Digamos
que se trata de uma obra póstuma do Prémio Nobel da Literatura em 1982, que os
filhos de Gabriel García Márquez justificam como o seu derradeiro esforço para continuar
a criar já no turbilhão da perda de memória. “O processo foi uma corrida entre
o perfecionismo do artista e o declínio das suas faculdades mentais.” Gabriel
García Márquez terá dito que o livro não prestava, devia ser destruído. “Não o
destruímos, deixando-o antes de parte, na esperança de que o tempo decidisse o
que fazer com ele. Ao lê-lo mais uma vez, passados quase dez anos sobre a sua
morte, descobrimos que o texto possuía muitíssimos e muitos apreciáveis
méritos. Tem algumas lacunas e pequenas contradições, mas nada que nos impeça
de usufruir o que a obra de Gabo tem de mais excelente: a sua capacidade de
invenção, a poesia da língua, a narrativa cativante, a sua compreensão do ser
humano e o carinho pelas suas vivências e as suas desventuras sobretudo no
amor.” E assim a obra foi entregue a um mestre da escrita, Cristóbal Pera, que
lhe deu a demão final. A crítica dividiu-se entre o aplauso e a indignação,
dizendo os contestatários que era uma traição à vontade de Gabo.
Traição
ou não, temos uma noveleta cujo poder metafórico conhece alguns antecedentes de
valor extraordinário. Penso concretamente em A Incrível e Triste História da
Cândida Eréndira e da Sua Avó Desalmada e Memórias das Minhas Putas
Tristes, tramas que decorrem entre o onírico, a bestialidade/crueldade e a
redenção pelo amor. No caso vertente de Vemo-nos em Agosto, Publicações
D. Quixote, 2024, é mais o destino de uma mulher que conta; ano após ano, num
dia preciso, 16 de agosto, apanha um ferry que a transporta até à ilha onde a
mãe está enterrada, é uma emotiva visita que mete até confissão oral dos
acontecimentos do ano transato. A mulher, Ana Magdalena Bach torna-se uma
pessoa diferente durante uma noite por ano, finda a visita ao túmulo da mãe
contempla os homens do bar do hotel, como se estivesse a proceder a uma
seleção, haverá sempre um amante. E seremos integrados nessa galeria de noites
caribenhas repletas de salsa e boleros, encontros extravagantes ou não tanto,
até que num determinado mês de agosto haverá uma reviravolta nos
acontecimentos, jamais saberemos o que virá a ser o seu velho normal ou o seu
novo normal.
As
descrições são as de uma inevitável beleza a que Gabo nos habituou. Falando da
chegada de Ana Magdalena e na cerimónia da mudança entre a mulher casada e
feliz e essa vontade irresistível de querer ser diferente naquela noite a
caracterização da personagem é ímpar: “Escovou o cabelo índio, que lhe dava
pelos ombros, e amarrou o rabo-de-cavalo com o lenço de pássaros. Para
terminar, suavizou os lábios com batom de vaselina simples, humedeceu os
indicadores na língua para alisar as sobrancelhas desencontradas, pôs um toque
de Maderas de Oriente atrás de cada orelha e enfrentou, por fim, o espelho com
o seu rosto de mãe outonal. A pele sem o rasto de cosméticos tinha a cor e a
textura do melaço, e os olhos de topázio eram bonitos, com as suas escuras
pálpebras portuguesas. Triturou-se a fundo, julgou-se sem piedade e achou-se
quase tão bem como se sentia.”
É
um desfile de inspiração esta sucessão de encontros: um homem distinto, vestia
de linho branco, com o cabelo metálico, logo o primeiro, depois de muito
folgarem, ela parte e descobre com horror que ele lhe deixara uma nota de vinte
dólares, Ana Magdalena sente-se desfeiteada; somos introduzidos no meio
familiar, marido músico, filho músico, e de música clássica, e há a filha,
Micaela, uma desobediente encantadora, irá professar numa ordem religiosa.
Sempre que ela volta da ilha, o marido nota diferenças, é assunto de atenção
passageira. Regresso à ilha, ela procura o biltre que ele vendera com a nota de
vinte dólares, desta feita surge um homem muito bonito, de pele lívida, olhos
ardentes, indumentado com um smoking tropical de seda crua, muito mais novo do
que ela, trocam galantarias (- Sabe que idade tenho? – Não posso imaginar que a
senhora tenha uma idade – disse ele. – Só a que a senhora quiser.); García
Márquez é um perito distinto em impedir sequências enfadonhas, na terceira
viagem à ilha, ela escolhe um hotel de cabanas rústicas num bosque de
amendoeiras, apareceu-lhe a fazer tagatés Aquiles Coronado, a quem Ana
Magdalena nunca deu atenção, repudia-o secamente, e o genial escritor tem uma
página inesperada sobre a solidão daquela mulher:
“Quando
recuperou o humor passava da meia-noite. Doía-lhe a cabeça, mas doía-lhe mais
ter perdido a sua noite. Arranjou-se um pouco e desceu, disposta a recuperá-la.
Tomou um gin com soda num tamborete do bar frente ao jardim abandonado pelos
turistas madrugadores. Chegou um hermafrodita de músculos artificiais com
correntes e pulseiras de ouro, cabelo dourado e a pele avermelhada com
unguentes para o Sol. Tomou ao balcão uma bebida fosforescente. Ela perguntou a
si mesma se seria capaz de se insinuar ao empregado do bar, que era jovem e bem
proporcionado, e respondeu a si própria que não. Chegou a interrogar-se sobre
se seria capaz de sair par a rua e mandar parar automóveis até encontrar alguém
que lhe fizesse o favor de seu gosto, e a resposta foi a mesma: não. Perder a
noite era perder um ano, mas eram três da madrugada e não havia remédio:
perdera-o.”
Retornamos
ao ambiente familiar, diálogos soberbos com o marido. E voltamos a 16 de
agosto, ela volta ao hotel do costume, renovado, e dá-se a relação mais
improvável que alguma vez supusera. “Tinha a parcimónia de um reitor magnífico,
uma voz pausada e mansa e um talento espantoso para os impropérios galantes.”
Ele convida-a para um restaurante fora dos poisos do turismo, homem sóbrio,
contador de anedotas simples, iniciam as preliminares, ele pergunta-lhe o nome,
ela improvisa: Perpétua, resposta pronta do novo amante: “É uma pobre santa que
morreu espezinhada por uma vaca.” Surpreendida ela pergunta como o sabia,
placidamente ele responde que é bispo, ela parte precipitadamente, pretextou
que não queria perder o ferry. E entramos no clímax da noveleta, os filhos a
fazer a sua vida, o marido na rotina, ela com uma certa saudade daquele bispo,
volta à ilha, “Diante da sepultura da mãe sofreu uma comoção porque encontrou
um promontório inusitado de flores apodrecidas pelas chuvas.” Perguntou ao
guarda quem as tinha posto, resposta: o senhor de sempre. E aqui sim, há uma
pitada de realismo mágico, na tenda de um mágico ambulante perguntou por
brincadeira onde estava o homem da sua vida, veio a resposta, o mágico
trouxe-lhe uma imprecisão certeira: nem tão perto como quererias nem tão longe
como julgas. O último encontro é um perfeito desencontro, ele bem bate à porta
do quarto e ela adormece chorando de raiva. E o final tem um peso metafórico
avassalador.
A
despeito dos ditos de traição, temos aqui Gabu e o seu estilo inconfundível,
Gabo podia estar demente mas deixou-nos este belo hino à vida finda a vindima.
Mário
Beja Santos
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