Jeremy Irons e Diana Quick, Brideshead Revisited (1981)
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Havia
uma estação de comboio em Madresfield. Muitas vezes, Mary Lygon foi aí buscar
Evelyn Waugh, trazendo-o para a casa antiga, velha de oito séculos.
Na estrada para Madresfield Court,
talvez um dia – quem sabe? – Mary tenha pedido a Evelyn que lhe acendesse um
cigarro. Como Julia Flyte a caminho de Brideshead. «Era a primeira vez na vida
que alguém me pedia isto e, quando tirei o cigarro na minha boca e o pus na
sua, soltei um ligeiro grito de apelo à sexualidade inaudível para qualquer
pessoa, excepto para mim», confessará Charles Ryder em Brideshead Revisited.
No
início de 1944, o capitão Evelyn Arthr St. John Waugh chegara à meia-idade e, como sempre sucede nessas
alturas da vida, enfrentava a dor corrosiva das escolhas irreversíveis, das
opções sentidas como definitivas, mesmo que possam não sê-lo. «Morrera o amor
entre mim e o Exército», diz o capitão Charles Ryder logo na primeira página de
Brideshead.
Evelyn
pressentia que, se escolhesse a vida funcionária de oficial do Exército, iria
ser um burocrata das armas até ao fim dos seus dias. Há quem não se conforme a
uma existência burocrática, por muito que ela seja confortável – porque
previsível, na sucessão dos dias iguais, com almoço de refeitório marcado à hora
certa, e vencimento assegurado ao final do mês, sem pânicos ou incertezas. Uma
existência sem surpresas boas, como dádivas inesperadas ou dinheiros imprevistos,
nem surpresas más, como dívidas acumuladas e inescapáveis, que uma manhã nos chegam
pela caixa do correio, impressas num postal fiscal.
Waugh
tentou diversas alternativas, sem sucesso. Nem sequer o chamaram para a
entrevista quando se candidatou ao MI5, à época uma carreira respeitável para os
homens da sua condição social com um módico de inteligência e formação
académica. Senhores bem-vestidos.
Em
24 de Janeiro de 1944, Evelyn Waugh pediu uma licença sem vencimento por três
meses. Decidira regressar à escrita – no fundo, aquilo que sempre mais gostara
de fazer, aquilo que melhor fizera em quarenta anos de existência. Afastou-se
por uns tempos da vida social, certamente recusou convites para jantares a que
adoraria ter ido. Escreveu, escreveu furiosamente, com a sofreguidão e a paixão
insanas dos que sabem que o tempo lhes escasseia. Milhares de palavras por dia.
Palavras, palavras, palavras, às vezes três mil numa só jornada de trabalho. Instalado
num pequeno hotel em Devon, regressava também às imediações de um lugar que
conhecera bem, Madresfield Court. «Já lá estivera antes, já conhecia tudo
aquilo.» – pensará Charles Ryder na solitude
of the self, quando a sua companhia de homens fardados e vazios se instalou
nas cercanias de Brideshead.
Pese a dedicação apaixonada de quem o
escreveu, Brideshead Revisited demorou
mais do que o previsto a acabar. Aquilo a que nos dedicamos com mais amor ou
paixão atrasa-se sempre, nunca cumpre os prazos certos. Por vezes, nem chega a
ver a luz do dia, tal é o nosso desejo que jamais acabe, que assim permaneça, como promessa eternamente
incumprida. Waugh acabou o manuscrito ao fim de cinco meses, ultrapassando o
prazo da licença que o Exército lhe concedera. A versão inicial chamava-se The Household of Faith, a história de
uma casa e de uma família devota. O livro seria publicado com um título muito
mais longo, mas muito menos óbvio quanto às suas verdadeiras origens e
intenções: Brideshead Revisited. The Sacred and Profane Memoriesof Captain Charles Ryder. A Novel. Seria dado à estampa em tempos sombrios e de guerra,
com a marca da austeridade inscrita nas primeiras folhas («produced
in complete conformity with the autorised economy standards»). É vulgar e
grosseiro o papel da edição original, que comprei na Feira da Ladra por um
desses felizes acasos que só acontecem aqui na Lisboa oriental, o país maravilhoso
da Guidinha, a pátria de Luís & Edgar – O Requinte da Carne, o talho mais electricamente feérico e
animado da capital nacional.
Dedicado
à sua segunda e bem-amada mulher, Laura, Brideshead
Revisited abre com uma advertência críptica, assinada com as iniciais “E.W.”
Eu não sou eu: tu não és ele
nem ela; eles não são eles.
Evelyn
Waugh não era ele? Era Charles Ryder? Seria isso que queria dizer? Ou Charles
não era Evelyn? Lady Mary, «Maimie», não seria Julia? Aquele não era o retrato
da família Lygon? E não será esta pergunta, que agora escrevo, o que quero que ela
seja? A pretensão de um texto é sempre maior, ou diversa, do que as palavras
que nele vão escritas. O que depois nós lemos fica sempre aquém, ou à margem, das
intenções de quem escreveu.
Evelyn Waugh
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Eu não
sou eu. O ponto de vista é fundamental em Brideshead Revisited, a única novela completa de Waugh narrada na
primeira pessoa (cf. Robert Murray Davis, Brideshead
Revisited. The Past Redeemed, 1990, pp. 46ss). Evelyn Waugh não era Charles
Ryder, ainda que parecesse ou aspirasse a sê-lo. Julia não era Maimie, ou
vice-versa. Mas em cada uma das páginas de Brideshead
Revisited, em cada uma das suas palavras, nessas palavras que Waugh chegou
a escrever aos três milhares num só dia, está Charles e está Julia, imaginários,
e estão Evelyn e Maimie, nas suas vidas pretéritas.
Evelyn
Waugh, um homem da classe média que crescera num subúrbio de Londres, filho de
um editor ilustrado, nem sempre lidou bem com as suas origens sociais. O seu
fascínio deslumbrado pela aristocracia, pelos Lygon e por Madresfield talvez
fosse uma forma de exorcizar a consciência dessa abissal diferença de status, o desconforto de saber que, por
mais que fizesse parte do mundo de Madresfield, aquele não era, nem nunca
seria, o seu mundo. Eu não sou eu. Por razões que não têm
necessariamente a ver com as suas raízes sociais, mas que brotam do deep inside de cada um, Evelyn começou a
ter, desde muito novo, um sentimento de distância em relação à sua família.
Ainda criança, sentia-se deslocado junto deles, mesmo que os amasse. Com o
irmão mais velho a estudar longe, Evelyn teve uma infância tranquila e feliz
mas algo solitária, passando dias e dias com as famílias de alguns amigos,
poucos. O passar dos anos afastá-lo-ia dos familiares, com a qual convivia espaçadamente,
mais por convenção e obrigação social, ou por uma réstia de afecto, do que por
verdadeiro desejo de partilhar com eles o seu destino adulto. Por vezes, Evelyn
incomodava-se com a teatralidade do seu pai, sobretudo quando este lia trechos
de Dickens em voz alta. Recordaria, porém, a beleza da entoação da sua voz, que
– dizia – «só era ultrapassada por John Gielgud». Começou a escrever Brideshead Revisited menos de um ano
depois de o pai morrer. Desconhecia que, muitos anos após a sua própria morte, seria
feita uma série televisiva baseada no livro. A melhor série alguma vez
produzida para televisão. A melhor, de longe, num patamar único e inatingível.
Nessa série sumptuosa, realizada em 1981 pela Granada Television, quem desempenhou o papel de pai de
Charles Ryder, o alter ego de Evelyn
Waugh, foi… John Gielgud. Às vezes, a vida produz destas coincidências, estes círculos
desconcertantes, e por isso é tão gaiata e maravilhosa.
Hugh Lygon
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Em
Oxford, Evelyn Waugh encontraria Hugh Lygon, filho segundo do 7º conde de Beauchamp. As semelhanças de Hugh
Lygon com Sebastian Flyte são por demais evidentes e, de resto, apesar de
alguma reserva, nunca houve uma preocupação excessiva em negar as analogias
entre os Flyte de Brideshead e os
Lygon de Madresfield Court. Situada no Worcestershire, Madresfield Court era a casa ancestral dos
Lygon. Pertencia-lhes há mais de oitocentos anos. A casa era espaçosa: 136
divisões. O parque circundante exigia o cuidado de 24 jardineiros em
permanência. A mesa de jantar tinha 100 lugares sentados. Os Beauchamp possuíam,
além de Madresfield Court, Halkyn
House, a sua moradia de Londres, em Belgravia, e Walmer Castle, um enorme castelo em Kent, a
residência oficial do conde Beauchamp enquanto titular do antigo cargo de Warden of the Cinque Ports. Os Lygon e a
sua numerosa criadagem deslocavam-se entre as suas casas num comboio privado.
Por isso havia uma estação de comboio em Madresfield.
Madresfield Court
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Em
Madresfield Court, o ambiente era feérico e animado, como os finais de tarde do
talho Luís & Edgar (à Graça), com festas onde corria o champanhe francês e
a alegria social. Madresfield era conhecido entre a geração mais nova dos Lygon
e pelos seus amigos como «Mad». Mad World, aliás, é o
título do livro de Paula Byrne que desvenda os mais ínfimos pormenores da vida sagrada e profana dos
Lygon, incluindo a correspondência privada do conde e da condessa e o modo como
Waugh os revisitou em Brideshead (um excerto na Vanity Fair, aqui).
Da esquerda para a direita: Coote, Maimie, Lettice, Sibell, Lady Beauchamp, Boom, Elmley, Hugh e Dickie |
O
mundo é um lugar estranho e a madness do
mundo, de facto, aparece em toda
parte, sorridente e escapista, como o gato de Alice. Nesta história pequenina,
por exemplo: os Lygon eram anglo-católicos fervorosos, a ponto de até os
criados terem de os acompanhar à missa. Apesar de possuírem muitos automóveis e
cavalos, e até um comboio privado que se deslocava entre as suas terras, quando
iam à missa em Londres faziam-no de autocarro ou de metro. O conde viajava de chapéu
alto no underground, a condessa de
casaco de peles, adornada de jóias laicas. Lorde Beauchamp achava que os táxis
eram uma extravagância e que os domingos eram dias de descanso para todos,
incluindo cavalos e automóveis.
Os Lygon, retratados por William Ranken,
por ocasião do 20º aniversário do primogénito
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A
mulher, Lady Beauchamp,
tinha duas paixões litúrgicas: a religião e a alimentação. Ingeria ambas em
quantidades desmesuradas. Com isso, contrariava duplamente a advertência eclesiástica
de um antigo bispo de Viseu, D. António Alves Martins, segundo a qual «a
religião deve ser como o sal na comida: nem muito nem pouco, só o preciso». Pois
bem, quer em comida, quer em religião, Lady Beauchamp era excessiva (mas, a
propósito, Brideshead também é
excessivo em matéria gastronómica, como Evelyn Waugh aliás reconheceu, bastando
recordar as descrições dos repastos de Charles Ryder com Anthony Blanche ou com
Rex Mottram). Segundo uma das filhas da condessa, ao jantar era capaz de comer
um frango assado inteiro. Nada de faisões ou perdizes: na Arcádia de
Madresfield, jantava-se frango assado. E, já agora, batatas fritas do Cardoso?
(perdão, esta é só aqui para o pessoal do bairro).
William Lygon e os seus filhos
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Ao
contrário da mãe, rigorista e rígida, o conde mimava os filhos com
transbordante amor e centenas de presentes. Era conhecido como «Boom» devido ao
tom forte da sua voz, e preocupava-se que os filhos tivessem uma educação esmerada:
à mesa só falavam francês e, acabado o almoço, dirigiam-se à biblioteca de
Madresfield, onde o pai lhes lia novelas históricas vitorianas. Membro do
Partido Liberal, Lorde Lygon não era só liberal em política. Uma das filhas
recorda que a lição maior que lhes deu se resume numa palavra: tolerância. Tragicamente,
não teve tolerância em vida.
Boom
era homossexual, e pagou caro por isso. Teve filhos, é certo, mas o facto de
ter casado com aquela mulher, irmã de Hugh Grosvenor, o poderoso 2º duque de
Westminster, só agravaria as penas que sofreu. Um escândalo sexual obrigá-lo-ia
a abandonar a família e o país que amava, sendo condenado a um exílio
humilhante. A parecença com Lorde Marchmain de Brideshead é flagrante. Como flagrante é a presença do homoerotismo
no livro de Evelyn Waugh. Aliás, o seu irmão, Alec Waugh, publicara ainda jovem uma novela
autobiográfica sobre os seus tempos de escola, A Loom of Youth (1917), que causou sensação por abordar o tema da
homossexualidade entre os alunos de uma public
school. A novela, escrita em cerca de sete semanas (os Waugh eram desvairados
na escrita…), foi um best-seller,
romance que provocou escândalo por ter uma alusão – de resto, brevíssima e
fugaz – à homossexualidade. A polémica deveu-se, acima de tudo, ao facto de o
livro questionar, naquela época, o ethos cavalheiresco
da educação ministrada nas public schools
onde se formara a elite dizimada no Somme e noutros teatros sangrentos.
Publicada durante a Grande Guerra, a novela de Alec Waugh foi vista por muitos
como uma obra antipatriótica, um ultraje à memória dos jovens aristocratas que
morreram com galhardia e bravura em defesa do seu país e do seu rei. Na
verdade, mais de mil antigos alunos de Eton seriam mortos na Primeira Guerra,
que veio acelerar dramaticamente o decline
and fall of the British aristocracy, título do livro de David Cannadine que,
entre outros factores, salienta o efeito do conflito de 1914-18 na derrocada de
uma geração, de uma classe social, de um estilo de vida (cf. David Cannadine, The Decline and Fall of the British Aristocracy, 1990, pp.
71ss). Evelyn tinha apenas treze anos quando o seu irmão se tornou um dos
escritores mais falados e criticados do Reino Unido. Nesse mesmo ano de 1917,
entraria no Lancing College, no Sussex. Os infelizes tempos que Evelyn Waugh
passaria no internato do Sussex seriam por ele recordados numa história
inacabada, Charles Ryder’s Schooldays.
Uma vez mais, Charles/Evelyn. Eu não sou
eu.
No
Lancing College, Evelyn não fez um amigo, não encontrou uma alma gémea, não
pôde cultivar a philia, essa virtude
de amor puro e de leal amizade que será um dos traços mais marcantes do seu
carácter. Morreu de alguns excessos, com a saúde arruinada pelo álcool, pelo
tabaco e pelo consumo imoderado de soníferos. Após ouvir a missa em latim, ao
seu gosto pré-conciliar, seria fulminado por um ataque cardíaco no domingo de
Páscoa de 1966. Todos os excessivos são competitivos, sobretudo consigo
próprios. Evelyn era-o. Frequentar uma escola de segunda ordem, como o Lancing
College, em vez de estudar em Eton, foi, por certo, uma das razões da
infelicidade da sua juventude solitária.
Enquanto
isso, em 1918 o jovem Hugh Lygon entrava em Eton, seguindo as pisadas do irmão
mais velho, William, ou, se quisermos, Lorde Elmley (já agora, um pouco de
má-língua: uns anos mais tarde, Barbara Cartland, a futura monarca dos romances cor-de-rosa, a
escritora mais prolífica do mundo, teve uma paixão avassaladora, mas não
correspondida, por Lorde Elmley, querendo desesperadamente casar com ele; o
primogénito Beauchamp não casou com Barbara, mas tomou-lhe a virgindade – facto
íntimo, só aqui revelado porque a «Rainha do Romance», com 723 livros
publicados e, por isso, assinalada no Guinness,
condenaria em diversas entrevistas, e de forma acérrima, o sexo pré-matrimonial…).
Os
irmãos Lygon desarmavam pela simplicidade, pela despretensão, pela ausência do
snobismo que seria natural ou expectável em jovens da sua extracção social.
Mais tarde, Hugh iria para Oxford: apesar da formação recebida em Eton, só com
a ajuda de aulas privadas conseguiu ingressar na Universidade. Não consta que
tenha recebido equivalências duvidosas ou feito exames ao domingo. Desconhece-se
a classificação obtida em Inglês Técnico, mas certamente terá sido baixa. Hugh
Lygon, para sermos francos, não se distinguiu como aluno, bem longe disso. Evelyn
Waugh também não: perdeu-se por lá e perdeu a bolsa, saindo de Oxford sem sequer
se formar (Waugh interpretava a sua bolsa de estudos como uma recompensa justa por aquilo que já estudara, não como um incentivo a trabalhar mais: cf. Robert Murray Davis, ob. cit., p. 2).
Ainda
assim, nessa época não se exigia muito de um estudante de Oxford. A
Universidade destinava-se a ser uma antecâmara para uma vida já traçada – ou
desgraçada. Em rigor, o diploma não acrescentava nada ao destino de cada um, sobretudo para quem não cometesse a
loucura de querer seguir carreira académica ou para quem tivesse a linhagem e a
fortuna dos Lygon. De acordo com Waugh, e segundo o que escreveu nos seus Diários, aquilo que Oxford mais tinha a
ensinar era the aesthtetic pleasure of
being drunk, acordando no dia a seguir sem ressacas físicas nem culpas
morais. Um cientista social diria que em Oxford se formavam «redes de
sociabilidades», o que é verdade. Os cultores de Bourdieu (eu tinha que citar o
Bourdieu!), que os há muitos e bons, afirmarão que era uma marca de la distinction, o que também é verdade.
Mas, mais do que isso, Oxford oferecia o ócio
criativo indispensável para quem tivesse talento. De igual sorte, formaria
gerações numa disciplina antiga, leccionada por Burton num livro famoso – The Anatomy of Melancholy – e desenhada por Dürer como Melencolia.
Alguns episódios de Brideshead são inspirados em factos passados nos tempos de Evelyn Waugh em Oxford (de que há muitas imagens aqui), como a perseguição a Anthony Blanche por um bando de matulões e o seu banho forçado na fonte monumental de Mercúrio. Na realidade histórica, a vítima do bullying perpetrado pelos membros do Bullingdon Club foi Harold Acton, um contemporâneo de Hugh Lygon em Eton, que já aí se destacara pelo seu amor incondicional pelo teatro, a mais misteriosa das artes, arte capaz de fazer chorar até as almas mais insensíveis e os espíritos mais empedernidos. Uma figura lendária em Eton e em Oxford, Harold Acton disse coisas bonitas, talvez presunçosas, no rescaldo da Grande Guerra: «Now that the war was over, those who loved beauty had a mission, many missions. We should combat ugliness; we should create clarity where there was confusion; we should overcome mass indifference; and we should exterminate false prophets». Da varanda do seu quarto, com um megafone na mão, Harold Acton declamava poesia, sobretudo de Sitwelll ou Eliot (note-se que Waugh não apreciava o modernismo de T. S. Eliot, preferindo o convencional Kipling; uma vez mais, I am not I, ou seja, os gostos de Charles, Sebastian ou até do Bright Young People não eram exactamente os seus). Também em Brideshead, Anthony Blanche, de megafone em punho, declamará versos de Eliot na varanda dos aposentos de Sebastian, ainda que a principal figura inspiradora da personagem de Blanche seja outro contemporâneo de Hugh Lygon em Eton, Brian Christian de Clavering Howard (ou simplesmente Brian Howard), dândi modernista e senhor de uma voz inconfundível, cujas origens familiares surgiam envoltas em penumbra e mentira: às tantas descobriu-se que o seu verdadeiro apelido era Gassaway e não Howard, que nada tinha a ver com a família de Castle Howard, a majestosa e esmagadora casa que, por outra maravilhosa coincidência, na série da Granada Television servirá de cenário a Brideshead.
Harold Acton, com o megafone,
desenhado por Waugh
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Evelyn, em Oxford
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Alguns episódios de Brideshead são inspirados em factos passados nos tempos de Evelyn Waugh em Oxford (de que há muitas imagens aqui), como a perseguição a Anthony Blanche por um bando de matulões e o seu banho forçado na fonte monumental de Mercúrio. Na realidade histórica, a vítima do bullying perpetrado pelos membros do Bullingdon Club foi Harold Acton, um contemporâneo de Hugh Lygon em Eton, que já aí se destacara pelo seu amor incondicional pelo teatro, a mais misteriosa das artes, arte capaz de fazer chorar até as almas mais insensíveis e os espíritos mais empedernidos. Uma figura lendária em Eton e em Oxford, Harold Acton disse coisas bonitas, talvez presunçosas, no rescaldo da Grande Guerra: «Now that the war was over, those who loved beauty had a mission, many missions. We should combat ugliness; we should create clarity where there was confusion; we should overcome mass indifference; and we should exterminate false prophets». Da varanda do seu quarto, com um megafone na mão, Harold Acton declamava poesia, sobretudo de Sitwelll ou Eliot (note-se que Waugh não apreciava o modernismo de T. S. Eliot, preferindo o convencional Kipling; uma vez mais, I am not I, ou seja, os gostos de Charles, Sebastian ou até do Bright Young People não eram exactamente os seus). Também em Brideshead, Anthony Blanche, de megafone em punho, declamará versos de Eliot na varanda dos aposentos de Sebastian, ainda que a principal figura inspiradora da personagem de Blanche seja outro contemporâneo de Hugh Lygon em Eton, Brian Christian de Clavering Howard (ou simplesmente Brian Howard), dândi modernista e senhor de uma voz inconfundível, cujas origens familiares surgiam envoltas em penumbra e mentira: às tantas descobriu-se que o seu verdadeiro apelido era Gassaway e não Howard, que nada tinha a ver com a família de Castle Howard, a majestosa e esmagadora casa que, por outra maravilhosa coincidência, na série da Granada Television servirá de cenário a Brideshead.
Castle Howard
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À semelhança do que acontece com Charles Ryder
em Brideshead, que mantém um quarto
no piso térreo contra o conselho do seu circunspecto primo, Evelyn Waugh
mudar-se-ia a dada altura para um piso térreo, mais vulnerável à intrusão dos
oportunistas, amigos de ocasião que vinham tomar cálices de Oporto ou fumar cigarritos
d’onça. Na decoração interior destacava-se um crânio humano, igual ao que
Charles Ryder tem numa mesa do seu quarto e que tanto espanto provoca no tosco primo
Jasper. Também à semelhança de Charles Ryder, Evelyn teve um grupo de amigos
insípidos nos primeiros tempos de Faculdade, que se reuniam no seu quarto para
conversarem sobre metafísicas e vãs filosofias enquanto bebiam xerez e comiam
queijo e bolachas. Tudo mudaria quando conheceu um aluno com infinito charme,
bastante freak, Terence Greenidge, que,
entre outras perfídias inocentes, era cleptomaníaco de objectos de pouco valor,
como pentes e escovas ou corta-unhas. Um dia, Evelyn e Terence puseram a correr
o boato segundo o qual um colega de que não gostavam tinha uma peculiar
atracção sexual por canídeos. Chegaram a comprar um cão empalhado e a colocá-lo
à porta do quarto da vítima. Uma noite, o deão da Faculdade, ao atravessar os
claustros vindo de um jantar académico bem regado, reparou no cão, estático e
de olhar vítreo, provavelmente devido às sevícias bárbaras de que era alvo.
Desde então, a vítima da brincadeira passou a ser vista como uma péssima
influência para todos os estudantes de Oxford. Evelyn Waugh, em contrapartida,
ganhava acesso a novos e mais distintos círculos, graças à sua graça. Pouco
depois de morrer, a escritora Nancy Mitford, sua grande amiga, disse, numa entrevista:
«everything with him was jokes». Pela mesma altura, o filho escreveria na Spectator, talvez com exagero filial,
que Evelyn Waugh era «the funniest man of his generation.»
Pela
mão de Harold Acton, Evelyn entraria no Hypocrite’s Club. Na altura, os clubes
eram fundamentais para a vida dos estudantes, proibidos de frequentar os pubs das redondezas. Aí, faziam
iniciações várias, sobretudo no álcool adulto. O Hypocrite’s Club tomava o nome
da palavra grega para «actor» e servia justamente como um palco de pose e
representação (bem, a etimologia é mais
complicada e mete coisas estranhas como nomen
agentis, ὑπόκρισις e hypokrisis). O presidente do Hypocrite’s era Lorde
Elmley, o primogénito dos Lygons. Quando tudo indicava que, pela ancestralidade
da sua genealogia, Elmley e Hugh iriam integrar o Bullingdon Club, mais exclusivo e elitista, preferiram
ambos o Hypocrite’s, mais aberto e virado às artes. Mais tolerante, em suma.
Em Oxford, à semelhança de tantos da sua
geração, Evelyn Waugh atravessará uma fase intensamente homossexual (como, de
resto, foi assinalado na primeira grande biografia a ele dedicada, da autoria
de Christopher Sykes, Evelyn Waugh,
1975, ou em obras mais recentes, como a de Douglas Patey, The Life of Evelyn Waugh. A Critical Biography, 1998, pp. 13ss). A
tolerância para com a homossexualidade, dentro de certos limites, representava,
aliás, uma das marcas distintivas do Hypocrite’s, em confronto com o pedantíssimo
Bullingdon. Em 1924, Waugh disse a um antigo colega de escola que, ali em
Oxford, a sua vida se tornara «quite incredibly depraved morally.» Um dos
convidados do Hypocrite’s, Isaiah Berlin, recorda-se de ver Evelyn a beijar um
colega, à vista de todos. Acabaria por se aproximar de Hugh Lygon, e de se
apaixonar pela sua beleza pálida e etérea. Ao que parece, foram amantes, mas Evelyn, mesmo na sua
autobiografia (A Little Learning,
1964), pouco falou do jovem Lygon: «Hugh Lygon, Elmley’s younger brother,
always just missing the happiness he sought, without ambition, unhappy in love,
a man of the greatest sweetness…». Contudo, este é um dos pontos
mais controversos do livro de Paula Byrne: alguns críticos, como Peter Parker nas páginas do
TLS (Outubro de 2009), consideram que ela não
apresenta provas concludentes da existência de uma relação amorosa entre Hugh
Lygon e Evelyn Waugh (cf. a recensão ao livro de Byrne por Alexander Waugh, neto de Evelyn, aqui). Aliás, enquanto estudantes – e ao contrário do que
acontece com Charles e Sebastian em Brideshead
– Hugh nunca convidou Evelyn a visitar Madresfield. Pertenciam a mundos
diferentes, por muito unidos que estivessem pela bebida, pelo amor jovem, pela
pulsão autodestrutiva. Viviam ambos numa Arcádia efémera e perigosa, sabendo
que o tempo idílico lhes fugia entre os dedos. Hugh seguiu a carreira que se
esperava de um jovem da sua estirpe, indo trabalhar para um banco em Paris, no
Boulevard Saint Germain. Infelicíssimo, afundou-se cada vez mais no álcool.
Acabaria na bancarrota, tendo de regressar às pressas a Inglaterra.
Talvez
porque adivinhasse o fim próximo daqueles tempos, uma geração perdida celebrou
com fervor militante a decadência iminente (David Cannadine conta, no seu Decline and Fall…, que, na Primavera de
1919, Beauchamp integrava o lote dos aristocratas ingleses que mais terras
venderam, uma enormidade de hectares). Uma noite, duas das irmãs Lygon, Lady
Sibell e Lady Mary, ficaram até ao final de uma festa grande. De regresso à sua
casa em Belgravia, repararam que não tinham consigo a chave e aí não havia
ninguém para lhes abrir a porta. Como não tinham muito dinheiro consigo,
decidiram pedir a ajuda de algum conhecido, em vez de passarem a noite num hotel.
Tomaram um táxi para casa de uma família amiga, os Baldwins, vizinhos em
Worcestershire. O endereço dos Baldwins em Londres ficava em Downing Street. No
nº 10. O porteiro de serviço acordou o Primeiro-Ministro e a mulher, que em
pijama acolheram as jovens aristocratas. Na manhã seguinte, Stanley Baldwin telefonou
a Lorde Beauchamp para que enviasse uma empregada com roupas adequadas para as
suas filhas. Beauchamp recusou, e, por uma vez, decidiu puni-las. Sibell e Maimie
tiveram de regressar a casa a pé, até Belgravia, em trajes de festa nocturna.
William Lygon,
chanceler da Universidade de Londres
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A
tragédia acabaria por se abater sobre todos, mas os Lygon sofreram-na de uma
forma particularmente cruel. Lorde Beauchamp tivera uma trajectória fulgurante,
abandonando o Partido Conservador, a que seu pai pertencia, para se tornar um
dos representantes dos Liberais na Câmara dos Lordes. Aí, interveio sobre os
mais diversos assuntos, do comércio livre ao tabagismo juvenil, passando pela
vivissecção ou pelo trabalho feminino. Desempenhou funções como governador da
Nova Gales do Sul, e até há fotografias que o mostram vestido com o traje
oficial desse cargo público. Foi durante o seu mandato como chanceler da
Universidade de Londres que esta se tornou o primeiro estabelecimento de ensino
superior a abrir as portas às mulheres, além de conceder apoios para que os alunos
de menores recursos continuassem a estudar. Antes disso, em 1895, fora eleito mayor de Worcester, o primeiro nobre
inglês a ser eleito para um cargo público desse género, plebeu. Tornou-se um
membro activo do London Board of
Education e manteve a tradição, iniciada pelo seu pai, de realizar uma
feira agrícola anual em Madresfield, a mesma que aparece no enredo de Brideshead Revisited. Educado em Eton,
seguiu para Oxford, onde se tornou um dos alunos mais populares, sendo eleito
presidente da União de Estudantes. Um percalço estúpido acabaria por pôr termo
à sua carreira académica: uma vez, deslocou-se a uma festa em Blenheim Palace (onde,
por um acaso, Winston Churchill nasceu), sem a necessária licença das
autoridades académicas de Oxford para poder sair da cidade. Seria expulso da
Universidade, o que parece ser uma pena desproporcionada e permite levantar a
suspeita de que algo mais grave se terá passado. Após a sua expulsão, teve um
colapso nervoso e, à maneira clássica, fez um cruzeiro pelo Mediterrâneo e
permaneceu uma temporada de repouso na Ilha da Madeira, que na altura ainda não
era uma região, e muito menos autónoma. Regressou em força à vida pública e
casaria em 1902 com Lady Lettice Grosvenor, irmã do 2º duque de Westminster,
naquele que foi considerado o casamento do ano pelas colunas sociais.
Distinguiu-se ainda pelas festas de arromba e pela permanente hospitalidade (em
Madresfield, chegou a receber mais de 2000 convidados por mês), bem como pelos
seus talentos artísticos, com destaque para a escultura The Golfer, exibida em 1920 na Exposição de Paris, que figurava um
golfista nu. A obra ainda hoje está exposta na sala de fumo de Madresfield
Court. Entregava-se ainda a outra arte, com afinco e desvelo: os bordados. Manterá
a paixão pela embroidery até ao final
da vida.
William Lygon
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As
inclinações homossexuais de Beauchamp eram um segredo de Polichinelo. Em
Madresfield, quase todos os criados eram homossexuais. Um deles, que o não era,
espreitou um dia pelo buraco da fechadura de uma sala fechada, observando o
conde envolvido com o seu médico particular. Até os filhos conheciam a lascívia
do pai: sempre que convidavam um amigo, aconselhavam-no a que, quando fosse
dormir, se trancasse no quarto, para impedir uma visita nocturna, de cortesia,
do patriarca Beauchamp. O mordomo de Madresfield era um homem excepcionalmente
bonito, que despertava o desejo até de Lady Lettice. Em 1930, em visita
oficial, na qualidade de chanceler da Universidade de Londres, Boom viajou até
à Austrália, na companhia de um criado que, notoriamente, era o seu amante de
serviço, facto que mereceu a repulsa das autoridades locais. Antes de ir a
Canberra avisaram-no de que não seria recebido se aparecesse acompanhado do seu
joy-boy.
William Lygon,
governador da Nova Gales do Sul
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A
homossexualidade de Beauchamp, cada vez menos secreta, tornava-o vulnerável ao
ódio do cunhado. Ao fim de um tortuoso processo, tornar-se-ia, nas palavras de
Cannadine, «the most tragic titled expatriate» daquele tempo (ob. cit., p. 381). Não era, porém, o
único a ter de fugir do país por questões do campo erótico: a histórica exploração
aos gelos do Ártico de Lorde Lonsdale, em 1888, não passara de um disfarce para sair de Londres
devido ao seu caso tórrido com uma actriz casada, Violet Cameron. A aprovação,
em 1885, do Criminal Amendment Act,
que agravava as penas para a homossexualidade, fez razia na aristocracia
britânica. Dois filhos do 8º duque de Beaufort tiveram de partir para o
estrangeiro, o mesmo acontecendo com Lorde Ronald Gower (que serviu de inspiração a Oscar Wilde, no Retrato de Dorian Gray) e com sir George Sitwell (que
serviu de inspiração a Evelyn Waugh, em A
Handful of Dust). Mas agora vamos contar a história do declínio e queda de
Boom Beauchamp. O duque de Westminster, Hugh Richard Arthur Grosvenor
(«Bendor»), um dos homens mais ricos da Europa, tinha razões de sobra para
invejar Lorde Beauchamp. Na hierarquia da aristocracia, um duque vale mais do
que um conde, mas seria Beauchamp a ter a honra de transportar a Espada do
Estado na coroação do rei Jorge. Boom, ao contrário de Bendor, recebera a Most Noble Order of the Garter (em
português direito: a Ordem da Jarreteira). Mais ainda: Grosvenor, por ser divorciado
duas vezes, era persona non grata na
Corte. Para agravar o ciúme do duque, Beauchamp, apesar das suas tendências
homossexuais, conseguira produzir três herdeiros varões, uma proeza fundamental
para assegurar a continuidade da Casa. Grosvenor, ao invés, tivera um filho, mas
morreu aos quatro anos. Diz-se que por culpa do próprio pai, que o obrigou a
participar numa caçada à raposa apesar de a criança se queixar de fortes dores
abdominais, provavelmente devido a uma apendicite. Morreria no decurso da
caçada, vitimado por uma peritonite. Em A Handful of Dust, de 1934, Evelyn contaria a história de um filho único,
muito amado por seu pai, que morreria num acidente de caça. I am not I, sempre. Waugh absorvia tudo
o que vivia ou conhecia, colocando-o, aberta ou dissimuladamente, nos seus
escritos, onde as fronteiras entre a ficção e a realidade são sempre pouco nítidas.
Aliás, uma das críticas feitas ao livro de Paula Byrne, porventura justa, é que
a autora procura apresentar o seu livro como a «chave secreta» para conhecer Brideshead Revisited quando a ligação
desta obra ao universo dos Beauchamp e de Madresfield era sabida desde há
muito e continua a despertar interesse, como sucede com a obra de Jane Mulvagh, Madresfield. The Real Brideshead, de 2011. Ainda assim, o livro de Paula Byrne contém informação nova e abundante, que
abundantemente copiei para aqui, sem pudor ou recato algum.
William Lygon,
7º conde de Beauchamp
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Existiam
também razões políticas para liquidar Beauchamp: enquanto Bendor pertencia à
ala direita do Partido Conservador, Boom, por seu turno, estava a conseguir
reagrupar os Liberais após o dissídio entre Asquith e Lloyd George. Para
percebermos a sua importância política, basta dizer que Beauchamp representou o
Governo no Palácio de Buckingham quando, em Agosto de 1914, o rei assinou a
declaração de guerra. O seu cunhado, além do mais, era profundamente homofóbico,
ainda que não fosse casto: pelo contrário, a sua atracção por raparigas menores
de idade já lhe trouxera grandes dissabores, obrigando-o a ressarcir discreta
mas avultadamente famílias ultrajadas. Nada disto o dissuadiria de iniciar uma
campanha sem tréguas contra o cunhado, recorrendo a espiões e detectives
privados que conseguiram – o que não era difícil… – encontrar provas
comprometedoras. Quando as obteve, solicitou um encontro com Jorge V, num local
privado (ostracizado da Corte devido aos seus dois divórcios, Grosvenor não
poderia ser recebido pelo monarca num local oficial). Há várias versões sobre a
reacção do rei quando confrontado com a homossexualidade de Boom, todas elas
fazendo recordar as célebres afirmações da rainha Vitória a propósito do lesbianismo.
Numa das versões, o rei Jorge terá dito:
«I thought people like that always shot themselves». Noutra,
afirmou que pensava que as pessoas só faziam coisas dessas no estrangeiro. O
facto é que o filho do líder dos Conservadores, Oliver Baldwin, também era
homossexual. Stanley Baldwin, que era vizinho dos Beauchamp no Worcestershire e
que acolhera, como vimos, duas irmãs Beauchamp no nº 10 de Downing Street, não
quereria também, por certo, que um escândalo de homossexualidade explodisse em
seu redor. Se acaso Boom se quisesse defender até às últimas consequências,
tinha o privilégio de ser julgado na Câmara dos Lordes. Se o caso entrasse no
território da política e dos jornais, não seria apenas o rei Jorge V o afectado;
o líder dos Conservadores também correria riscos (note-se, a bem da verdade,
que os Baldwin sempre apoiaram os Beauchamp nesta contenda). Para muitos, o melhor
era exilar Boom. Rapidamente e em força.
William Lygon
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Não
é claro se se tratou apenas de uma manobra vingativa de Grosvenor, indignado
pelo facto de a sua irmã ser casada com um homossexual, ou se a iniciativa não terá
partido da própria Casa Real. Há quem sustente que foi Jorge V que convocou
Grosvenor para um encontro privado, na tentativa de proteger os seus filhos, os
príncipes Henrique e Jorge, visitas habituais de Madresfield. O Henrique não
dava dores de cabeça. Já o príncipe Jorge tinha uma libido voraz, a ponto de se envolver com uma mulher
mundana que, entre o mais, o iniciou no consumo da cocaína e da morfina.
Bissexual, manteve uma ligação de dezanove anos com o dramaturgo, actor e
compositor Noël Coward
(que, por ser um famoso homossexual, estava numa «lista negra» elaborada pelos
nazis, com os nomes das pessoas a serem imediatamente assassinadas logo que as
tropas do Reich conquistassem a Grã-Bretanha). Pelo meio, Jorge teria também um
affaire com Maimie Beauchamp, que
quase terminou em casamento. Num ano de 1920, num dia nas corridas, em Ascot,
Maimie seria convidada para o Royal Stand,
o que era um sinal promissor. Seis meses depois, o príncipe Jorge e Maimie
Lygon eram vistos a dançar alegremente num baile de máscaras e caridade. O
noivado anunciava-se no horizonte. Assim, entre outros efeitos, o escândalo
visaria também pôr termo a quaisquer veleidades matrimoniais entre o príncipe
Jorge e Mary Lygon, a mais bela das filhas de Lorde Beauchamp. Para a Coroa,
seria catastrófico se viesse a público que o sogro de um príncipe de sangue
régio era um homossexual com um apetite insaciável por criados e jovens efebos.
Maimie tinha todos os requisitos para ser uma princesa: era bela e educada,
divertida e alegre, possuía uma genealogia antiga e ilustre. Credenciais
impecáveis, todos os pergaminhos. Porém, um pormenor fatal manchava-lhe o
currículo: as inclinações sexuais do seu pai.
O 7º conde de Beauchamp com o primogénito,
William «Elmley» Lygon
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O
rei solicitou ao Solicitor General, Lorde Buckmaster, que
investigasse melhor a conduta de Beauchamp. Buckmaster interrogou o pessoal de
Madresfield, de Walmer Castle e de Halkyn House, obtendo testemunhos concludentes
e esmagadores. O monarca queria que tudo decorresse com discrição, o duque
exigia uma humilhação pública. Confrontados com a eventualidade de terem de
depor contra o seu pai, os Lygon recusaram. Apenas Elmley se colocou do lado da
mãe. O caso era tão sórdido que, muitos anos depois, na década de sessenta, o
5º duque de Westminster determinou que os «Beauchamp Papers» fossem queimados,
perdendo-se para todo o sempre os resultados das investigações escabrosas levadas
a cabo pelo seu antepassado.
Em
Maio de 1931, pressionada pelo irmão, Lady Lettice requereu o divórcio. A
petição de divórcio, que Paula Byrne publica em primeira mão, não esconde os aspectos mais depravados das
intimidades do conde. Além
da prática da sodomia, Lady Lettice dizia, por exemplo, que o marido cometera «acts
of gross indecency with certain of his male servants, masturbating them with
his mouth and hands and compelling them to masturbate him».
No
auge da controvérsia, três cavaleiros da Jarreteira deslocaram-se até
Madresfield e fizeram um ultimato a Lorde Beauchamp: Lorde Crewe pelos
Liberais; Lorde Chesterfield, em nome de Baldwin e dos Conservadores; e Lorde
Stanmore que, note-se, invocou «a mais alta autoridade do país», ou seja, o
rei. Nessa noite, Boom chamou os sete filhos para jantarem em Madresfield.
Disse-lhes que numa situação como aquela, a única saída digna seria o suicídio,
mas, tendo pensado melhor, optara pelo exílio. Doravante, seria um proscrito,
um pária na sua terra.
Sendo
apresentada a versão oficial de que Boom partira para repousar no estrangeiro e
aí fazer curas e tratamentos aos seus problemas cardíacos, Hugh acompanhou-o na travessia do Canal e, de
todos os filhos, seria aquele que mais vezes esteve com o pai nas suas andanças
pelo mundo, fugindo do opróbrio que para sempre manchou a casa Beauchamp. Para
cúmulo da crueldade, o cunhado escrever-lhe-ia uma missiva lacónica e impiedosa:
«You got what you deserved. Yours, Westminster». Quer o duque, quer a irmã,
alimentaram um exército de espiões, que devassaram a vida de Beauchamp (e a dos
seus filhos) quando este já estava longe de Inglaterra.
Sobre
o caso cairia um manto de silêncio e pudor. Em 1945, Somerset Maugham, que
conhecia bem os Beauchamp e com quem Hugh Lygon passaria uma temporada no sul
de França, estabeleceu a ligação entre este e Sebastian Flyte de Brideshead Revisited. Mas, três décadas
depois, quando publica em 1975 as suas memórias do fatídico ano de 1931, A Year to Remember, Alec Waugh afirma
explicitamente que o escândalo inspirara o livro do seu irmão, mas não se
atreve sequer a dizer quem era quem naquele drama (fala apenas de um «prominent
Duke» como causador da tragédia dos Beauchamp).
Lorde Elmley
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Enquanto
o seu irmão deambulava tristonho pela Câmara dos Lordes, Hughie Beauchamp tornou-se
jockey, sem nenhum êxito, e, mais
tarde, treinador de cavalos de corrida. Contudo, nunca conseguira aplacar a
inquietação que lhe corroía a alma e que o levava a beber para lá de todos os
limites.
Muitos
anos antes, encontrando-se no limiar do infortúnio, após abandonar Oxford, Evelyn
arranjou emprego como professor, profissão que exerceu por uns tempos e em que
foi feliz. Entregou-se à escrita, onde teve sucesso logo numa das suas obras de
estreia, intitulada, não por acaso, Decline and Fall, de 1928. O seu maior êxito viria a seguir, com Vile Bodies, de 1930. Converter-se-ia ao
catolicismo, deixando para trás os tempos loucos de juventude, os anos em que,
na sua primeira viagem ao estrangeiro, a Paris, na quadra de Natal, mergulhará
num bordel de petits enfants, pagando
para ver um efebo vestido de Cleópatra ser invadido por um gigantesco negro («a
tableau by which my boy should be enjoyed by a large Negro»). Noutra viagem,
mais casta, irá com o seu amante Alasdair Graham até à Escócia. Adorou Edimburgo. Alasdair
levá-lo-ia a conhecer a sua velha nanny,
exactamente como Sebastian fará com Charles na primeira vez em que este visita
Brideshead, sendo apresentado à bondosíssima Nanny Hawkins. Mais tarde, tendo
Alasdair obtido o posto de adido honorário na Legação britânica em Atenas,
Evelyn irá até à Grécia durante umas férias de Natal. A atmosfera degradante que
encontra no apartamento de Alasdair em Atenas, constantemente percorrido por
prostitutos de baixo nível, iria horrorizá-lo, inspirando Waugh ao descrever o
declínio de Sebastian no Levante na companhia de Kurt, um alemão mal lavado. Fugindo
de Atenas, Evelyn viajará até Roma, onde fica desapontado com a Capela Sistina mas
maravilhado – et pour cause… – com a Igreja de São Sebastião Extramuros,
em especial com a estátua do escultor barroco Antonio Giorgetti que exibe o mártir jazendo
deitado, trespassado por setas, numa representação carregada de erotismo
daquele que foi, e é, um dos grandes ícones gay
da cultura ocidental. Será por isso que Sebastian Flyte se chama Sebastian? Será
por isso que Charles Ryder se converte ao estilo barroco? Na altura, Waugh
estudava os pré-Rafaelitas e pensava escrever um ensaio sobre Dante Gabriel Rossetti.
O
universo de referências de Evelyn Waugh acusava, pois, uma forte marca de homoerotismo e,
não por acaso, inicia então uma amizade, que passará a namoro, com Evelyn Gardner, uma
mulher de aparência andrógina, sendo o casal conhecido como «He-Evelyn» e
«She-Evelyn». Evelyn era filha de Lorde Burghclere, um membro do Partido
Liberal (como Beauchamp) que morrera prematuramente. A mãe, Lady Burghclere, opôs-se
ao namoro da sua filha com aquele jovem middle
class e pouco promissor. Deslocou-se pessoalmente a Oxford (como,
recorde-se, Lady Marchmain fará em Brideshead)
em busca de histórias pouco recomendáveis sobre o seu futuro genro. Além do
gosto pela vodca e pelo absinto, encontrou coisas piores e ouviu histórias de
pasmar, que a levaram a avisar a filha que, se acaso casasse com aquele homem,
iria «mergulhar nas profundezas de Sodoma e Gomorra». Nada disso demoveu
Evelyn. Casariam quase em segredo, em Junho de 1928. E, como a mãe de
She-Evelyn previra, mergulhariam num ambiente de festas sobre festas,
devorando-se mutuamente num frenesi hedonista: pelo chão do pequeno apartamento
onde moravam acumulavam-se os vestidos e máscaras que usaram em bailes
sucessivos, dedicados à Grécia antiga, ao Oeste americano ou aos tempos da
rainha Vitória. Ao fim de um ano de casamento, Evelyn Gardner encontraria outro
homem e divorciar-se-ia de He-Evelyn, que ficou destroçado. Desde então, a
amizade, mais do que os laços matrimoniais, adquiriu para ele um valor sagrado,
único. Waugh escreveu aos pais dizendo que ele e a mulher eram «serenamente
felizes», confessando o seu desalento por aquele desfecho. Para mais, um
desfecho consumado pela intrusão de um amigo, um homem belo, John Heygate, que
trabalhava para a BBC e, ao contrário de Waugh, era aristocrata e estudara em Eton. Anos depois,
Heygate escrever-lhe-ia, pedindo perdão, tendo recebido a mais telegráfica das
respostas: «O.K., E.W.». She-Evelyn casaria outras vezes e Heygate, não sabemos
se trucidado pela culpa, suicidar-se-ia em 1976.
Diana Guinness
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Após o seu doloroso divórcio, Waugh contou com o
apoio de uma amiga grande, enorme, Diana Guinness, senhora aristocrata e de uma beleza fria e metafísica,
casada com um herdeiro da fortuna Guinness, cujo primeiro filho terá por
padrinhos Evelyn Waugh e Randolph Churchill, filho de Winston. Evelyn, porém, teve o cuidado e o escrúpulo
de não massacrar a paciência Diana com a dor que sentia pela separação. Seria
através de Diana Guinness – e não de Hugh Lygon – que conheceria Lady Maimie
numa festa de Natal do memorável ano de 1929, o ano de todas as festas (Evelyn
não apreciava muito a frivolidade das festas sociais, preferindo a conversa e o
humor numa roda de amigos íntimos, verdadeiros). Em Janeiro do ano seguinte, a
sua novela Vile Bodies teria um êxito
estrondoso: o sucesso público de Waugh era proporcional à sua infelicidade
privada. E, como sempre sucederá na sua obra, Vile Bodies está cheio de alusões crípticas e private jokes. A sua correspondência com as irmãs Lygon
processava-se num dialecto próprio, numa novilíngua cheia de termos e
expressões que só eles conheciam – um modo de falar cifrado é um sedimento de
intimidade. Diana considerá-lo-ia sempre «a perfect friend», ainda que, por
essa altura, se hajam distanciado: Evelyn rumo à Igreja Católica, Diana a
caminho do divórcio e dos braços de Oswald Mosley, o líder da corrente pró-nazi inglesa. Mosley
levá-la-ia até à Alemanha hitleriana: casariam no ateliê de desenho de
Goebbels, na presença do próprio Führer.
Depois, regressariam a Inglaterra – e, como era de prever, Diana Mosley
acabaria por passar uma temporada na prisão devido às suas simpatias pelo Eixo.
Morreria com 93 anos, mantendo o olhar magnético da sua juventude. Entretanto, Evelyn apaixonou-se perdidamente por Teresa «Baby» Jungman, uma rapariga que aparecia
nas revistas sociais e era muitíssimo católica. Converter-se-á, passando por um
exigente processo de aprendizagem dos ritos e dos catecismos (com um jesuíta,
discutiu desde a Arca de Noé à infalibilidade papal) que irá satirizar em Brideshead Revisited, quando descreve a
desconcertante adesão de Rex Mottram à fé católica, com vista a casar com Julia
Flyte (a talhe de foice: o novo-rico Rex Mottram é inspirado no Ministro da
Informação da época, Brendan Bracken, que concedeu a licença que Waugh pedira para escrever Brideshead Revisited; uma prova de que o
escritor, apesar de se proclamar um católico fervoroso, era capaz de dar alfinetadas
ingratas… o mesmo se passou com o modo cruel como desenharia a personagem de
Bridey e a sua mulher Beryl, uma pequena vingança contra o facto de ambos se
terem apossado de Madresfield após a morte de Boom).
Em
1931, a convite das irmãs Lygon (e, insiste-se, não de Hugh, seu contemporâneo
em Oxford), Waugh conheceria Madresfield. Desprezaria a capela que Boom mandara
construir, no estilo Arts-and-Crafts,
precisamente igual ao que Lorde Marchmain usara na capela de Brideshead, o
presente de casamento que dera à sua mulher. A capela de Madresfield, de facto,
não é bonita, ao contrário da de Brisdeshead. Pior ainda, a casa, que já tinha
sido restaurada num neogótico mais do que duvidoso, era maculada por uma lareira
em mármore italiano, cor-de-rosa, o presente de casamento do duque de
Westminster, o cunhado sinistro.
A Capela de Madresfield
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A Capela. Detalhe de Hugh e Elmley.
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Lorde Beauchamp, com a Espada do Estado
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Com
o passar dos anos, alguns traços do carácter de Waugh foram-se aprofundando: o
desdobramento em personalidades múltiplas (I
am not I…), o humor nos seus vários matizes, incluindo o mais negro, a
exploração solitária e apaixonada de tudo quanto o rodeava (definir-se-á como
um «lone explorer» que besourava a realidade inteira), a ligação inquebrável
aos amigos que amava, como Maimie. «A
person for whom friendship would become an art, despite a lifelong tendency to
infuriate and even ostracise those who were closest to him», assim o descreve
Paula Byrne em Mad World. As
suas amizades eram duradouras e incondicionais, dando tudo àqueles que
verdadeiramente amava, muito poucos («the few friends I can count on the toes of
one foot», escreveu numa carta a Coote Lygon). Odiava os conformistas vulgares
(ainda que fosse talvez um conformista
invulgar), preferia os excêntricos, os autênticos e puros que não se acomodavam
às certezas vazias de uma existência burocrática.
Mary Lygon
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Retrato de William Ranken, c. 1930
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Maimie
Lygon, a menina querida do pai, que lhe levava cocktails enquanto este tomava os seus longos banhos matinais,
sofreu muito com o exílio de Lorde Beauchamp. Maimie tinha a beleza límpida e
suave de uma lavadeira do Quatrocentto
(«a face of flawless Florentine quatrocentto
beauty», assim será descrita Julia Flyte). Algumas imagens mostram-na de
cabelo à garçonne, a moda
popularizada por Coco
Chanel que encantava Evelyn e exprimia a ambiguidade sexual daquela
época. Um dia, quando jantou com Julia Strachey em Londres, Waugh maravilhou-se com o seu
penteado curto, escrevendo no seu diário que a sobrinha de Lytton Strachey, o célebre
autor de Eminent Victorians, se
parecia maravilhosamente com Hugh Lygon. E, já que falámos de Coco Chanel, essa
lambisgóia colaboracionista, mais uma inconfidência: sim, é verdade, foi amante
de Bendor, o sinistro duque de Westminster responsável pela queda da casa
Beauchamp.
Westminster e Chanel
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Chanel e Westminster, 1924
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Hugh Grosvenor, 2º duque de Westminster (1879-1953)
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Mary Lygon, modelo
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Maimie
foi modelo fotográfico, mais por desfrute do que por necessidade. Posaria em
casaco de peles para um anúncio aos armazéns Marshall & Snelgrove. A irmã,
Lady Sibell, trabalharia ocasionalmente como jornalista e num cabeleireiro de
Bond Street (mas, como é óbvio, não a arranjar cabelos ou a depilar pêlos).
Evelyn, entre Maimie e Coote
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Maimie, Coote, uma amiga e Evelyn,
no casamento de Elmley
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As
irmãs Beauchamp, conhecidas por «the Beauchamp Belles», tiveram de se
desenvencilhar cedo na vida. Maimie e Coote tinham 21 e 19 anos quando,
subitamente, o pai caiu em desgraça devido aos seus vícios e a mãe se distanciara,
para viver a sua vida longe do escândalo, numa das propriedades do irmão, em
Cheshire. As filhas nunca o condenaram, tendo Maimie uma frase lapidar a este
respeito: «I think people’s sex lives are their own concern.» Hughie,
entretanto, mergulhava no alcoolismo depressivo, lidava mal com o facto de ser
filho segundo e homossexual. Como Sebastian Flyte em Brideshead, a sua presença em Madresfield era fonte de permanentes
conflitos e tensões. Tornou-se agressivo – para os irmãos, para os criados,
para si próprio. Em 1932, abriu falência, o que criou uma grave cisão entre os
irmãos, com acusações recíprocas sobre a falta de apoio a Hugh no momento
certo, a tempo de o salvar daquela vergonha pública. Rapidamente, Evelyn, que
sempre teve uma rara capacidade para cultivar amizades femininas, tornou-se
íntimo do Mad World porque, segundo
uma das irmãs, «tinha um sentido de humor igual ao nosso». Corresponder-se-ia
com as irmãs Lygon praticamente até à morte. A sua preferida sempre foi Maimie
e a sua beleza de proporções clássicas – ainda que aquilo que os atraísse
mutuamente estivesse muito para lá da beleza física. Fascinava-o o lado desregrado
e nada convencional de Maimie, a sua vitalidade, a sua joie de vivre, o gosto pelo riso e pela bebida. Convidava-a
frequentemente para almoçarem no Ritz. Logo após o exílio de Lorde Beauchamp, Evelyn
passou o Natal em Madresfield, naquela que foi uma das experiências afectivas
mais marcantes da sua vida. Anos mais tarde, em 1957, quando Maimie se
encontrava numa situação difícil, no limiar da pobreza, Evelyn mandou-lhe um
cheque, acompanhado de uma carta elegante em que recordava aquele Natal passado
em Madresfield. Nesse Natal longínquo, Maimie foi buscá-lo à estação,
trazendo-o de carro até à casa. Na festa apareceu um antigo colega de Evelyn, Hubert Duggan. Maimie
teria pouco depois uma relação amorosa, falhada e sofrida, com Hubert Duggan.
Poucos
anos depois, antes de morrer, Duggan protagonizará um episódio que, segundo se
diz, seria decisivo para a formação espiritual de Evelyn Waugh e para o início
da escrita de Brideshead Revisited.
Mas, antes disso, antes da nova guerra, Waugh partirá para Itália: em Roma,
aguardava-o um momento decisivo – a confirmação da sua conversão por parte do
cardeal Lépicier. Foi aí, em Roma, que conheceu Lorde Beauchamp, que ficou
encantado com o novo amigo da família. Visitaram igrejas, foram a São Sebastião
Extramuros, comeram gelados na Piazza Navona. De Roma, Evelyn e Maimie viajaram
até Veneza, ficando hospedados no Palazzo Brandolin, no Grande Canal, o mesmo lugar que outrora
alojara Wagner. Como Charles Ryder, Waugh apaixonou-se por Veneza, pela
tessitura compacta que permitia percorrer toda a cidade numa hora ou perder-se para
sempre nos seus labirintos de água, na pedra delida e polida pelo tempo. Veneza
terá um papel fulcral em Brideshead
Revisited e também na vida de Lorde Beauchamp, que em 1936 alugou à amante
do último Kaiser o piano nobile do Palazzo Morosini, nas
imediações do Rialto. Como Lorde Marchmain, Boom apaixonou-se por Veneza.
Veneza
Fotografia de António Araújo
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Pouco
depois, enquanto Beauchamp e Hugh rumavam à Austrália e à Nova Zelândia, Evelyn
fazia planos de se aventurar no mais profundo do Brasil, fugindo de Inglaterra
e do desgosto de amor causado pela rejeição de Teresa Jungman. Levou o seu
propósito de isolamento longe demais, até aos confins da Amazónia e, uma vez
aí, sentiu-se só e triste, como o confessaria numa das muitas cartas que de lá
escreveu para as irmãs Lygon («Well I have gone too far and now I am in Brazil.
Do come out and visit me.», disse numa das missivas). O Natal, esse, foi, como
sempre acontece, a quadra mais difícil («Everyone has something to be
melancholy about at Christmas», escreveria). Regressou a Inglaterra em Maio de
1933, poucos meses antes da minha mãe nascer, e aguardou pela anulação do seu
casamento com She-Evelyn: só assim poderia aspirar a que Teresa «Baby» Jungman,
beatíssima, o aceitasse como noivo ou namorado. O processo atrasou-se anos por um
estúpido lapso burocrático – mas Evelyn soube esperar. Sempre soube esperar. Isso
não o impediria, naturalmente, de ter alguns casos tão inocentes quanto
inconsequentes (com Lady Lavery, por ex.), de viajar por Marrocos e de aí conhecer
outra mulher: uma jovem prostituta, de nome Fatima, com dentes de ouro na
boca e tatuagens azuis no corpo. Ao regressar a Inglaterra, escreveria a
Maimie, falando do seu trabalho na escrita e dizendo que lhe trouxera de
presente um cachimbo onde ela poderia fumar haxixe. Outro elo os unia: Maimie e
Evelyn tinham laivos depressivos (Evelyn fez uma disparatada tentativa de
suicídio em 1925) e insónias recorrentes; trocavam conselhos e medicamentos,
com frequência assídua.
Maimie
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Evelyn
participaria mais tarde numa expedição desastrosa ao Ártico (em busca de crocodilos?),
que começou mal logo de início, com o escritor escandalizado por um dos seus
companheiros de viagem ter morto uma gaivota. Evelyn gostava de animais ou,
como dizia, considerava que toda a vida era sagrada. Entretanto, esquecera a
paixão por Teresa Jungman, entregando o seu coração a Laura Herbert, católica.
Uma vez mais, tinha de esperar pela anulação do casamento, dizendo nessa altura
que o seu destino na vida era esse mesmo: «wait wait wait wait». Partilhava
esse destino com Lorde Beauchamp, que sempre aguardou poder regressar ao seu país.
Nesse aspecto, a vida correria melhor a Waugh, que em Julho de 1936 recebe a
confirmação oficial da anulação do seu casamento.
Nesse
ano de 1936, a condessa Beauchamp morreria subitamente de ataque cardíaco. Boom
contactou de imediato o seu advogado, dizendo-lhe que queria vir a Inglaterra
assistir ao funeral da mulher. Quando se encontrava a bordo, prestes a
desembarcar em Dover, mais uma manobra vil de Bendor impediria que pudesse
voltar ao país que abandonara cinco anos antes. Teve de regressar a Veneza, sem
poder assistir ao enterro de Lettice. Em Agosto desse ano, a tragédia
abater-se-ia novamente sobre os Beauchamp. Durante uma viagem pela Baviera,
Hugh teria um estúpido acidente de automóvel, talvez por estar alcoolizado.
Morreria às primeiras horas da manhã do dia 19 de Agosto de 1936, aos 31 anos
de idade. O pai, chegado às pressas de Veneza num avião fretado, contrataria os
melhores médicos, mas estes foram incapazes de salvar a vida de Hugh. Desta
vez, e apesar das resistências do cunhado, nada conseguiria impedir Boom de
assistir ao funeral do filho, em Madresfield. Evelyn estava na Abissínia e, mal
regressou a Inglaterra e soube da notícia, escreveu a Maimie, devastado («It is
the saddest news I ever heard»). Dois anos depois, seria a vez de Boom partir:
morreria de cancro, em Nova Iorque, sendo sepultado em Madresfield. Ainda em
vida, teve um momento feliz, ou pelo menos tranquilo: a sua ordem de expulsão
foi revogada e pôde regressar a Inglaterra. Revisitou Madresfield, como
Marchmain voltou a Brideshead. A velha casa, porém, estava povoada de memórias
– boas e más. Não conseguiu ficar lá.
Beauchamp e Maimie, antes do exílio
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Enquanto
Evelyn se preparava para casar com Laura, Maimie estava só e triste, após a
ruptura com Hubert Duggan. Waugh escreveu-lhe uma carta, cujo trecho decisivo
merece ser transcrito:
«I know from experience that being
very unhappy is necessarily lonely and that friends can’t help and that
sympathy means very little – but please remember always that if there is ever
anything I can do to help you have only to tell me, and I will chuck anything
or do anything. (…)
All my love – don’t answer.»
Evelyn
casou com Laura em Londres, em Abril de 1937. Maimie, naturalmente, esteve
presente. Em 1939, seria a sua vez de casar. Com um exilado russo, Vsevolode Ivanovitch,
sobrinho do último czar das Rússias. A família escapara dos bolcheviques quando
ele era criança, venderam as pratas, o jovem estudou em Eton e em Oxford. Mas,
para ganhar a vida, tinha de fazer algo impensável: trabalhar. Vendia
lubrificantes industriais no norte de Londres, onde era conhecido por Mr.
Romanoff. Pelo casamento, Maimie tornar-se-ia a princesa Romanovsky-Pavlovsky,
casada com um vendedor de óleos para máquinas. Evelyn Waugh, quando teve o
primeiro filho, convidou-a para madrinha.
O príncipe Vsevolod Ivanovich
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Retrato de William Ranken, 1939
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Vsev e Maimie
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Depois,
veio a guerra. Madresfield era agora propriedade de Elmley e da mulher e, à
semelhança de Brideshead, será requisitada pelo Exército. Mas, ao contrário de
Brideshead, onde a passagem das tropas provocou estragos no edifício,
Madresfield Court permaneceu intacto. A razão é simples, ainda que na altura
secreta: se acaso as princesas reais tivessem de fugir de Londres, aquela casa
estava destinada a ser o seu refúgio. No quarto em que pensavam acomodar as princesas,
Elmley e a mulher colocaram, à cabeceira de cada cama, um livro apropriado para
as suas idades. À medida que a guerra prosseguia e as princesas cresciam,
Elmley e a mulher mudariam os livros das cabeceiras da cama. Todos os anos
colocavam um livro novo, para a eventualidade de as filhas do rei chegarem de
emergência a Madresfield.
O marido de Maimie, entretanto, tornou-se
vendedor de vinhos e, às noites, vigilante aéreo. Vsev, Maimie e Evelyn, todos
começaram a beber em excesso. Waugh tivera uma passagem pela frente de combate,
em Creta, bastante mal sucedida. Mas Vsev, de que não gostava, e sobretudo
Maimie, bebiam de forma diferente.
Como Sebastian bebia de forma diferente de Charles. Laura e a família estavam
longe, por segurança, e Maimie, Vsev e Evelyn partilhavam um pequeno
apartamento em South Kensington, onde os atritos eram frequentes. Uma noite,
falando a sós com Maimie, já bastante toldado pelo álcool, Evelyn disse-lhe,
falando a sério, que Vsev devia ser um espião inimigo.
Hubert Duggan (1904-1943)
|
É
nessa altura que Waugh sabe que Hubert Duggan, o seu amigo – e antigo amante de
Maimie –, estava a morrer de tuberculose. Duggan renunciara à fé católica mas,
no leito de morte, recomeçara a falar de religião e de Deus, ainda que
rejeitasse converter-se. Evelyn tudo fez para que a Graça divina inspirasse o
moribundo. Nos derradeiros momentos, um padre deu-lhe a extrema-unção e Hubert
fez o sinal da Cruz, benzendo-se. Morreria pouco depois. Celebrou-se um requiem, a que Evelyn esteve presente na
companhia de Maimie. Vsev não compareceu. A impressão causada em Evelyn Waugh
foi profundíssima. Toda a cena da conversão final de Lorde Marchmain em Brideshead Revisited, que Evelyn
escreveu afanosamente no Dia-D, até às quatro da madrugada, enquanto os Aliados
desembarcavam na Normandia, segue quase pari
passu o que assistiu no leito de morte de Hubert Duggan. Diz-se mesmo que o
livro foi escrito por causa deste episódio da conversão de Duggan.
Por
não suportar mais Vsev («the Russian’s intolerable», como lhe chamava), Evelyn acabaria
por se afastar de Maimie Lygon. Confessaria
mesmo ao seu diário: «I find my dislike of Vsevolode so overwhelming that I
cannot sit in the room with him… Maimie is lost to me». Não era
inteiramente verdade. Além de manterem o contacto, Maimie não estava perdida
para ele. Pelo contrário, inspirou, em larga medida, a personagem de Julia
Flyte no livro que Evelyn Waugh escreveu enquanto estava no Exército, Brideshead Revisited. Enquanto o escrevia,
considerava que aquela seria a sua opus
magnum e tem o cuidado de avisar uma das irmãs Lygon que o conteúdo tinha
muitas semelhanças com a história de Beauchamp e de Madresfield, mas que, na
realidade, a obra não era sobre eles. I
am not I.
Regressado
ao Exército, após a licença que lhe fora dada para escrever Brideshead, Evelyn será enviado para a
frente da Jugoslávia, tendo Randolph Churchill por camarada de armas (ou, mais
precisamente, como comandante). Combatia, pois, ao lado do filho do
Primeiro-Ministro. As provas tipográficas de Brideshead Revisited foram revistas na frente de combate, sendo
remetidas do nº 10 de Downing Street e viajando, nos dois sentidos, na mala de
correio destinada a Winston Churchill.
O livro, como muitos logo notaram na altura,
tem uma clara ligação aos Lygon de Madresfield. Evelyn mandou cópias às irmãs
Lygon, uma das quais sublinhou, veladamente mas em tom reprovador, essa
ligação. O livro é também um dos mais autobiográficos da obra de Waugh, aí
estando presente o seu afastamento relativamente à figura paterna, a educação
sentimental em Oxford, a sua entrada nos círculos aristocráticos, a conversão
de Hubert Duggan no leito de morte. Julia Flyte é, de longe, a personagem que
lhe criou mais problemas, aquela que apresenta menor densidade psicológica ou
emocional. Waugh torturava-se com a questão de saber se Julia amava
verdadeiramente Charles. Se o não amasse, o livro tinha falhado – como Evelyn dirá
a Nancy Mitford. Charles ama Sebastian e, depois, a sua irmã, Julia. Daí que já
se tenha dito que Brideshead Revisited,
mais do que um livro que aborda a homossexualidade, é uma novela que eleva a imaginação bissexual ao seu máximo
esplendor. Ou, talvez mais rigorosamente, Brideshead
atravessa as sucessivas fases do percurso afectivo e erótico do
protagonista principal e do próprio autor.
No
pós-guerra, Waugh conhece um sucesso estrondoso com Brideshead Revisited, sobretudo nos Estados Unidos, que desde então se tornou um livro de culto, como se pode ver aqui: http://bridesheadcastle.tumblr.com/. Chega-se a
pensar numa adaptação ao cinema, para a qual o escritor redige uma espécie de «guião»,
procurando a todo o custo que os «selvagens da Califórnia», como lhes chamava,
não estragassem o fulcro da sua obra: a questão da fé. Por exemplo, para ele era
fundamental que Julia, divorciada de Rex Mottram, não se pudesse casar de
imediato com Charles. Até mesmo que não fosse feliz com Charles. Ao
divorciar-se, pecara – e, por isso, deveria expiar a sua culpa. Rejeitava em
absoluto «a banal Hollywood ending», com Charles e Julia felizes para sempre.
Havendo pecado, haveria que pagá-lo – como, aliás, Lorde Beauchamp pagara caro
os seus delitos homossexuais. É nesta fase que, em 1945, Pio XII lhe concede
uma audiência, onde Evelyn expõe a situação dos croatas após o domínio de Tito.
Waugh juntar-se-á aos católicos e aos conservadores que, em 1952, contestam a
anunciada visita de Tito a Inglaterra. Nesse mesmo ano de 1952, viajará até
Goa. Seria interessante ver o que escreveu sobre Goa, se é que escreveu alguma
coisa. Crítico do Vaticano II, será sempre um católico rigoroso, como é geralmente
timbre dos convertidos. Os que lhe apontam, talvez com razão, o fascínio algo
patético pela aristocracia e pelas honrarias devem ter presente um facto
singular: em 1959, recusou a distinção de Commander
of the British Empire. Aliás, se em Brideshead
perpassa uma atracção nostálgica pelo mundo desaparecido da velha nobreza, o
certo é que alguns membros dessa elite, porventura os mais representativos e
emblemáticos, como Boy Mulcaster e o primogénito dos Marchmain, Bridey, são
retratados de forma nada simpática.
Waugh,
conservador, paladino do catolicismo tradicionalista
|
A
amizade com Maimie será restaurada – em boa verdade, nunca esteve em causa, nem
sequer foi interrompida. Recomeçaram conversas antigas, onde o tema da
sexualidade – e da homossexualidade, em particular – sempre foi falado sem
preconceitos, com a tolerância que Boom ensinara aos filhos. Em 1955, Maimie
atravessa um período de grande deterioração psíquica, o que apavorou Evelyn. «To know and love one human being is the root of all
wisdom», dirá Charles, a dado passo de Brideshead
Revisited. Evelyn
e Maimie não estavam apaixonados nem foram amantes. Amavam-se de uma
outra forma, aquela que é a raiz de toda a sabedoria, the root of all wisdom. No final da vida, Maimie desmentiu que ela
e Waugh alguma vez tivessem sido amantes e negou que fosse Julia Flyte. Na
verdade, não era, mas existem vários traços de Maimie na personagem de Julia, cuja
«magical sadness» atrai Charles Ryder de forma irresistível. Como Sebastian,
Julia Flyte é uma personagem compósita, que tem traços de Mary Lygon, outros de
Teresa Jungman, outros de Olivia Greene. Há quem afirme, acertadamente ou não,
que a estrutura narrativa impôs a Waugh que apresentasse Charles e Julia como
amantes efémeros, quando teria sido preferível levar a analogia com Maimie às
últimas consequências. É essa a opinião de Paula Byrne em Mad World. Simplesmente, a relação de Maimie e Evelyn era
extremamente difícil, ou mesmo impossível, de retratar num escrito. Descrevê-los
como «amantes» não seria verdade, porque nunca o foram, ainda que se amassem. Mas
falar de uma «deep friendship», como Maimie a descreveu, ficaria aquém do que
ambos foram, ao longo de décadas. Por exemplo, Evelyn Waugh tem uma necessidade
intensa, diríamos amorosa, de salvar
a alma de Maimie dos Infernos quando esta lhe comunica, em 1959, que perdera a
fé.
Maimie
divorciara-se em 1956. Depois da guerra, ela e o marido entraram numa espiral
de alcoolismo e depressão. Sem filhos, viviam praticamente sós, na companhia
dos seus cães pequineses. As discussões conjugais tornaram-se frequentes e cada
vez mais violentas. Às tantas, já atiravam chaleiras com água a ferver um ao
outro. Sob o título de princesa Romanovsky-Pavlovsky, Maimie seria editora de
uma revista literária, Diversion, destinada
a apoiar a Yugoslav Relief Society. Mais tarde, trabalharia num salão de
antiguidades em King’s Road. Em 1952, Evelyn Waugh informou Nancy Mitford que
Maimie entrara na falência. Começou a vender as jóias que lhe restavam, os
bancos recusavam-se a descontar os cheques que emitia. Enfrentou sérios
distúrbios mentais, a ponto ser internada numa casa de repouso em Londres. Após
o divórcio, Vsev rapidamente casaria de novo com a sua amante, uma huna húngara, Emilia de Gosztoyi (de quem se divorciaria para casar de novo).
Nessa fase, Evelyn demonstrou seguir a frase que repetidamente dizia ao seu
filho mais velho: «most of the interest and amusement in life comes from one’s
friends». Apoiou de imediato a sua amiga, quer financeira quer afectivamente,
indo ao ponto de enviar a sua filha Meg, que Maimie adorava, visitá-la com
regularidade. Muito depois, Maimie seria entrevistada aquando da emissão televisiva
da série Brideshead Revisited. Na
altura com 71 anos, morava numa pequena casa num subúrbio de Londres. A casa
estava algo caótica e suja, enquanto Maimie se servia de vodca a meio da tarde.
Morreu de cancro, em Setembro de 1982.
Elmley, 8º e último conde de Beauchamp, com a mulher
|
O
primogénito da família, Elmley, morrera em 1979, após uma vida apagada e sem
relevo, passada entre os veludos da Câmara dos Lordes. A sua mulher, Mona, que
morreria dez anos depois, tentou transformar a casa de Londres, Halkyn House,
num edifício de apartamentos. As autoridades não o permitiram. Foi vendida à
Embaixada a Síria e é hoje a sede da representação diplomática do Gana.
The Ghana High Commission, Londres, na antiga Halkyn House
|
Lady Morrison, em Madresfield
|
Da
descendência de Lorde Beauchamp, Hugh, Elmley e as quatro irmãs não tiveram
filhos. Apenas Richard, o mais novo da família, seria pai, mas de duas raparigas
(uma das quais, Lady Rosalind Morrison, é a actual proprietária de Madresfield).
O título nobiliárquico de Beauchamp encontra-se hoje extinto.
* * *
Em
Madresfield, havia uma estação de comboio. Muitas vezes, Maimie Lygon foi
buscar aí Evelyn Waugh, trazendo-o de automóvel até à casa antiga. Nos
jardins de Madresfield Court, um relógio de sol tinha a seguinte inscrição no
bronze, concebida por Lorde Beauchamp:
That
day is waisted on which we have not laughed.
Por
brincadeira ou ritual de fé, Evelyn e as irmãs Lygon adoptariam essa frase como
lema de vida. E assim a viveram, até morrerem todos.
António Araújo
Uma grande série de televisão sobre grandes temas e grandiosas casas.
ResponderEliminarUm grande post, nos sentidos literal e literário. Bravo.
Excelente post sobre um belo romance de EW - a que custa sempre ouvir chamar novela...
ResponderEliminarMuito obrigado
ResponderEliminarRenato
Muito muito muito bom!
ResponderEliminarObrigado!
Hoje fui procurar o livro na FNAC e o rapaz que me atendeu, para minha perplexidade, não o encontrando na secção de autores traduzidos foi procurá-lo na secção gay & lesbian.
ResponderEliminarObrigado a todos, um Bom Ano.
ResponderEliminarCordialmente,
António Araújo
Excelente!
ResponderEliminarObrigado
À cautela, não fosse o blogue fechar um dia destes, ser privatizado, sei lá eu, copiei integralmente (imagens incluídas) este fabuloso post para um documento de Word - 72 páginas. Para poder ler e reler.
ResponderEliminarÉ que há trinta anos que Brideshead Revisited, série de televisão e livro, são para mim uma obsessão. Da série até tenho duas edições diferentes em DVD, só porque uma tinha uns extras a mais.
Não poucas vezes a referi no meu blogue. E estive em Castle Howard (obrigada por aquela arrebatadora imagem, que nunca tinha visto). Et in Arcadia Ego.
Obrigada, muito obrigada.
Já agora.
ResponderEliminarCastle Howard
Fiz o percurso inverso no universo de Waugh. Adolescente, vi a esplendorosa minissérie britânica na TV pública brasileira, depois fui procurar freneticamente a edição brasileira de Memórias de Brideshead. Eram tempos (muito) pré-internet e não consegui encontrar, mas achei todos os demais livros de EW, que li com sofreguidão e muita surpresa (o cinismo e o humor negro dominam as primeiras obras do escritor, como se fosse uma versão masculina e british de Dottie Parker). Só muito depois, já cursando a universidade, é que topei com a primeira edição brasileira de Memórias, num papel vergonhosamente vagabundo. Ao encanto da escrita, somou-se a admiração (aquela lá do início de tudo) pela adaptação da série de 1981, praticamente fiel ao livro. Ainda assistiria à adaptação cinematográfica de Um Punhado de Pó, com Angelica Huston e James Wilby (o mais gay dos atores ingleses héteros).
ResponderEliminarPor todo este mundo de ironia, decadência, elegância, melancolia e profundos questionamentos religiosos, sociais, sexuais, não vi e não verei o filme feito em 2008 (ainda que conte com talentos inquestionáveis de Emma Thompson, Ben Shaw e Matthew Goode, entre outros), pois este tenta, pelo que andei lendo, ''atualizar'' de forma desastrosa a obra de EW (como se isso fosse necessário).
Eu sabia que não apenas em Brideshead, mas em toda a sua obra, EW não apenas utiliza elementos autobiográficos, como citações veladas de vidas de pessoas mais ou menos conhecidas. Mas nada que se compare à riqueza de detalhes deste lindo texto (claro, fiquei ''devendo'' algumas piadas privadas e citações internas). Tudo o que posso dizer é: muito obrigado!
Também tive uma paixoneta pelo Brideshead e li o livro. Acho que era obrigatório. Visto agora, acho que é um obra medíocre do ponto de vista literário. E a série agora faz-me rir, aquele esteticismo pomposo decadentista, aquele fundo sonoro musical de trompas de caça à raposa, não sei, parece-me uma xaropada pretenciosa. É o que me ficou. Para mim, aquilo tudo envelheceu muito mal. Tenho os DVD num armário. Recentemente passou outra, do mesmo género, também com muita criadagem, duquesas viúvas, uma filha rebelde que se apaixona por um motorista (ou caseiro, já não sei), coisa que é de rigueur, mas sem a mesma patine. E falta-lhe um jovem aristocrata que fuma haxixe em Casablanca e tem um ursinho de peluche (era isto?). Há um mercado para este género e sempre vai haver.
ResponderEliminarEm Madresfield, havia uma estação de comboio. Muitas vezes, Maimie Lygon foi buscar aí Evelyn Waugh, trazendo-o de automóvel até à casa antiga. Nos jardins de Madresfield Court, um relógio de sol tinha a seguinte inscrição no bronze, concebida por Lorde Beauchamp:
ResponderEliminarThat day is waisted on which we have not laughed.
Frase que é imemorial.
Porém:
O dia mais perdido de todos é aquele em que não se riu."
- La plus perdue de toutes les journées est celle où l'on n'a pas ri.
- Oeuvres completes de Chamfort - Tome Seconde, Página 17, de Sébastien-Roch-Nicolas Chamfort - 1812
e "Jouis et fais jouir, sans faire de mal ni à toi, ni à personne, voilà je crois, toute la morale". Nicolas de Chamfort
FELICIDADE pessoal, varia na razão do maior somatório possível de alegrias breves. Esperando sempre o inesperado, com ansiedade relativizada Cada qual a busque. E se reinvente"
E assim, conclui, com acumulado saber, tido, lido, ouvido:
Por isso, tenho como lema: DIA QUE NÃO RI, PERDI.
ResponderEliminarHistriónico, mas ponderado, que sou...
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarCaro caramelo (15 de abril de 2020) Creio que não compreendeu nada. O livro é literalmente (e literariamente) excepcional. Numa literatura com nomes como Virginia Woolf ou Malcolm Lowry, Waugh consegue neste livro uma espécie de milagre. Não há nada que seja particularmente inventivo, mas o resultado é de uma força pouco comum.
ResponderEliminarE por favor não compare o incomparável.