sexta-feira, 11 de outubro de 2024

No cinzel de uma obra-prima literária as memórias de uma guerra que não se apagam.

 



A Selva Dentro de Casa, por Possidónio Cachapa, Publicações Dom Quixote, 2024, está muito longe de ser destinado só a antigos combatentes, é uma recordatória para um país inteiro do legado de uma guerra colonial, tal como o autor escreve em primorosa dedicatória:

“Este livro é dedicado a todos aqueles que adormeceram para sempre, entre palmeiras distantes, imaginadas por nós a preto-e-branco, e que nunca pediram para ver.

E para os que regressaram pela selva dentro. A que nunca chegou a ser deles. A selva escura. Tão sombria que não conseguirão falar dela até ao fim. A floresta que como um sonho se fecha e afasta quando se evoca o seu nome. Que parte das coisas que eles não conseguiram dizer, aos filhos e às mulheres, porque não há palavras para descrever o Inferno possam, finalmente, surgir à luz.

Mas, também, a todos os homens, mulheres e crianças que ao mesmo tempo viviam uma outra guerra dentro das suas casas. Que essa criança interior encontre finalmente a paz.”

Trata-se de uma tentativa vitoriosa de trazer à consciência de um povo o que se terá passado na vida daqueles milhares de jovens que saíram de casa para ter um arremedo de preparação bélica, metidos depois no meio do transporte mais rápido ou mais vagaroso para saltar de continente e cair no local ensombrado pela multiplicidade de violências e horrores que uma guerra pode oferecer. Sou levado a supor que há um certo pendor autobiográfico nesta criança – narrador, o sobrinho do Quim, aquele menino tão amado pelo seu tio, a viver algures numa fundura alentejana vai-nos desenvencilhando protagonistas que parecem ter carne viva, tal a corrente elétrica imposta pela narrativa, a mãe, a tia Lurdes, logo na entrada, a poderosa descrição do lugar e do tempo:

“Durante todos os anos da minha infância, os meses avançaram da mesma maneira: a noite que chegava mais cedo e o caminho penoso para a escola que odiávamos; o Inverno que vinha tão gelado arrefecia tudo em que tocávamos e nem sacos de água quente nos salvavam de tremer, quando se entrava nos lençóis; o aparecimento das primeiras flores lilases e que depois quase desapareciam, debaixo de uma onda de verde e de odores que enlouqueciam de calor.

E, finalmente, o começo do Verão (…) O Verão era a coisa mais importante das nossas vidas.”

É a comunicação fulgente, funcional, de fácil entendimento que nos cativa logo e nos leva de cambulhada até ao final da história. O tio leva o menino às festas, o menino vai à escola e vão se interpolando os episódios do Quim na tropa, o sobrinho na sua fundura alentejana, a tropa passa por Luanda, o pai do menino reaparece, não é propriamente pai é progenitor, o Quim chega a Moçambique, andam todos de olhos arregalados a ver o Lourenço Marques, o menino brinca aos índios e aos cowboys, lá na guerra o Quim chama-se o Cachopas, extraem as amígdalas ao sobrinho, a mãe e a tia Lurdes sempre presentes. Lá na guerra Quim descobre o sexo com a Celina (que na verdade se chamava Salima), a guerra manifesta-se, o Casinhas foi atingido e morreu e o Quim irá lembrar-se muitas vezes desta primeira morte, de ter visto um corpo conhecido a dançar, crivado de balas, e a memória crispou-se de não ter sentido uma dor imediata.

Na fundura alentejana a vida prossegue com a sua miséria remediada, a certa altura o menino não resistirá a, às escondidas, ir abrir uma caixa de madeira que a mãe tem escondida e tirar uns cobres para comprar uns doces. O Quim já está a viver na selva adentro, surge-lhe um bálsamo, uma improvável madrinha de guerra, a Susanita, irmã do Zé Carriço. A mãe do menino mudou de emprego, faz limpezas numa pequena fábrica têxtil, recolhe os restos de tecido que caem das máquinas e ao fim do dia lava o chão, as duas casas de banho, traz para casa um ordenado de sobrevivência. A mãe descobre que o menino a rouba, temos pancadaria com o cinto, foi acontecimento decisivo. “O coração com que amara a minha mãe estava agora fechado numa caixa de madeira invisível, cuja chave não voltou a aparecer.”

Na selva adentro, já se fazem operações ditas de limpeza, varre-se tudo a eito, poupavam-se as mulheres que tinham os filhos no colo, mas não as que vinham aos gritos em direção à tropa, as aldeias são incendiadas ao lança-chamas. O soldado Valverde fora morto durante a refrega, apareceu com a garganta cortada e o oficial vingou-se, deu um tiro na cabeça de um jovem, a coluna regressa ao quartel com aqueles que não morreram durante a operação de limpeza. O pai reapareceu, voltou a haver discussão, pediu oficialmente a separação, queria refazer a vida. Deixou duas notas de conto. O menino ama o seu lugar no mundo, quando o seu amigo Bento voltou para os campos lhe disse para olhar as flores roxas, sinal de que vinha aí a primavera, foi o êxtase, gritavam de alegria, vinha a caminho a renovação da vida.

A Susanita escreve ao Quim: “Quando voltares hás de trazer-me um corno de elefante para meter na parede do meu quarto.” E na mesma carta mandou uma fotografia. “Não era uma beleza mas tinha o cabelo bem penteado preso numa fita, e com um sorriso artificial. Quim gostou.” A tropa delira ao ver aquelas manadas de elefante. A Susanita já se apresenta naquela fundura alentejana como a namorada do tio, vai enunciado à família o que o Quim manda nos aerogramas, que quando voltar quer ir aprender para eletricistas, está farto de carregar baldes de massa. O pai reaparece, deixa dinheiro para umas botas novas. A comissão do Quim caminha para o fim, escreve à mãe de Furancungo, parece que vão para Lourenço Marques. É neste patamar da narrativa que Possidónio Cachapa tem um golpe de asa, numa operação Quim pensa que vai morrer, tudo porque uma manga, uma cobra de picada mortal se enrosca numa perna, então o narrador introduz Mankumpete, o menino que nasceu na beira do lago Chiwa, foi obrigado a alistar-se na FRELIMO, vai ter um papel decisivo na vida do Quim, são algumas das melhores páginas desta obra tão esplendente, o tio volta da guerra, é já um outro homem, o amor pelo sobrinho não desfaleceu, mas precisa de muito álcool, na taberna fala-se muito da guerra, o Quim pede ao sobrinho para ir ter com a tia Susanita e o parágrafo final é um dos mais belos exercícios da pirotecnia:

“O Sol ainda estava alto e a luz fazia doer um pouco os olhos, atirava contra as paredes brancas da vila. O mês de abril, no Alentejo, às vezes, vinha assim, a anunciar um bom tempo que poderia chegar ou não. Das pedras da calçada, as ervas infestantes surgiam por todo o lado. Só lá iriam com napalm.

Os meus pés caminharam por esse verde misturado com rocha calcária e, por um instante, deixei de saber onde estava. Uma tontura apossara-se de mim com o calor, e temi cair. Da minha névoa ora branca ora verde, pensei sentir alguma cosia rastejar até junto do meu corpo. E, sem abrir os olhos, reconheci um aperto pela perna acima, enquanto os sons desapareciam, reduzindo-se a uma espécie de silvo.”

A ternura deste sobrinho e a selva dentro do Quim catapultam este romance para a nossa melhor literatura. 


                                                                                    Mário Beja Santos


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