sexta-feira, 29 de setembro de 2023

Elevar-se, renascer e voltar a ser, uma fantasmagoria com portas e quartos, uma obra-prima.




 

Aclamado como um dos livros mais importantes de 2022, e não só da literatura espanhola, Montevideu, por Enrique Vila-Matas, Publicações Dom Quixote, 2023, é o que se podia chamar uma viagem no quarto do escritor, imobilizado depois de uma operação com transplante de rim, o escritor catalão que é considerado como a figura literária contemporânea espanhola de topo resolve fazer uma incursão um tanto fantasmagórica, dando como pretexto que estava em crise de imaginação, uma crise que vai desencadear um corrupio de enigmas, saltitando em cidades de dois continentes, obcecado  vai parecer com a porta de um quarto de um hotel, ao tempo chamado Cervantes, houve ruídos, descobre uma ligação de quartos, começará uma digressão alucinante. Vários críticos deste fenomenal romance chamam a atenção para um parágrafo: “Converteste-te nos últimos tempos num escritor ao qual as coisas acontecem de verdade. Oxalá compreendas que o teu destino é o de um homem que deveria estar já a desejar a elevar-se, renascer, voltar a ser. Repito-te: elevar-se. Nas tuas mãos está o teu destino, a chave da porta nova.”

Uma das características dominantes da obra é enfatizar quer a ambiguidade do mundo, na sua modernidade líquida de relações que aparentam ser densas, afetivas, atenciosas e não passam de comportamentos artificiais, sorrisos postiços, atendedores automáticos onde uma voz melodiosa promete um encaminhamento rápido.

Como se inicia a viagem? O escritor está em Paris e deixa claro que deixou de escrever. Pode ser que tenha deixado de ter coisas para contar, ou de quando está a contar não conta tudo, isto não esquecendo que há também uma tendência para narrar sem dizer nada. Percorre bares icónicos de Montparnasse, há um turbilhão de referências de muita cultura, fala-se do cineasta Werner Herzog, o escritor Antonio Tabucchi, de Herman Melville, mas também de Kakfa, cotejam-se memórias infindáveis, vamos sendo arrastados nesta viagem alucinante que mete autores e obras, ganha corpo um encontro com Madeleine Moore, irá ter consequências, ela terá escrito uma obra que não mereceu os melhores elogios deste seu amigo barcelonês. Posta esta digressão parisiense, há uma transferência de memória para Cascais, fora convidado para um festival de cinema pelo produtor Paulo Branco, reconheceu-o no terraço do hotel, Jean-Pierre Léaud, que se celebrizara num filme de culto, Os Quatrocentos Golpes, de Truffaut, irá agitar-se a altas horas da madrugada com as risadas do quarto ao lado, daí desliza para outros episódios, nisto recebe a notícia que lhe morrera o pai, regressa a Barcelona.

Agora sim, entrámos nesse mundo enigmático que mete portas, quartos contíguos, sinais e estranhas vozes. O pretexto é dado por um conto do escritor Julio Cortázar, intitulado A Porta Condenada, tudo se passa no hotel Cervantes em Montevideu, o protagonista da história é Petrone. De noite, no quarto, Petrone ouve o choro de um bebé. Falando na manhã seguinte com o gerente, fica a saber que não há crianças no hotel, o choro permanece. Agora o autor está em Montevideu e quer voltar ao local do hotel Cervantes. Aquele quarto não tivera número, agora era o 205. Ali instalado, vasculha tudo. Desloca-se o armário, fica a descoberto a metade de uma porta, ele teme avançar com tudo às escuras, bloqueia a porta entreaberta. “Porém, ao sentar-me na minha cama, ouvi que no quarto às escuras havia um objeto, certamente mínimo, que rolava, três intermináveis segundos, pelo chão.”

Neste ponto do romance vem-me à memória uma obra cinematográfica que também aparece com a crise de inspiração, trata-se do filme 8 e ½, de Frederico Fellini, parece que o filme está condenado a não existir porque o realizador sente-se completamente seco, o emocionante vem depois, com a chegada dos elementos associados ao filme que parecia estar projetado ele realizar, encontros e desencontros, memórias de infância, somos arrastados e isso é o assombroso do génio de Fellini na torrente desta criatividade, presumíveis cenas reais que vão engalanar a construção do filme até ao seu climax. É o que se passa aqui em Montevideu, aqueles dois quartos do antigo hotel Cervantes entram em cena e nunca mais de lá saem, já se este em Paris e Cascais, faz-se menção de algo que se passou com portas em Reiquiavique, depois na Suíça em St. Gallen, Bogotá, Barcelona, de novo Paris, como se de novo se fechasse o círculo. Entra e sai gente da trama da obra, relações que se enlaçam e desenlaçam rapidamente, o autor viaja, vai fazer conferências de temas insípidos. E volta a Barcelona. Mário Desdini, filho de um bom amigo, pede para encontrar o autor, este aproveita a oportunidade já que o jovem é estudante no Instituto de Matemáticas de Orsay, em Paris, de lhe contar tudo o que se passara, ele procura dar uma explicação: “Os caminhos aleatórios são caminhantes que se decidem passear ao acaso num determinado labirinto. O tipo de pergunta interessante é: voltam sempre ao ponto de partida, ou conseguem escapar? É uma questão, em muitos casos, fácil de responder, porque só há duas forças que competem: uma é a geometria do labirinto, e outra o caráter aleatório do passeio. A ideia é que, quando o caminhante regressa à origem, o jogo volta a começar esquecendo o passado, de maneira que a probabilidade de voltar x vezes à origem é a mesma probabilidade de que x caminhantes, no mesmo labirinto, voltem ao ponto de partida, à origem, uma vez.” Reaparece Madeleine Moore, estamos de novo em Paris, haverá uma retrospetiva da obra desta no Centro Pompidou, reaparecerá um quarto único, de novo um quase estado alucinatório de quarto sem saída, de novo um enredo sem fim, embora a artista lhe tenha dado uma chave para abrir a porta do fundo, com a possibilidade de entrar num quarto contíguo, tudo vai falhar, procuram-se explicações que não têm resposta, agora dá-se um salto até à Suiça, conversa-se na Biblioteca Medieval de St. Gallen, volta-se a falar em Julio Cortázar, Enrique Vila-Matas volta de novo ao hotel e ao quarto que dera origem ao conto de Cortázar, caminhamos para o fim da viagem, que ele escreve assim:

“Quando alguém passa uns meses a escrever em redor de um espaço com mistério, este vai-se tornando obsessivo para ele e pode acabar por acontecer que o choque enormemente que alguém mais possa falar desse espaço que ele tem tão alojado na mente.” E em jeito de despedida, para tornar tudo mais intricado, abre caminho para uma solução dos enigmas:

“Tive uma recordação da minha mãe, que, uma manhã, depois de lhe ter perguntado com insistência por que razão o mundo era tão estranho, se postou no meio do Paseo de San Juan me disse que já estava cansada da pergunta e que ia dizer-mo pela última vez: o grande mistério do universo era que houvesse um mistério do universo.”

Imperdível, obviamente.


                                                                                                    Mário Beja Santos




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