segunda-feira, 29 de julho de 2024

Uma noveleta sublime, publicada debaixo do fogo da crítica.

 


 

Digamos que se trata de uma obra póstuma do Prémio Nobel da Literatura em 1982, que os filhos de Gabriel García Márquez justificam como o seu derradeiro esforço para continuar a criar já no turbilhão da perda de memória. “O processo foi uma corrida entre o perfecionismo do artista e o declínio das suas faculdades mentais.” Gabriel García Márquez terá dito que o livro não prestava, devia ser destruído. “Não o destruímos, deixando-o antes de parte, na esperança de que o tempo decidisse o que fazer com ele. Ao lê-lo mais uma vez, passados quase dez anos sobre a sua morte, descobrimos que o texto possuía muitíssimos e muitos apreciáveis méritos. Tem algumas lacunas e pequenas contradições, mas nada que nos impeça de usufruir o que a obra de Gabo tem de mais excelente: a sua capacidade de invenção, a poesia da língua, a narrativa cativante, a sua compreensão do ser humano e o carinho pelas suas vivências e as suas desventuras sobretudo no amor.” E assim a obra foi entregue a um mestre da escrita, Cristóbal Pera, que lhe deu a demão final. A crítica dividiu-se entre o aplauso e a indignação, dizendo os contestatários que era uma traição à vontade de Gabo.

Traição ou não, temos uma noveleta cujo poder metafórico conhece alguns antecedentes de valor extraordinário. Penso concretamente em A Incrível e Triste História da Cândida Eréndira e da Sua Avó Desalmada e Memórias das Minhas Putas Tristes, tramas que decorrem entre o onírico, a bestialidade/crueldade e a redenção pelo amor. No caso vertente de Vemo-nos em Agosto, Publicações D. Quixote, 2024, é mais o destino de uma mulher que conta; ano após ano, num dia preciso, 16 de agosto, apanha um ferry que a transporta até à ilha onde a mãe está enterrada, é uma emotiva visita que mete até confissão oral dos acontecimentos do ano transato. A mulher, Ana Magdalena Bach torna-se uma pessoa diferente durante uma noite por ano, finda a visita ao túmulo da mãe contempla os homens do bar do hotel, como se estivesse a proceder a uma seleção, haverá sempre um amante. E seremos integrados nessa galeria de noites caribenhas repletas de salsa e boleros, encontros extravagantes ou não tanto, até que num determinado mês de agosto haverá uma reviravolta nos acontecimentos, jamais saberemos o que virá a ser o seu velho normal ou o seu novo normal.

As descrições são as de uma inevitável beleza a que Gabo nos habituou. Falando da chegada de Ana Magdalena e na cerimónia da mudança entre a mulher casada e feliz e essa vontade irresistível de querer ser diferente naquela noite a caracterização da personagem é ímpar: “Escovou o cabelo índio, que lhe dava pelos ombros, e amarrou o rabo-de-cavalo com o lenço de pássaros. Para terminar, suavizou os lábios com batom de vaselina simples, humedeceu os indicadores na língua para alisar as sobrancelhas desencontradas, pôs um toque de Maderas de Oriente atrás de cada orelha e enfrentou, por fim, o espelho com o seu rosto de mãe outonal. A pele sem o rasto de cosméticos tinha a cor e a textura do melaço, e os olhos de topázio eram bonitos, com as suas escuras pálpebras portuguesas. Triturou-se a fundo, julgou-se sem piedade e achou-se quase tão bem como se sentia.”

É um desfile de inspiração esta sucessão de encontros: um homem distinto, vestia de linho branco, com o cabelo metálico, logo o primeiro, depois de muito folgarem, ela parte e descobre com horror que ele lhe deixara uma nota de vinte dólares, Ana Magdalena sente-se desfeiteada; somos introduzidos no meio familiar, marido músico, filho músico, e de música clássica, e há a filha, Micaela, uma desobediente encantadora, irá professar numa ordem religiosa. Sempre que ela volta da ilha, o marido nota diferenças, é assunto de atenção passageira. Regresso à ilha, ela procura o biltre que ele vendera com a nota de vinte dólares, desta feita surge um homem muito bonito, de pele lívida, olhos ardentes, indumentado com um smoking tropical de seda crua, muito mais novo do que ela, trocam galantarias (- Sabe que idade tenho? – Não posso imaginar que a senhora tenha uma idade – disse ele. – Só a que a senhora quiser.); García Márquez é um perito distinto em impedir sequências enfadonhas, na terceira viagem à ilha, ela escolhe um hotel de cabanas rústicas num bosque de amendoeiras, apareceu-lhe a fazer tagatés Aquiles Coronado, a quem Ana Magdalena nunca deu atenção, repudia-o secamente, e o genial escritor tem uma página inesperada sobre a solidão daquela mulher:

“Quando recuperou o humor passava da meia-noite. Doía-lhe a cabeça, mas doía-lhe mais ter perdido a sua noite. Arranjou-se um pouco e desceu, disposta a recuperá-la. Tomou um gin com soda num tamborete do bar frente ao jardim abandonado pelos turistas madrugadores. Chegou um hermafrodita de músculos artificiais com correntes e pulseiras de ouro, cabelo dourado e a pele avermelhada com unguentes para o Sol. Tomou ao balcão uma bebida fosforescente. Ela perguntou a si mesma se seria capaz de se insinuar ao empregado do bar, que era jovem e bem proporcionado, e respondeu a si própria que não. Chegou a interrogar-se sobre se seria capaz de sair par a rua e mandar parar automóveis até encontrar alguém que lhe fizesse o favor de seu gosto, e a resposta foi a mesma: não. Perder a noite era perder um ano, mas eram três da madrugada e não havia remédio: perdera-o.”

Retornamos ao ambiente familiar, diálogos soberbos com o marido. E voltamos a 16 de agosto, ela volta ao hotel do costume, renovado, e dá-se a relação mais improvável que alguma vez supusera. “Tinha a parcimónia de um reitor magnífico, uma voz pausada e mansa e um talento espantoso para os impropérios galantes.” Ele convida-a para um restaurante fora dos poisos do turismo, homem sóbrio, contador de anedotas simples, iniciam as preliminares, ele pergunta-lhe o nome, ela improvisa: Perpétua, resposta pronta do novo amante: “É uma pobre santa que morreu espezinhada por uma vaca.” Surpreendida ela pergunta como o sabia, placidamente ele responde que é bispo, ela parte precipitadamente, pretextou que não queria perder o ferry. E entramos no clímax da noveleta, os filhos a fazer a sua vida, o marido na rotina, ela com uma certa saudade daquele bispo, volta à ilha, “Diante da sepultura da mãe sofreu uma comoção porque encontrou um promontório inusitado de flores apodrecidas pelas chuvas.” Perguntou ao guarda quem as tinha posto, resposta: o senhor de sempre. E aqui sim, há uma pitada de realismo mágico, na tenda de um mágico ambulante perguntou por brincadeira onde estava o homem da sua vida, veio a resposta, o mágico trouxe-lhe uma imprecisão certeira: nem tão perto como quererias nem tão longe como julgas. O último encontro é um perfeito desencontro, ele bem bate à porta do quarto e ela adormece chorando de raiva. E o final tem um peso metafórico avassalador.

A despeito dos ditos de traição, temos aqui Gabu e o seu estilo inconfundível, Gabo podia estar demente mas deixou-nos este belo hino à vida finda a vindima.

 

 

Mário Beja Santos





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