Já
se tem falado aqui de leões. E é sempre bom abrir a caixa de comentários do Malomil e receber
dos leitores sugestões sobre leões. Recomendaram-me que visse o Leão de Belfort, que nunca
vira, sugeriram-me a leitura de um livro que desconhecia: Leões, de Hans Blumenberg. Nem sabia que Blumenberg, um académico
tão circunspecto, havia escrito o que fosse sobre leões. Aqui, num blogue à séria, existe um texto à séria sobre Blumenberg e os leões, e até sobre uma piadinha de Carl Schmitt a
propósito de Karl Löwith.
O livro de Blumenberg saiu na Germânia em 2001, mas
só chegou às línguas civilizadas neste ano de 2014. Fresquíssimo e
recentíssimo, portanto, e em tradução francesa, Lions é um livrinho encantador, que reúne histórias breves, em
jeito de apontamentos eruditos plenos de graça, sobre homens e leões (ver recensão aqui). Cada piccola fabula não ocupa mais de uma
página, duas no máximo. Em cada esquina uma história. Há várias, muitas, todas
suculentas para os apetites mais vorazes. Escolhida uma ao acaso, vamos à de
Dostoievski. Fugindo aos credores que o perseguiam com uma sanha pior que a da troika, Dostoiveski decidiu em 1867
fixar-se em Dresden. Viera acompanhado de Anna Grigorievna, com quem acabara de
casar em segundas núpcias. Num tempo em que ainda não existia Internet nem
agências de rating, Dresden
estabelecia uma distância suficiente entre o escritor endividado e os seus
agiotas. Em simultâneo, Dresden era suficientemente próxima para, se acaso a
sorte ao jogo o bafejasse, recuperar das kapital
e concretizar um sonho também partilhado pelo dr. Santana Lopes:
regressar à bela vida que outrora tivera.
Notas manuscritas de Dostoievski para o 5º capítulo de Os Irmãos Karamazov
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Estavam Fiódor e Anna nestes apertos
quando, passeando por Dresden, entraram no jardim zoológico dessa cidade. Viram
três castores, um pavão branco e, caminhando, foram atraídos pelo odor acre da
jaula das feras. Lá estavam para ver e ser vistos: um tigre, um leopardo e
quatro leões. À semelhança de Zeinal Bava, Fiódor Dostoievski acreditava muito no poder da sua mente e no
magnetismo da sua pessoa, confiando ainda na protecção do acaso e da sorte.
Fixou-se no leão mais velho e possante, o macho alfa do grupo enjaulado. Concentrou o seu poder
ocular nos olhos da fera. Fê-lo, escreveu Anna nos seus cadernos, com um olhar penetrante (sic). Tanto penetrou o
animal que este virou bicho. E começou a rosnar, depois a rugir, furioso por
estar a ser dominado pelo espírito de um escritor menoríssimo e de segunda categoria,
para mais russo e, pior ainda, endividado. Os leões alemães, como é sabido, não gostam de gente
endividada. Acompanhando o leão hipnotizado pelo olhar de Fiódor, os outros
membros do bando (e continuamos a acompanhar o emocionante relato de Anna Grigorievna, uma lasca de moça)
manifestaram-se de uma forma tão ruidosa e ameaçadora que o casal Dostoievski
se sentiu em apuros, a ponto de julgarem que o gangue leonino ia destruir as
grades e devorá-los aos dois, ou seja, a ambos.
Anna ficou muito abalada com esta
algazarra sportinguista. O velho leão, que estava separado da sua companheira,
reagira a quem lhe aprisionara o olhar, dominando-lhe a vontade pelo mero poder
da visão penetrante. No seu caderninho, sendo versada em estenografia, apontou
variados pensamentos que então lhe subiram ao cérebro, fascinada pela magia do
olhar perfurador do seu marido. Bastara ao magnífico Fiódor Mikhailovic Dostoievski olhar a fera
olhos nos olhos para que esta se submetesse à sua vontade e entrasse em ebulição.
Acrescentou, a terminar, uma nota fatal para a grandiosidade daquele momento épico:
o leão era vesgo.
Tippi Hedren, 1963
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Serve
esta história de intróito a outra passada com leões, mas mais próxima de nós.
Passa-se esta com outro nome grande da cultura ocidental, a actriz Tippi Hedren. No
filme de Hitchcock foge espavorida de um grupo inofensivo de passaritos. Na
vida real, amamentava um leão em casa. A história foi-me trazida por quem tem
sobre o mundo um olhar bem mais penetrante do que o de Fiódor Dostoievski. Conta-se
em breves linhas, sobretudo se bebermos à farta daqui, do grandioso Retronaut (a propósito: acaba de sair,
há uns dias, um livro da National Geographic só com imagens e histórias do Retronaut).
Vamos aos factos. Tippi Hedren e o
marido, Noel Marshall, tinham um leão em casa. Na companhia de Melanie
Griffith, na altura com 19 primaveras, filha de Tippi e de um anterior
casamento da Tippi. Para não maçar mais os leitores, poderia dizer que compraram a
alimária no OLX, mas vamos carregar na paciência de quem nos ouve. Quando estavam
a filmar em África, corria o ano de 1969, Tippi e o palonço do cônjuge viram uma casa
abandonada, que fora tomada por um grupo de leões, do género okupa, mas com pêlo. Meteram na cabeça que iam
fazer um filme sobre leões. Um treinador de leões, maltratado em Alvalade, ainda agravou as coisas,
dizendo-lhes que – e cito – «para saber alguma coisa sobre leões, é necessário
viver com eles durante algum tempo.» Começou aqui a desgraça. Levaram um leão
para casa e a vizinhança, obviamente, queixou-se. Há gente que só gosta de
embirrar. Tippi, o marido irrelevante e a promissora Melanie foram então para
um rancho longínquo na Califórnia, com o leão atrelado. Há gente que não sabe o que fazer
ao dinheiro.
Melanie Griffith com Neil
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Já que tinham um leão a atravancar-lhes
a sala de estar, decidiram pôr o bicho a render e começaram a fazer um filme.
Isto passa-se em 1971, dois anos antes de o marido de Tippi produzir o lucrativo
Exorcista. Inebriados pelos demónios,
iniciaram a feitura da película. Como actores, o marido de Tippi, esta e a sua
filha, Melanie. Realização do marido de Tippi Hedren e produção de Tippi Hedren
e do seu marido (jurámos que não íamos repetir o nome de Noel Marshall). O
filme metia leões, chitas, leopardos. O argumento, temos pena, é que era
fraquinho: um cientista está em África a estudar leões ao natural e, quando a
família o visita sem avisar, é perseguida no interior da residência por leões e
outros carnívoros. Muita acção, muito suspense,
com a família do investigador a ser atemorizada em cada quarto para onde fugia.
Estiveram a produzir isto durante 11 anos. Exactamente: mais de uma década a
filmar cenas de leões atrás de mãe e filha num casebre africano. Como fosse pouco,
juntaram 150 felinos ao enredo. Convenhamos que não é muito plausível um filme
em que entram em palco 150 felinos ferozes, tudo passado na casa de um cientista.
Tippi e o marido juntaram a maior colecção de felinos alguma vez agrupada. Como
são animais de muito alimento, deu buraco orçamental. Todas as cenas eram
improvisadas, implicando oito câmaras em rodagem permanente. É fácil perceber
por que é que Roar levou 11 anos a realizar
e custou uma fortuna. O público é que não percebeu; e, pior do que isso, não
compareceu nas plateias. O filme custou mais de 17 milhões de dólares e
arrecadou 2 milhões de bilheteira. A modos que uma PPP cinematográfica.
Consegui uma cópia desta raridade, creio que de origem
eslovena, e, claro, não é para ver de princípio ao fim. Basta saltitarem de cena em cena
para obterem uma pálida noção do lindo pavor que tendes diante do vosso olhar
penetrante. E a música, no final? Um mimo.
Em vez de
fugirem para Dresden e tentarem refazer a sua vida à banca de jogo, Tippi e o
marido separar-se-iam um ano depois deste horror movie africano que acabou em desastre orçamental. Saíram todos da
aventura bastante esgatanhados. «They are dangerous. Everyone in my family has
been hurt», concluiu Tippi Hedren ao fim de 11 anos de convívio doméstico com
leões. Uma observação bastante sagaz. Durante as filmagens, Melanie Griffith
foi atacada por uma leoa e teve de levar 50 pontos na cara, o que actualmente
não se nota nada mas na altura deve ter doído bastante. Um dos assistentes de
realização foi escalpelizado por uma mordidela meiguinha de um dos leões. Mais
de 70 pessoas foram feridas durante as filmagens de Roar, um dos maiores fracassos comerciais da história do cinema.
Como
acontece nas fitas que acabam em desastre, Roar
tornou-se uma obra de culto. Até tem uma página oficial na Internet e tudo. Não
se dando por vencida, Tippi Hedren fundou um santuário para animais, a Shambala Preserve. Ainda hoje lá vive, na companhia de 70 bichos, entre os quais o tigre
de Bengala que outrora pertenceu ao malogrado Michel Jackson. Já agora, o leão da Metro
ruge desde 1916 – e, ao contrário do que se pensa, não há só um, mas nove.
Nestes quase 100 anos de existência, a Metro-Goldwyn-Mayer foi abrilhantada
pela presença de nove leões zangados, que exerceram com galhardia os mandatos
para que foram cinematograficamente eleitos. O actual titular do cargo tomou
posse em 1957 e tem um nome muito original: Leo. Possui uma juba mais curta do
que os seus antecessores, incluindo Fiódor Dostoievski e José Pacheco Pereira. Nos genéricos de 1957 a 1960,
Leo rugia três vezes. Desde 1960, como os carteiros, ruge apenas duas vezes. A isso chama-se austeridade.
António Araújo
Adorei todo este texto.
ResponderEliminarMuito obrigado pelas suas (imerecidas) palavras.
EliminarCordialmente,
António Araújo