As
cinquenta tonalidades dos elefantes olímpicos
A
publicação em Portugal do livro Jogos de Poder, do investigador e
ex-atleta olímpico Jules Boykoff, é apenas o mais recente capítulo de uma longa
lista de denúncias sobre o problemático universo das Olimpíadas, nomeadamente
ao nível dos muitos “elefantes brancos” deixados em herança às cidades
organizadoras. Mas se agora tendemos – e bem! – a olhar com desconfiança o
fenómeno dos Jogos, mais importante se torna sublinhar que nem só da cor da
neve se fez este reino de paquidermes.
Se
o caldeirão olímpico falasse ou, mais bem dito, cantasse, à semelhança dos seus
primos saídos das histórias de bruxas, talvez se sentisse tentado a recorrer,
no momento em que a tocha se aproxima, ao Dá-me Lume de Jorge Palma,
marcando assim, com um toque de humor, o ponto alto da cerimónia de abertura,
ela própria, por sua vez, muito provavelmente o ponto alto de qualquer edição
dos Jogos Olímpicos. Sendo Paris a cidade anfitriã da próxima, seria certamente
um bom momento para os largos milhares de portugueses que, misturados nas quinhentas
mil pessoas previstas nos números da organização, irão assistir, ao vivo, à
grande inovação desta XXXIII Olimpíada: a transferência, pela primeira vez, do
interior de um estádio para um genuíno ambiente urbano, da sempre espectacular inauguração
do evento.
Conjugar
esta surpreendente decisão – tomada sob o signo da abertura popular e da
facilidade de acesso, e considerada tão relevante que foi dada a conhecer ao
mundo através do Presidente Macron lui-même – com a da não construção de
um estádio olímpico de raiz – optando-se, ao invés, por utilizar o Stade de
France, um equipamento em funcionamento regular desde o Campeonato do Mundo de
Futebol de 1998 –, deu origem a um coro de elogios, proferidos dentro e fora do
Hexágono, que revelou bem o cansaço de largas parcelas da sociedade (e das
respectivas carteiras) com a multiplicação de “elefantes brancos”, uma espécie
que nunca correu qualquer risco de extinção desde que se mostrou ao mundo
(eventualmente na forma de Torre de Babel) e que costuma encontrar na ecologia
dos grandes eventos condições óptimas de reprodução.
De
facto, depois de décadas a ler notícias e a ver imagens de instalações
olímpicas abandonadas, das piscinas extraordinárias e caríssimas cuja água nem
ao Natal seguinte chega até aos pavilhões outrora resplandecentes engolidos
pelo mato logo na primeira Primavera, não é de estranhar que os contribuintes –
e mesmo quem não contribui – fiquem aliviados por saber que a organização de
uns Jogos, preocupada com o futuro e consciente das experiências passadas,
pretende evitar “gigantismos” e aposta na contenção dos egos e dos custos que
os costumam suportar. Quando essa filosofia de sobriedade mostra a sua força em
Paris, uma cidade normalmente obcecada com a grandeur, junta-se ao
alívio a surpresa: se até a capital de Luís XIV, Napoleão, Charles de Gaulle e
Mitterrand, sede de um vasto Clube das Inutilidades
Magníficas com sócios
do jaez do Grande Arche de La Défense (300 mil toneladas de vaidade em forma de
betão, vidro e mármore), começa a perceber as vicissitudes financeiras e
ambientais da pompa, então há esperança para a tão debatida sustentabilidade do
mundo.
Posto
isto, que não é pouco e muito menos irrelevante, talvez seja igualmente justo
sublinhar, numa subjectiva e discutível tentativa de separar o trigo do joio,
que nem todos os milhões, ou biliões, quiçá triliões gastos em 128 anos e 32
edições das Olimpíadas modernas tomaram a forma de escandaloso desperdício, um
pouco como se os estádios, sem excepção, aproveitando-se do seu design,
tivessem assumido o papel de gigantes retretes onde lunáticos e perdulários
decisores despejaram sem tino nem proveito camiões e camiões de dinheiro. Sobre
esses casos, quase incontáveis, não há falta de relatos e de falatório. Quanto
aos outros, os que honraram a despesa com uma obra marcante, muitas vezes
revolucionária e ainda em usufruto, têm sido mais raras as crónicas, pelo menos
nos últimos anos, uma realidade algo injusta que merece reparação.
776
a.C.
A
chama que irá “dar lume” ao caldeirão parisiense, e que se encontra neste
momento na parte final de uma viagem de 101 dias e 10 000 “passagens de
testemunho”, foi acesa no passado mês de Abril em Olympia, a cidade grega localizada
no Peloponeso onde toda esta alegre confusão teve início. Cumprindo a lei de
ferro dos eventos, chegámos, entretanto, às três dezenas de modalidades e dez
milhares de atletas, mas nesse longínquo ano de 776 a.C., quando ocorreu a
primeira edição, tudo se resumia a uma corrida a pé entre duas pedras, afastadas
entre elas, ao que parece, 192 metros. A essa distância se deu o nome de stadion,
palavra que foi em simultâneo utilizada – não sabemos se por falta de
inspiração, preguiça ou simplificação comunicacional – para baptizar a prova em
si e também a pista onde foi disputada, uma construção simples que ainda lá se
encontra, ao lado de várias outras antiguidades em ruínas (nomeadamente o
Templo de Zeus, casa da desaparecida estátua esculpida por Fídias, uma das sete
maravilhas do mundo), todas obviamente inscritas na lista de Património Mundial
da UNESCO.
Pai
de todos os estádios, incluindo do Municipal de Braga, cujo custo total de 192
milhões de euros poderá ter sido uma homenagem à unidade de medida acima
referida, o stadion de Olympia foi utilizado regularmente até 393 d.C., ano
em que o Imperador Teodósio, entre outras medidas de combate ao paganismo,
decretou o fim da versão 1.0 dos Jogos Olímpicos. Se estes onze séculos de
perseverança dos materiais seriam já um excelente indicador ao nível da
amortização do investimento na infra-estrutura desportiva, perdoe-se o jargão
económico, melhor ficaram os rácios quando os responsáveis por Atenas 2004
decidiram lá fazer a prova de lançamento do peso, aumentando a vida útil
do recinto para uns invejáveis 2780 anos, marca apenas superada pela vida
útil do defesa central Képler Laveran Lima Ferreira, mais conhecido por
Pepe. A responsabilidade pelo complicado legado desses J.O. na capital grega, que
cumprem agora o 20.º aniversário, terá, pois, de ser procurada noutro lugar, a
começar talvez na cobertura de 256 milhões de euros idealizada por Santiago
Calatrava para o estádio principal, e que se encontra, neste momento, interdita
por risco de colapso.
Não
tendo sorte com as construções recentes, a Grécia, numa daquelas ironias que
talvez lá tenham sido representadas teatralmente pela primeira vez, parece ter
boa fortuna com as antigas. É que além do complexo de Olympia, algo deslocado
neste texto por não estar directamente relacionado com as Olimpíadas da era
moderna, alberga também nas suas fronteiras o Panatenaico, um estádio que
nasceu em Atenas ainda na Antiguidade, sendo depois progressivamente abandonado
até à ruína, com o mármore que o compunha a ser roubado e utilizado noutras
obras por empreiteiros dinâmicos e com espírito de iniciativa, espécie rara mas
que de vez em quando aparece, e vendo algumas das suas maravilhas a emigrarem,
como por exemplo o Trono de Biel, exposto actualmente no Museu Britânico.
Entretanto, após extensos trabalhos arqueológicos desenvolvidos durante o séc.
XIX, o Panatenaico é totalmente reconstruído com o famoso
e nobilíssimo mármore branco do Monte Pentélico, o mesmo que faz brilhar o
Pártenon à luz do tórrido sol grego, numa operação milionária patrocinada por
homens de negócios de bolsos fundos que tinha em vista os J.O. de 1896, ou
seja, os primeiros da modernidade. Agora que caminhamos para os trigésimos
terceiros, parece justo reconhecer, a título de balanço, que o Kallimarmaro
(“beleza em mármore”), nome pelo qual também é conhecido, se portou bem,
aguentando décadas de eventos variados, inspirando, com o seu misterioso túnel
de acesso e com a sua simplicidade clássica em forma de ferradura, vários
arquitectos, incluindo alguns pouco recomendáveis como o nazi Speer, e, aspecto
importante, sem nunca ter tido qualquer problema com a cobertura, eventualmente
pela prosaica razão de não ter nenhuma.
(Estádio
Panatenaico)
Oito
anos depois, em St. Louis, Missouri, continuaram bem tramados os carecas,
sujeitos aos escaldões pela igual falta de um tecto. Por outro lado, desviando
a atenção para o que estava debaixo deles, puderam desfrutar dos Jogos em
grande segurança estrutural, uma vez que as bancadas foram construídas com a
então inovadora tecnologia do betão armado, nessa época em fase de
desenvolvimento. A aposta, imbuída de pioneirismo, foi ganha, e ainda hoje lá
nos podemos sentar para assistir a jogos ou a provas de atletismo, o mesmo
acontecendo com o vizinho Francis Gymnasium, um espaço que, além da prática desportiva,
costuma ser escolhido para acolher os debates entre candidatos a Presidente dos
Estados Unidos, sempre excelentes oportunidades para se trocarem juízos sobre
bons e maus investimentos.
Os
mais atentos terão reparado que Paris 1900 não foi referido, algo que
acontecerá também com Londres 1908 e com mais uma ou outra edição, pois em não
havendo obra marcante ou duradoura, ou, quem sabe, havendo ignorância do
signatário sobre obra que afinal até tenha existido, delas se guardará de
Conrado o prudente silêncio. Não é porém o caso dos Jogos de Estocolmo (1912), Paris
(1924) e Amesterdão (1928), todos merecedores de alguma atenção, quer pela
perenidade geral dos estádios que os acolheram, os três ainda no activo, quer
por algumas particularidades dignas de nota: o recinto sueco, sendo dos mais
pequenos de sempre, foi um dos que mais recordes do mundo viu serem batidos na
história do atletismo, numa excelente demonstração da máxima “less is more”; o
francês, construído sob uma apertadíssima restrição financeira, conseguiu
proteger os carecas do sol com uma desafiante cobertura de ferro suportada por
apoios mínimos, demonstrando dotes de engenharia (civil e financeira) que podem
ainda ser apreciados, uma vez que o estádio, exactamente 100 anos depois, será
um dos palcos de Paris 2024; o holandês (ou será paísbaixês?), esse, saído do
estirador de Jan Wils, arquitecto fundador, na companhia de Mondrian, van
Doesburg e Gerrit Rietveld, do grupo De Stijl, seria, só pelo génio do criador,
um lugar a ter em conta – não por ser um exemplo desse movimento marcado pela ortogonalidade
e forma cúbica revestida a cores primárias, mas por representar a “outra vida”
de Wils, ligada ao expressionismo do tijolo vermelho característico da “Escola
de Amesterdão”. Ademais, pormenor decisivo, foi dele a ideia de fazer renascer
a chama olímpica da antiguidade grega, tendo construído uma elegante e
grandiosa torre para servir de “castiçal”, embelezando ainda mais um estádio já
de si lindíssimo – que o digam os benfiquistas, que de lá trouxeram, numa época
pré-maldição, a sua segunda taça de campeões europeus.
(Estádio
Olímpico de Amesterdão)
Mania
das grandezas
E
eis-nos assim chegados à década de 30 e aos dois colossos que a marcaram, um
deles sob o signo do espanto e optimismo, por ter sido possível ao engenho
humano de uma nação construir tal poderosa maravilha, o outro sob o signo do
espanto e pessimismo, por ter sido possível ao engenho humano de uma nação
construir tal poderosa maravilha. A diferença? O gigantismo de Los Angeles 1932
era patrocinado por uma democracia liberal consolidada, com as suas virtudes e
defeitos bem conhecidos de todo o mundo; o outro, de Berlim 1936, era um
projecto de poder de um sistema político misterioso instituído três anos antes,
um regime que se apoiava numa ideologia nazista ainda pouco transparente quanto
às suas verdadeiras intenções, mas da qual o que se ia sabendo não augurava
nada de bom.
À
parte isso, o assombro. Cem mil lugares – uma escala nunca vista – em ambos os
casos; noventa portões de acesso no de L.A., permitindo uma evacuação total em
pouco mais de 15 minutos; uma capacidade logística no de Berlim que garantia
conseguir enchê-lo, compra dos bilhetes incluída, enquanto o Diabo – ou o
próprio Hitler – esfregava um olho. Em relação à durabilidade, nada parece
haver a apontar: o recinto californiano, que recebeu Carlos Lopes no final dos
42.195 metros do nosso contentamento, já acolheu as Olimpíadas de 1932, as de
1984, e prepara-se agora para uma nova aventura em 2028, colocando a fasquia
das reutilizações num nível difícil de ultrapassar; o intimidante palco
germânico, por seu lado, não durará certamente, à semelhança do III Reich, os
mil anos previstos pelos megalómanos nazis, mas lá continua de pedra (muita) e
cal (pouca), após várias renovações, muitas provas de atletismo, nomeadamente
um campeonato do mundo, e centenas de jogos de futebol, incluindo dois mundiais
da FIFA, um deles, em 2006, com direito a uma histórica cabeçada de Zidane.
(Parque
Olímpico de Berlim)
Desviando-nos
substancialmente da linha do tempo, num salto importante para perceber um
contraste revelador, importa falar sem delongas de Munique 72, os segundos
Jogos realizados na Alemanha, tristemente célebres pelo atentado terrorista
contra a delegação de Israel, mas arquitectonicamente felizes pelo sublime
trabalho de Günter Behnisch, Frei Otto (que era também engenheiro) e Günther
Grzimek, paisagista responsável por implantar na capital da Baviera um parque
exemplificativo do seu conceito de “verde democrático”. Construído
especificamente para servir de antítese à experiência nacional-socialista de
1936 – projectar poder através de formas neoclássicas de rigorosa geometria e de
pesadas placas de pedra aparelhada –, o Parque Olímpico de Munique é um
prodígio de leveza e de abertura, e o estádio nele plantado (é a palavra certa,
pois está significativamente enterrado no terreno), com a sua delicada
cobertura ondulada, é uma obra tão bem feita que consegue até disfarçar a
tremenda complexidade técnica e consequente inovação estrutural que permitiram
a sua existência. Imitando uma teia de aranha, caso as aranhas fossem do
tamanho de dinossauros, a “tenda”, que cobre uma larga parcela dos equipamentos
desportivos, precisou de 436 km de cabos de aço para garantir a própria
sobrevivência contra ventos e nevões, uma membrana protectora de milhares de
metros quadrados de um arrojo poucas vezes visto, embora nada esmagador por
estar sabiamente harmonizado com colinas, lagos e árvores. O que esmagou,
claro, foi o custo da brincadeira, sacos carregados com o poderoso marco alemão
a caminho do bolso dos empreiteiros que ergueram a canópia, movimentaram
milhões de metros cúbicos de terra e executaram as fundações com quase 40
metros de profundidade, e dos muitos engenheiros, técnicos e cientistas que tudo
isto possibilitaram a partir de laboratórios e centros de investigação. Em sua
defesa, porém, diga-se que na História da Humanidade em geral, e na dos J.O. em
particular, já se gastou bem mais em coisas bem menos fabulosas.
(Parque
Olímpico de Munique)
O
desastre
Sem
nos afastarmos muito, cronologicamente falando, basta avançar uma edição, para
Montreal 76, rumo a um dos maiores desastres financeiros – e não só – de sempre.
Os admiradores do projecto, tentando equilibrar a balança, não deixarão de
referir a monumental torre inclinada, responsável por gerir a abertura e fecho
da cobertura do estádio, e, sem dúvida, um dos símbolos mais visíveis e
reconhecíveis da cidade actualmente. Impressiona, de facto, mas não tanto como
as fotografias da cerimónia de abertura, onde no lugar da torre se veem apenas
gruas e pontas de varões de aço, símbolos inconfundíveis de obras não
terminadas. A dita-cuja chegou mais tarde, mais concretamente em 1988, com um
ligeiro atraso de três Olimpíadas, e continuou a ser paga até 2006, com um
ligeiro desvio orçamental de 1300%. Valeu a pena, todavia, pois ainda se
conseguiu abrir e fechar o tal tecto umas dezenas de vezes, antes de se
tornarem tão evidentes os problemas que não restou outra opção senão trocá-lo
por outro, solução que durou até o tal outro, por sua vez, começar também a dar
problemas, e assim sucessivamente, numa novela que, 48 anos volvidos, continua
em exibição, montada num argumento que incluiu corrupção, caos no estaleiro,
greves infindáveis, atletas olímpicos misturados com trolhas que tentavam
desesperadamente “segurar as pontas”, desmoronamentos de pedaços de betão com
várias toneladas, feridos, processos em tribunal, incêndios, falhas
estruturais, e a quase falência do município. Com a cidade ainda dividida entre
aqueles, pessimistas, cujo derradeiro sonho é a demolição do paquiderme, e os
restantes, optimistas, que acreditam que tudo acabará por correr bem se
continuarem, ad aeternum, a regá-lo com dinheiro, é provável sermos
ainda presenteados, durante muito tempo, com a única herança evidente e
indiscutível destes Jogos, a saber: as anedotas.
(Estádio
Olímpico de Montreal com uma cobertura)
(Estádio
Olímpico de Montreal com outra cobertura, em direcção a mais uma, e assim
sucessivamente)
Comparadas
com Montreal, as restantes barracadas olímpicas, por maiores que tenham sido,
parecem sempre diminutas e aceitáveis, no mínimo passíveis de contraditório.
Por isso, e também pela promessa inicial de concentrarmos a atenção nas edições
que equilibraram minimamente os custos com um legado decente, passemos ao de
leve pelo património de Moscovo 80 (o estádio Lenine, que entretanto foi rebaptizado
como Luzhniki, conta apenas com a fachada original, pois tudo o resto foi
demolido e reconstruído para o FIFA 2018; e sendo essa fachada, em estilo
neoclássico, um derivado fora de prazo do Olímpico de Berlim, não teria vindo
mal nenhum ao mundo se tivessem deitado tudo abaixo); e de Seoul 88 (uma obra
interessante, de um arquitecto interessante, onde nada de interessante se passou
desde a cerimónia de encerramento); e de Atlanta 96 (um estádio sem interesse
nenhum, substituído logo em 1997 por outro, também sem interesse nenhum, e
entretanto por um terceiro – sim, adivinharam – igualmente desinteressante;
como todas estas metamorfoses foram planeadas e orçamentadas por americanos, é
provável que o legado financeiro não tenha sido mau, mas o patrimonial, esse,
não existe); e de Londres 2012 (é verdade que o neofuturista Centro Aquático da
arquitecta Zaha Hadid, estrela mundial da arte do estirador, primeira mulher a
receber o Pritzker, “rainha da curva” e de muitas outras designações elogiosas,
é, de facto, um magnífico exemplar da “WOW! architecture”, e talvez seja até,
como referiu à época o Presidente do Comité Olímpico Internacional (COI), uma
obra-prima, mas os orçamentistas conseguiram meter tanta água como as próprias
piscinas, e a brincadeira derrapou até aos 300 milhões de euros, um valor que
só se justificaria se os atletas tivessem exigido nadar em champanhe francês);
e do Rio 2016 (“OLIM(PIADA)”, escreveu um brasileiro anónimo numa vedação do
Parque Olímpico, dando à luz um resumo provavelmente mais certeiro do que
injusto); e, por último, de Tóquio 2020, um caso que se compreende melhor a
partir da anterior edição nipónica, quase seis décadas antes e na mesma cidade:
os Jogos de 1964.
(Centro
Aquático de Londres)
Não
parecem existir grandes dúvidas de que a boa vontade de cidadãos e
contribuintes em relação à organização de Olimpíadas tem vindo a diminuir, uma
disposição mental que provoca a redução do número de cidades candidatas e a
multiplicação de acções de protesto contra quem se chega à frente. O escrutínio
cada vez mais intenso e profissional, responsável por boa parte deste estado de
espírito, levanta, contudo, problemas de comparação entre iniciativas recentes
e iniciativas antigas, quando o exame das relações de custo-benefício por parte
de jornalistas, investigadores ou activistas não era tão desconfiado e minucioso.
Salta,
porém, à vista, mesmo aceitando que os japoneses de 1964 gostavam tanto de
desperdiçar dinheiro como os seus descendentes de 2020, que antigamente o
desperdiçavam melhor. A Arena Budokan e, principalmente, o Pavilhão Yoyogi, da
autoria de Kenzo Tange, ambos intensivamente utilizados durante os últimos 60
anos, são obras emblemáticas da arquitectura do Japão, não sendo exagero
atribuir à segunda o estatuto de prodígio estético e estrutural. Tange era um
conhecedor profundo da tradição japonesa e também um entusiasta do Modernismo,
pelo que abordou o equipamento olímpico com as mais avançadas tecnologias
construtivas disponíveis (que lhe permitiram erguer o maior espaço coberto sem
pilares jamais visto), inspirando-se todavia nos templos xintoístas para
desenhar as suas linhas onduladas e arrojadíssimas coberturas, quase uma “pele”
suspensa numa rede de cabos de aço.
(Pavilhão
Yoyogi, Tóquio)
Também
em Roma, quatro anos antes, e na Cidade do México, quatro anos depois, foi o
mundo presenteado com vasta perícia e refinado gosto. Nas Américas, sob a
orientação de Augusto Pérez Palacios, um arquitecto atento à importância de
valorizar os edifícios através da articulação entre as várias disciplinas das
belas-artes, o Estádio Olímpico em forma de cratera, precursor da pista de
atletismo em tartan, espantou tanto o povo como as elites, homenageando
a cultura e a geologia locais com a utilização de rochas vulcânicas como
material de construção, numa inspirada referência que transformou os atletas em
personagens quase literais do romance Debaixo do Vulcão de Malcolm
Lowry. A cereja em cima do bolo, colocada pelo volumoso Diego Rivera, um
artista que sem dúvida gostava de doces, consistiu num extraordinário relevo
cuja imponente dimensão só não é maior devido à interrupção dos trabalhos por
morte do muralista. Integrado na principal cidade universitária mexicana, o
estádio, em conjunto com muitas outras obras do campus, foi devidamente
reconhecido pela UNESCO, no ano de 2007, como Património da Humanidade. Quanto aos
jogos romanos de 1960, destacou-se Pier Luigi Nervi com o seu domínio absoluto da
arte do betão armado. O Palazzetto dello Sport não é o único filho olímpico do
inovador e patenteado “Sistema Nervi”, mas é possivelmente o mais elegante, com
a sua cúpula em infinitos losangos, assinatura de autor admirada e reconhecida
em qualquer faculdade de engenharia ou arquitectura do mundo. Um Panteão do
séc. XX, construído em tempo recorde graças ao revolucionário método de
pré-fabricação, e com um custo total de 263 milhões de liras, mais ou menos o
preço actual de um gelado numa esplanada da Piazza Navona. A vizinhança, essa,
é complicada, constituída pelos edifícios desportivos que Enrico Del Debbio,
Luigi Moretti e Costantino Costantini, sob as ordens de Mussolini, projectaram no
Foro Italico para servir a candidatura da capital italiana à organização
dos J.O. de 1940 (que nunca chegaram a ocorrer por causa da II Guerra Mundial).
Utilizados 20 anos depois, a complicação não deriva da falta de beleza,
grandeza ou funcionalidade, mas sim, pelo contrário, do excesso dessas
características num ambiente de manifesta estética fascista. Perante as
estátuas do Stadio dei Marmi ou a piscina coberta do Palazzo delle Terme, entre
toneladas de carrara e travertino, não há maneira de escapar ao fascinating
fascism, título do ensaio que Susan Sontag, pensando em artistas como Leni
Riefenstahl, escreveu em 1975.
(Estádio
Olímpico Universitário, Cidade do México)
(Palazzetto
dello Sport, Roma)
(Stadio
dei Marmi, Roma)
(Palazzo
delle Terme, Roma)
Os
Jogos da Austeridade
Traumatizados
que estamos com as derivas perdulárias, em alguns casos na ordem das dezenas de
milhares de milhões de dólares, facilmente esquecemos que estas, embora
caracterizem boa parte dos 128 anos de Olimpíadas modernas, não os representam
na totalidade. Em Helsínquia 52, por exemplo, parecem ter tido lugar uns Jogos
modestos e eficientes, com o Estado a assegurar o financiamento de
infra-estruturas de longo prazo (vias rápidas, ferrovias, um novo aeroporto,
tudo ainda em pleno funcionamento) e a receita dos bilhetes e da publicidade a
ser encaminhada para as restantes despesas. E o legado patrimonial, bem
amparado na solidez intemporal do melhor funcionalismo vanguardista nórdico,
está ainda de óptima saúde, não obstante a esbelta torre do Estádio Olímpico,
durante décadas um símbolo da Finlândia independente e moderna, poder agora ser
vista, à luz dos irritantes novos códigos de conduta, como uma manifestação de “masculinidade
tóxica”.
Já
em 1956, pelo contrário, a “toxicidade” dos machos tinha amplo apoio e carinho popular,
razão pela qual um jogo de pólo aquático entre a invasora URSS e a invadida
Hungria ficou para sempre na memória colectiva, comentado com respeito e
admiração apesar de ter consistido numa manifestação de orgulho ferido vingado
ao soco e ao pontapé. O “ringue” onde tudo se passou, e que era afinal uma
piscina radicalmente original ao nível estético e estrutural, ainda lá está,
reconhecido pelos australianos como uma herança valiosa das Olimpíadas de
Melbourne, um equipamento em forma de pirâmide invertida cuja firmeza ficou
definitivamente provada no tumulto com que os milhares de adeptos nas bancadas responderam
ao “banho de sangue” proporcionado por soviéticos e húngaros. Ademais, construído
no espírito do minimalismo de materiais, não pesou muito no bolso dos
contribuintes, tendo sido mais caro, contudo, do que o somatório financeiro de
todas as instalações desportivas inauguradas em Londres no ano de 1948:
exactamente zero libras.
(Centro
Aquático de Melbourne)
A
cidade inglesa, na ressaca da guerra, optou por não construir nada de raiz,
limitando-se a adaptar o edificado já existente, às vezes com um espírito de
desenrascanço bem português, como quando foi colocada uma plataforma de madeira
na piscina, que tinha 60 metros de comprimento, conseguindo assim encurtá-la
para os 50 metros regulamentares. Não satisfeitos, assim que as provas de
natação terminaram, com nítido domínio americano, encaixaram mais uns estrados
em cima da água e deram início à competição de boxe, não à maneira do que viria
a ser informalmente praticado em 1956 no centro aquático de Melbourne, mas
rigorosamente de acordo com o previsto nos códigos desportivos.
Para
a história ficou o epíteto de “Jogos da Austeridade” e Wembley, inaugurado em
1923 como Estádio do Império, serviu como sede do evento, tendo ainda aguentado
mais meio século antes de se ver substituído por um dos expoentes da
megalomania contemporânea, o The New Wembley, um dos campos da bola mais caros
de sempre, com um custo de construção que daria para levantar do chão 10
estádios da Luz, e que ainda assim parece barato quando comparado com o rei do
esbanjamento, o americano SoFi Stadium, orçamentado no valor de 35
(trinta-e-cinco!) recintos iguais ao utilizado pelo Benfica. Em princípio vamos
vê-lo em L.A. 2028, mas, como se trata de um investimento privado, talvez não
dê origem a demasiada contestação. Semelhante sossego também se sentiu em
Pequim 2008, não por falta de estrondoso dispêndio público, mas eventualmente
por falta de paciência das autoridades para níveis de ruído acima dos 30
decibéis de um murmúrio. O Estádio “Ninho de Pássaro”, esse, custou menos de
500 milhões de dólares, o que até parece pouco para essa soberba floresta de
aço saída da imaginação da prestigiada dupla Herzog & de Meuron com a consultoria
do artista Ai Weiwei, entretanto caído em desgraça junto do governo chinês,
arriscando virar Wei AiAi, e que lamenta agora ter participado no projecto,
actualmente um “elefante branco” com pouca utilidade prática, embora tão bonito
e espectacular que se transformou numa atracção turística capaz de mobilizar
milhões de visitantes por ano.
Foi
talvez por falta de amor a essa espécie animal da família dos esbanjadoris
maximus que a organização de Barcelona 92, um projecto maturado durante
mais de meio século, aplicou todos os seus neurónios no desenvolvimento de um
modelo diferente, desde essa altura utilizado pelo COI para responder aos
múltiplos ataques de que é alvo por parte dos inúmeros críticos dos megaeventos
em geral e das operações olímpicas em particular. Há certamente algum exagero
nos elogios dirigidos à capital catalã, que também recorreu ao habitual esquema
da suborçamentação prévia seguida de derrapagens póstumas, bem como a uma
distribuição não equitativa dos benefícios do acontecimento. Ainda assim, tudo
pesado e medido, parece ter sido de facto uma oportunidade devidamente
aproveitada para melhorar a cidade no seu conjunto, da “criação” de uma imensa
frente de praia à demolição de instalações industriais abandonadas, da
renovação do sistema de transportes à limpeza de rios e construção de modernos
sistemas de esgotos. Legado patrimonial relevante inaugurado propositadamente
para as competições, talvez apenas o Palau Sant Jordi, uma arena multiúso
desenhada pelo japonês Arata Isozaki, discípulo de Kenzo Tange e vencedor, tal
como o seu mestre, do prémio Pritzker. Quanto ao resto da herança, sobressai a subida
galopante de Barcelona nos rankings internacionais de turismo, para
alegria de muitos e tristeza de outros tantos.
Considerados
por várias personalidades como “os melhores de sempre”, os J.O. de 1992 não
conseguiram reter esse título por muito tempo, não por culpa própria,
sublinhe-se, mas devido à volatilidade do elogio, sempre pronto a voar, na
companhia dos figurões olímpicos, para as edições seguintes. Foi assim que em
Sydney, oito anos volvidos, Juan Antonio Samaranch, Presidente do COI,
presenteou os australianos com o mesmo estribilho, num discurso que só foi bem
recebido pelos locais porque estes o ouviram antes da conta de vários milhares
de milhões de dólares ter chegado às suas casas na forma de impostos.
Pentatlo
das Musas
Nas
edições olímpicas da primeira metade do século XX, além dos prémios
desportivos, eram também atribuídas medalhas a quem se destacava no mundo das
artes, fosse na literatura e na música, fosse na pintura, escultura ou
arquitectura. A manter-se essa extraordinária competição, Jørn Utzon, que
desenhou a Ópera de Sydney, teria certamente ganho uma medalha de ouro na
década de 70, quando essa obra foi inaugurada, isto apesar do seu custo
astronómico, do atraso de 10 anos na construção, e da derrapagem orçamental de
1400%. Em certo sentido, podemos especular que não foi o despesismo olímpico
que irritou os contribuintes da Austrália no ano 2000, mas sim o facto de esse
despesismo, ao contrário do que aconteceu com a Ópera de Utzon, não se ter
traduzido em algo que suscitasse espanto e deslumbramento por muito tempo, eventualmente
para sempre. Nos campos charmosos das Inutilidades Magníficas, há pouco
adubo disponível para o crescimento da exaustão fiscal.
A
publicação em Portugal do livro Jogos de Poder, do investigador e
ex-atleta olímpico Jules Boykoff (edição Zigurate, 2024), é apenas o mais
recente capítulo de uma longa lista de denúncias sobre o problemático universo
das Olimpíadas, nomeadamente ao nível dos muitos “elefantes brancos” deixados
em herança às cidades organizadoras. Mas se agora tendemos – e bem! – a olhar
com desconfiança o fenómeno dos Jogos, mais importante se torna sublinhar duas
coisas: nem só de albinos se fez este reino de paquidermes, e de quando em
quando, estranhamente ou talvez não, até esses dispendiosos exemplares da cor
da neve conseguem a proeza de nos encantar.
Sérgio
Barreto Costa
*
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia
Sem comentários:
Enviar um comentário