Antes
de se tornar no Papa do existencialismo, em grande romancista e dramaturgo,
teatrólogo brilhante, ativista de grandes causas, Jean-Paul Sartre foi criança,
teve uma infância marcante, viveu num ambiente familiar tratado com desvelo e
atribui àquela atmosfera de livros o gosto em tornar as palavras que leu na sua
própria escrita. As Palavras, romance autobiográfico dado à estampa
poucos meses antes de lhe ser atribuído o Prémio Nobel da Literatura, é esse
estupendo exercício.
Escavando
a memória, libertando recordações, vai dar-nos essencialmente o que foi a sua
infância no meio dos livros, no recato do meio familiar e como a leitura lhe
definiu o modo de escrever, na pessoa em que se transformou. Dirá mesmo que
“comecei a minha vida como provavelmente a irei terminar: no meio dos livros”.
E adianta: “No escritório do meu avô, havia-os por toda a parte; era proibido
limpar-lhes o pó, exceto uma vez por ano. Ainda não sabia ler e já reverenciava
essas pedras erigidas; direitas ou inclinadas, robustas como tijolos nas
estantes da biblioteca ou nobremente espaçadas em áleas de menires, sentia que
a prosperidade da família dependia delas. Tocava-lhes às escondidas para honrar
as minhas mãos com a sua poeira, mas não sabia bem o que fazer delas e todos os
dias assistia a cerimónias cujo sentido me escapava: o meu avô – normalmente
tão desajeitado que a minha mãe lhe abotoava as luvas – manuseava esses objetos
culturais com uma destreza de oficiante. Vi-o mil vezes levantar com um ar ausente,
dar a volta à mesa, atravessar a divisão em duas passadas, pegar num volume sem
hesitar, sem se dar tempo de o escolher, folheá-lo ao voltar para a poltrona,
com um movimento combinado do polegar e do indicador.”
Muito
se fala da Alsácia Lorena, o avô domina fluentemente o alemão e o francês. A
biblioteca é volumosa, a vida social era fluente, como Sartre observa:
“Frequentávamos pessoas ponderadas que falavam alto e com clareza, baseavam as
suas certezas em princípios sãos, na sageza das nações, e não desdenhavam
distinguir-se do comum apenas por um certo maneirismo da alma, ao qual eu
estava perfeitamente habituado. As visitas despediam-se, eu ficava sozinho,
evadia-me desse cemitério banal, ia juntar-me à vida, à loucura dos livros.
Bastava-me abrir um para nele redescobrir esse pensamento inumano, inquieto,
cujas pompas e trevas ultrapassavam o meu entendimento, que saltava de ideia em
ideia, cem vezes por página, e eu deixava-o seguir, atordoado, perdido.”
Para
gozar na plenitude As Palavras, de Jean-Paul Sartre, Livros do Brasil,
2024, é preciso aceitar este passeio na memória até uma biblioteca do início do
século XX, dela extrair a formação de uma mentalidade, a descoberta de que foi
nesta infusão de leituras que nasceu o prazer da escrita. O menino Sartre é
puxado pela mãe e pelo avô, da leitura que hoje se designa por infato-juvenil,
um autêntico mundo de aventuras, a estudar em casa é depois inscrito no liceu
onde se descobre que era demasiado avançado para a sua idade. Vai olhando à
volta os adultos da sua família, confessa que e o seu corpo formavam um
estranho casal, é educado no catolicismo até que a fé, um dia, se esvaiu. Teve
as suas doenças e foi mimado nas suas convalescenças. Deus o angustia, e Dele
passa a descrer: “Se Deus me livrasse das aflições, eu teria sido uma
obra-prima assinada; seguro da minha parte no concerto universal, teria
aguardado pacientemente que Ele me revelasse os seus desígnios e a minha
necessidade. Eu pressentia a religião, aguardava-a, era o remédio. Se me a
tivessem recusado, eu próprio a teria inventado. Que não ma recusassem: educado
na fé católica, apreendi que o Todo-Poderoso me criara para a Sua glória: era
mais do que aquilo que eu ousaria sonhar.”
Educado
nesta atmosfera de gente cumpridora dos preceitos culturais burgueses, vai-nos
deixando registos esplendentes desta sociedade antes da Primeira Guerra
Mundial. O teatro, por exemplo:
“Os
burgueses do século passado nunca se esqueceram do seu primeiro serão no teatro
e os seus escritores encarregaram-se de nos relatar as circunstâncias. Quando o
pano subiu, as crianças julgaram-se na corte. Os ouros e as púrpuras, as luzes,
as pinturas, a ênfase e os artifícios punham algo de sagrado até no crime; no
palco, viram ressuscitar a nobreza que os seus avós haviam assassinado. Nos
entreatos, a estratificação das galerias oferecia-lhes a imagem da sociedade;
foram-lhes mostrados, nos camarotes, ombros nus e nobres vivos.“
Aprendeu
a ler, sente-se um beneficiário do amor familiar, é nisto que, surdamente, o
vai minando a epopeia da escrita. A segunda parte de As Palavras é em si
própria a génese da sua aventura na escrita, ele vai descrevendo as
sinuosidades em todas estas tentativas dos seus queridos juvenis, a mãe
orgulhosa com estes primeiros escritos, o avô mais cético. Em retrospetiva, faz
a sua confissão:
“Há
alguns anos, fizeram-me notar as personagens das minhas peças e dos meus
romances tomam as suas decisões bruscamente e em crise, que basta um instante,
por exemplo, para que o Orestes das Moscas conclua a sua conversão. Sem
dúvida: é que os faço à minha imagem; provavelmente, não tal como sou, mas tal
como quis ser (…) À falta de me amar, fugi para a frente; resultado: amo-me
ainda menos, essa inexorável progressão desqualifica-me incessantemente aos
meus olhos; ontem, agi mal, visto que era ontem, e hoje pressinto o julgamento
severo que farei incidir sobre mim amanhã.”
E
dá-nos uma despedida que é a sua assumida condição humana posta em palavras:
“Durante
muito tempo, considerei a pena como uma espada, agora conheço a nossa
impotência. Não importa: faço, farei livros; é preciso que o faça; servem para
alguma coisa, apesar de tudo. A cultura não salva nada nem ninguém, não
justifica. Mas é um produto do homem: este projeta-se nela, reconhece-se nela;
apenas esse espelho crítico lhe oferece a sua imagem (…) Lancei-me por inteiro
à obra para me salvar por inteiro. Se arrumo a impossível Salvação no armazém,
que resta? Um homem inteiro, feito de todos os homens que vale por todos eles,
e por quem valem todos os outros.”
Um monumento autobiográfico no topo da grandeza da escrita.
Mário Beja Santos
Foi o primeiro livro de Sartre que li ainda na adolescência, numa edição da Unibolso, depois vieram outros, mas foi esta obra que me deu a conhecer o filósofo francês, depois li a espantosa biografia que Annie Cohen-Solal lhe dedicou.
ResponderEliminarMuito boa tarde!