Para assinalar um ano passado sobre o dia 7 de Outubro de 2023
Arbeit macht frei – anus mundi
O trabalho é uma negação da natureza. Os
produtos naturais seguem um curso autónomo e determinado de antemão, nascem,
crescem reproduzem e morrem cumprindo a lei da espécie ínsita em cada
indivíduo. O seu metabolismo no ambiente não ultrapassa nunca o que lhe está
prescrito por essa lei; os seus fins são inseparáveis dessa lei. Na natureza, o
tempo é apenas o elemento homogéneo onde se desenrola o processo natural. É
como que o genuíno sujeito da natureza.
Enquanto specificum humano, o trabalho nega a lei
específica da natureza, a autonomia dos produtos naturais impondo-lhe
finalidades humanas. O processo de artificialização escapa, desse modo, ao
império do tempo. Uma árvore
desenvolve-se como árvore e nunca será nada mais do que uma árvore. Não tem a
possibilidade de ser outra coisa. Vista como madeira, pode ser transformada em
cadeira, mesa ou até lenha para uma lareira. O trabalho arranca a natureza da
sua posição de sujeito e torna-a objecto humano. E fá-lo precisamente por uma
inversão do tempo. O produto natural deixa de ser um passivum do tempo e
passa a ser, enquanto objecto negado, um activum do tempo. E esse
tempo é o tempo humano. No trabalho, o homem torna-se senhor do tempo. Nessa
posse, a objetivação da natureza externa está em acção recíproca com a
objetivação da natureza interna. A transformação do produto natural exige uma
modificação da natureza interna. Cozinhar os alimentos implica a
suspensão da vinculatividade do instinto natural, essa razão alheia no animal,
o adiamento da satisfação da necessidade natural. No trabalho, o estímulo da
natureza exterior e o estímulo da natureza interna perderam o seu poder, já não
conseguem determinar no homem a eterna repetição do ciclo natural. O trabalho
libertou o homem do tempo. Os fins são seus, não da natureza. O trabalho
liberta.
O nacional-socialismo submeteu esta
velha tradição intelectual, vigorosa na Alemanha, maxime em Hegel, a uma
reinterpretação. Inscrevê-la como máxima no portão de entrada de Auschwitz dá
disso testemunho. O que era vida humana há-se de se tornar morte humana. O
trabalho no processo de extermínio é o trabalho da morte, não visa impor fins
humanos a um material natural. Pelo contrário, a morte no Lager exigia a
redução prévia dos humanos a material, o que significa subtrair ao homem a sua
disposição de possibilidades. Reintegrava as suas vítimas no processo do tempo
natural e, desse modo, a morte deixava de ser morte de homem a homem. No Lager,
o judeu pagava a exorbitância de um Deus criador que desencantou a natureza. E
tal como a vítima era reduzida a material também o carrasco pretendia ser a voz
oprimida de uma natureza que se vingava, e, nesse passo, reservava para si a
atividade insigne da passividade – o poder da
imanência absoluta, que se revela na excrescência do mal absoluto. As chaminés
dos crematórios expelem os excrementos da digestão purificadora do mundo – anus mundi. É esse o
trabalho sem finalidade exterior que se revolve eternamente sobre si mesmo.
Hoje regressa esse antigo pesadelo,
quando se pretende deduzir o trabalho de identidades naturais, difamando como
traição a autonomia das possibilidades, substituindo de maneira tão
escandalosamente semelhante o Blut und Boden por aquelas. O trabalho
volta a ser o poder imanente fechado em si, sem promessa. Que as identidades se
juntem a algum islamismo contra Israel não surpreende. Entre as falsas
equivalências, uma há que é das mais perniciosas, a saber, a de que a origem
comum das três religiões implica uma compreensão teológica comum. Na tradição
judaica e cristã, o milagre é sempre operado em favor do homem, nunca como
exibição do poder absoluto de um Deus que se regozija nesse absoluto perante a
criatura débil; no Corão verifica-se frequentemente o contrário. Esse poder sem
exterior conjuga-se muito bem com renaturalização das identidades como código
inescapável. A eliminação de Israel e dos judeus presente hoje nos protestos
contra Israel – Gas the jews! – visa a eliminação do testemunho de que o homem, ele e só
ele, responde perante si mesmo pelo que de si fizer, pelo seu tempo. A velha
história do rabi que não abandona as suas tarefas quando lhe anunciam a
presença do Messias confirma essa responsabilidade indeclinável.
Politicamente, a democracia não pode deixar de constituir o inimigo por excelência desse funesto consórcio ideológico. Nela, o lugar do poder está vazio por natureza, tal como por natureza o seu tempo é o tempo da decisão humana responsável perante si mesma. É-lhe consubstancial o ónus da decisão, e a felicidade e infelicidade que lhe estão associadas e que põem em marcha o seu trabalho sobre si mesma, trabalho que não elimina o poder-ser humano, mas, pelo contrário, o mantém sempre aberto. De certa maneira, nela, como no judaísmo, nasce o mundo.
João Tiago Proença
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