecimentos marcados pelo
25 de Abril, os golpes e contragolpes, a emergência do MFA revolucionário, a
desagregação do tecido económico e social; intervêm fatores externos, com
relevo para o conflito em Angola e o aceso da Guerra Fria, entram em cena a 5ª
divisão do MFA e o seu funcionamento, Portugal torna-se campo laboratorial para
serviços secretos estrangeiros; temos aqui o histórico do aparecimento e
funcionalmente do ELP e do MDLP, organizações distintas, o que as irmana é o
anti-comunismo profundo, o primeiro centra-se no regresso ao passado, o segundo
é manifestamente orientado por um sonho federativo imperial com umas pinceladas
de direita conservadora; iremos até à sede do MDLP, e depois à sua atividade de
terror, temos aqui os nomes e a identificação dos crimes, depois o colapso da
organização, o ELP durará ainda mais algum tempo.
Fernando Cavaleiro Ângelo é igualmente admirável no texto das
conclusões e permito-me remeter o leitor para algumas considerações chave que
ele tece, algumas delas duras como punhos:
“Passados que foram quase cinquenta anos desde a Revolução de
Abril, e dos tempestuosos meses que se seguiram, ainda hoje impera o silêncio
sobre os acontecimentos e os verdadeiros culpados dos atos de violência e
terror que causaram mortes, feridos e avultados danos materiais em Portugal.
Muitos responsáveis foram levados a tribunal, mas só poucos foram condenados a
penas de prisão efetiva por terem cometido crimes de sangue, entre outras
atrocidades. O envolvimento de militares, polícias e políticos nas redes de
terrorismo da extrema-direita acabou por interferir, ou sonegar, as provas e
matéria de facto que pudessem alicerçar uma acusão sólida contra os mandantes e
executantes de tais crimes violentos.
No final, pode-se concluir que toda esta onda de caos e
violência que durou desde o 11 de março de 1975 até quase finais de 1976 serviu
três propósitos basilares: impedir a expansão e a tomada do poder pelos
comunistas; manter uma política que retomasse o controlo sobre as antigas
colónias africanas; e distrair as autoridades, para que o crescimentos dos
negócios ilícitos prosperasse, em matéria de tráfico de armas, divisas,
contrabando, entre outros.
As duas organizações que tiveram uma atividade mais ativa
foram o MDLP e o ELP. Nas suas fileiras juntavam elementos da PIDE/DGS, legião
portuguesa, antigos militares, guerrilheiros em desacordo com o plano de
descolonização em Angola, mercenários de organizações de extrema-direita e
individuos ligados à atividade criminosa. A Igreja Católica, os serviços
secretos dos EUA, França, Alemanha e Espanha, e alguns banqueiros, industriais
e empresários, também integraram, de forma bastante discreta, esta atividade.
Antes do 25 de novembro de 1975, o MDLP juntou o povo do
Norte, com o apoio e cumplicidade da Igreja Católica. O elemento chave para a
colaboração entre a Igreja e o movimentos era o cónego Melo, segundo
testemunhou o comandante Alpoim Calvão. Referiu também que entre o Projeto
Maria da Fonte e o MDLP a intermediação era assumida pelo engenheiro Jorge
Jardim. Com todas estas parcerias, o movimento atingia um contigente entre as
dez mil e as vinte mil pessoas.
As bombas explodiam em claras manobras de vingança por ódios
e desavenças passadas e presentes, que começavam a despontar sob o falso
argumento de conceitos ideológicos de índole política. O objetivo e a visão do
MDLP perderam fundamento depois da reviravolta sócio-política imposta pelos
acontecimentos do 25 de novembro de 1975. As manobras de financiamento deste
movimento interagiam com diversas atividades ilícitas, o que impulsionou uma
das pessoas mais influentes do MDLP a ameaçar divulgar toda a trama. Este pode
ter sido o motivo do aparente assassinato de Joaquim Ferreira Torres.
As suas revelações iriam, certamente, provocar uma hecatombe na ainda frágil
caminhada que Portugal percorria desde a formação do primeiro governo
constitucional. A viúva de Ferreira Torres acusou os membros do MDLP,
nomeadamente o comandante Alpoim Calvão, o inspetor Júlio Regadas, Teixeira
Gomes e Marques da Costa, de terem sido os responsáveis morais e materiais pelo
assassinato do marido. O despacho de arquivamento deste processo, em 1995,
reforçava a tese de negócios escuros do MDLP e das conspirações da rede
bombista com membros do Conselho da Revolução, pelo menos até 25 de novembro de
1975.
De
acordo com diversos relatos, o MDLP nunca recebeu qualquer apoio direto da CIA,
os norte-americanos rapidamente se aperceberam de que a solução para a situação
interna portuguesa passava por uma aliança com alguns oficiais moderados do
Conselho da Revolução e do MFA, e com o partido mais votado nas eleições de 25
de abril de 1975. O esforço de Washington, em colaboração secreta com alguns
países europeus e líderes partidários internacionais, foi convencer Spínola a
baixar as armas para que as eleições de 25 de abril de 1976 decorressem com
tranquilidade e de forma ordeira.
Nos
finais de 1976, quer MDLP, quer o ELP, quer ainda o Projeto Maria da Fonte,
podendo-se também incluir a rede bombista do Norte, tinham todos findado a
atividade terrorista.”
E
Portugal revelou-se um país de grandes costumes, sob a consigna da
reconciliação, todos os militares implicados no golpe de 11 de março de 1975
foram reintegrados, indemnizados, beneficiaram de legislação especial e alguns
foram promovidos a oficiais generais por escolha do Conselho da Revolução. Quem
não pôde reclamar, ou reaver a sua situação anterior, eram aqueles que padeceram
de forma intencional, ou colateralmente, perante os atos violentos dos
guerreiros da apelidada luta armada, como observa o autor, que também questiona
se vamos continuar a iludir-nos com a esponja que se julga limpar tudo depois
de passados 50 anos.
Um
dos grandes ensaios de investigação publicados em 2023, de leitura obrigatória.
Mário Beja Santos
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