Tínhamos terminado a nossa primeira (e temerária) aproximação
ao urso Wojtek abordando um tema candente: o papel higiénico soviético. Para
que pretenda fazer gracinhas sobre esta temática, é sempre possível acompanhar
esta acalorada discussão académica que,
às tantas, se embrulhou no papel do papel higiénico na transição da União
Soviética para a democracia (?!), com apontamentos doutos e de grande interesse sobre o
papel higiénico nas diversas repúblicas socialistas e nos países-satélites:
Lituânia, Polónia, Bulgária, Roménia, em todos estes lugares se suscitaram graves
questões higiénicas após a perestroika.
Quanto a Wojtek,
foi um urso castanho que já morreu, pronto. Agora explicar por que é que
existem filmes, vários sites, estátuas e um sem-fim de estátuas de Wojtek é que
nos obriga a maçar um pouco a paciência dos leitores. Wojtek foi um
urso-soldado, mas a utilização de animais na guerra sempre existiu. Um dos
períodos em que o uso de bichos mais disputas acendeu foi durante a corrida ao
espaço durante a Guerra Fria. Num livro fascinante que acabei agorinha mesmo de
terminar, Soviet Space Dogs, e de queo jornal i já falou, explica-se, a
dada altura, o avanço que os soviéticos ganharam nos seus voos orbitais ao
apostarem em cães – ou, melhor, cadelas –, enquanto os americanos teimavam em
lançar macacos no espaço, muito mais ariscos a viagens estratosféricas. Com
esta macacada, perderam para a Laika. Não era a primeira vez que os soviéticos
exploravam a fidelidade canina. Durante a 2ª Guerra, enviaram «cães-bomba» para
a frente de combate, carregados de bombas e prontos a serem dinamitados à
distância. Não se faz.
Os ingleses, de seu lado, tentaram utilizar
«ratazanas-bombas», igualmente na 2ª Guerra. Pegavam nas ratas, enchiam-nas de
explosivos e largavam-nas no meio das fileiras nazis (a história é mais
complicada, mas basta ficar com a ideia). Os norte-americanos, por sua vez,
quiseram usar «morcegos-bomba», uma ideia concebida pelo cirurgião-dentista
Lyttle Adams em 1942 (só a mente cruel de um dentista seria capaz de
arquitectar um plano tão sinistro). A ideia foi levada à Casa Branca e o Presidente
Roosevelt aprovou-a. Pois lá foram buscar morcegos a umas grutas no Texas, para
os lançar com bombas incendiárias sobre o Japão. Desconhece-se a razão do
abandono deste projecto, que, se tivesse ido avante, suscitaria certamente um
belo efeito hollywoodesco nos céus nocturnos do Império do Sol.
A história de Wojtek é diferente – e comovente.
Corria o ano de 1942 e o mundo andava todo à tapona. Numa toca para ursos
sedeada em Hamadan, no Irão, um rapazinho encontrou um ursinho. A mãe tinha
sido abatida, o urso era um menor em risco. O rapazito iraniano vendeu-o a uma
jovem refugiada polaca, de nome Irena Bonkiewicz, que andava pelas montanhas
Elbruz a fazer aquilo que os polacos geralmente fazem: fugir do exército russo.
Nesse ano de 1942, na sequência da libertação de milhares de polacos dos campos
da Sibéria, os refugiados escolheram o Mar Cáspio na sua rota de fuga,
procurando chegar ao Irão. Na altura, estava a formar-se, sob a égide dos
ingleses, um exército polaco no exílio, que logo adoptou o urso. Imagine-se, para
quem fugia dos horrores das estepes siberianos, o lenitivo que terá sido
encontrar uma bola de pêlo daquelas, danada para a brincadeira. O ursito, com menos de um
ano de vida, tinha algumas dificuldades em ingerir alimentos. Alimentaram-no a
leite condensado que guardavam numa garrafa de vodca. Depois, já mais
espigadote, ainda ganhou gosto à fruta, à marmelada, ao mel e, sobretudo, à cerveja.
Tornou-se esta a sua bebida predilecta quando ainda nem idade tinha para ir à tropa.
Mas foi.
Prossegue a Wikipedia dizendo que o
urso gostava de fumar o seu cigarrito ou de comer tabaco. Apreciava também as
lutas inofensivas e, muito patusco e sociável, aprendeu a acenar sempre que alguém o
saudava. As unidades militares que aí estavam estacionadas apreciavam sobremaneira
o ursito reinadio, que a páginas tantas se tornou a mascote de vários
regimentos. À conta disso, fez um tour
pelo Iraque, pela Síria, pela Palestina e acabou no Egipto. O lendário 8º Exército
inglês devia dirigir-se a Itália, para desbaratar os resquícios do fascismo e suas serpentes. Para
conseguirem transportar o bicho num vaso de guerra, este teve que assentar praça como
soldado do exército polaco, mais precisamente da 22ª Companhia de Abastecimento
de Artilharia. Foi, pois, oficialmente integrado no serviço activo, com o posto de soldado.
Nessa qualidade, chegou mesmo a contar
do rol dos soldados alistados, vivendo momentos de intensa camaradagem. Em Itália, Wojtek participou na mítica Batalha do Monte Cassino,
transportando munições para a frente da refrega sem deixar cair uma só peça de
artilharia – dizem. Esta deve ser verdade: se o valente soldado Wojtek tivesse
deixado resvalar ao chão uma bomba, certamente alguém se devia ter aleijado à séria.
Ora, tirando mortes e feridos, não consta que ninguém se tivesse magoado na
tomada da abadia do Monte Cassino. O valor militar de Wojtek foi tal que a 22ª
Companhia de Transportes passou a ostentar como emblema uma efígie de um urso a
carregar munições bélicas.
Com o fim da 2ª Guerra, Wojtek foi
levado para a Escócia, permanecendo primeiro na aldeiazinha de Huns. Cada vez mais
popular entre militares e civis, tornou-se um animalzito muito estimado, tipo
Manuel Luís Goucha. A ponto de se tornar membro honorário da Polish-Scotish Association. Abandonou as
fileiras em Novembro de 1947, para de imediato ingressar no Jardim Zoológico de
Edimburgo. Recebia visitas frequentes de jornalistas e veteranos de guerra
polacos, que lhe lançavam cigarros. Wojtek, além da cerveja, apreciava o seu
cigarrinho, de quando em vez. Mas, em Edimburgo, como não tinha por perto um
camarada d'armas que lhe acendesse os cigarros, comia-os. Com tão maus hábitos, não
admira que tenha falecido aos 22 anos, em Dezembro de 1963. Na altura da morte,
pesava 230kg e media cerca de 1,80m.
Apesar de nunca ter conhecido Júlia
Pinheiro, tornou-se uma estrela de televisão, com frequentes aparições na BBC,
num programa muito popular para crianças. Poucos humanos terão sido tão
homenageados como o valente Wojtek. E a moda continua, com centenas e centenas de novas
aparições, vocacionadas em especial para o público infanto-juvenil.
Em
2009, o parlamento da Escócia evocou-o
e, em 2011, a BBC escocesa fez um filme em sua honra, Wojtek – The Bear That Went to War.
Placas e outra sinalética evocativa – no zoo de Edimburgo, no Imperial War
Museum e no Canadian War Museu. Entre esculturas e estátuas, temos uma no
Sikorski Museum, em Londres, da autoria de David Harding. Temos outra, esculpida em madeira, em Weelsby
Woods, Grimsby. E outra, em Zagan, carregando bombas. Em Setembro de 2013, as autoridades municipais de Edimburgo decidiram erguer uma estátua de bronze à sua memória, na qual Wojtek
e outro soldado caminhavam juntos (Peter Predys, o seu tratador), em alegre camaradagem, numa alegoria
alegre do seu périplo do Egipto até à Escócia, com escala no Monte Cassino.
Museu Sikorski, Londres
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Monumento a Wojtek, em Zagan
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A estátua em madeira, em Grimsby
Estátua de Wojtek, Edimburgo
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A estátua em Cracóvia, Maio de 2014
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E
há poucos meses – mais precisamente, a 18 de Maio de 2014 – foi inaugurada em
Cracóvia uma estátua de Wojtek, em pleno Parque Jordana, um gesto aplaudido por um dos maiores historiadores da 2ª Guerra, Norman Davies. Veja-se aqui a edificação da estátua, e as pessoas, de crianças a veteranos de guerra, que festejaram Wojtek nesta ocasião.
Na Internet,
então, o culto de Wojtek chega a raiar o fanatismo. Temos, pelo menos, três sites bem nutridos de informação sobre o
urso descoberto numa cova por um rapazito iraniano. Por um lado, http://www.wojtekthebear.com/ Por outro
lado, http://www.thesoldierbear.com/ Por fim, http://wojtek-soldierbear.weebly.com/
Quem tenha paciência e curiosidade,
deve percorrer estes sites. Num
deles, chega a apresentar-se um mapa-múndi com as referências a Wojtek que
foram feitas nos diversos pontos do planeta (aqui). E Portugal lá está, marcando
presença com uma notícia saída no Jornal
de Notícias (aqui). Para os seus irmãos em armas, foi lançado, em edição
limitada, o exclusivo Álbum Wotjek, com cerca
de 200 fotografias do bicho e das obras de arte criadas para o homenagear.
O Álbum Wojtek
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Perguntarão o motivo de tanto alarido
em torno de um urso, para mais já falecido. O urso era uma mascote – e cumpria
a função das mascotes de campanha. Era um talismã, uma pausa de paz entre a dor e a
morte, um motivo de brincadeira. Para quem queira saber mais sobre mascotes de
guerra, existe um livro de Jill Cooper, Animals in War, que acompanhou uma exposição sobre o tema, patente no Imperial
War Museum. A propósito de Wojtek, é comovente ver as cartas, as fotografias, os boletins militares dos seus
camaradas d’armas. Também acontece por cá, fraternidades forjadas na frente de
combate. É frequente vermos nos jornais anúncios de convívios do batalhão tal
ou do regimento tal. Wojtek aprofundava essa camaradagem, era um traço de união com pêlo e quatro
patas. Aos sites que o homenageiam,
chegam mensagens pungentes. Esta, vinda do Canadá: «Olá, vi as fotografias de
Wotjek na vossa página. Em três delas aparece o meu pai. É o homem
não-identificado que está junto de Jan Modezelewski…». Noutra, vê-se um pai
veterano e um filho mais moço posando junto à estátua de Wojtek no Museu
Sikorski, em Londres. Depois, o que é espantoso, Wojtek foi popularizado sob as mais diversas formas, heroicizado até ao limite; e em todo o mundo!
Podemos aqui acompanhar a viagem de Wojtek, que esteve numa
terrinha junto ao Mar Cáspio, passou por Teerão, foi até Bagdad, estanciou em
Damasco, saindo daí em peregrinação a Tel Aviv e Jerusalém. De seguida, Cairo e Alexandria.
Un giro transalpino que envolveu
Taranto, Nápoles, Monte Cassino, Pádua, Ancona com regresso a Nápoles, pequeno-almoço incluído. Embarque
em cruzeiro com destino a Glasgow e travessia da Escócia com término em
Edimburgo. Temos ainda, como se disse, o Álbum Wojtek,
a 70 £, e uma galeria de aguarelas sobre o urso, de extremo mau-gosto.
Livros, também os há. Em inglês:
o clássico de Wieslaw Lazsocki e G. Morgan, Soldier
Bear, de 1970. Em polaco, vários títulos, Para crianças, uma obra de Garry
Paulin. Outra em inglês, mais recente, de Aileen Orr, Wojtek.
Polish War Hero (ver recensão aqui). Outra ainda, também recente, de
Bibi Dumon Tak, Soldier Bear, de
2011.
Do percurso por tanta homenagem e
tantos sítios da Internet apercebemo-nos também que o urso exerceu outra função
relevantíssima: contribuiu, de forma decisiva, para restituir aos polacos o
orgulho nacional, à época muito ferido. Foi o símbolo da sua bravura e do seu
patriotismo e, não por acaso, outros regimentos polacos tiveram mascotes – e
ursos, em particular (com um companheiro de raça, de nome Michael, Wojtek envolveu-se
em violenta escaramuça). Nenhum alcançou a fama de Wojtek, o valente soldado.
Ainda hoje muitos se deliciam a contar histórias do bicho: só aceitava cigarros
bem enrolados (cuspia os que não gostava), teve por amigo um cão de raça
dálmata, levou uns belos coices de um cavalo e, desde então, passava ao largo
sempre que via um equídeo, cavalo ou mula. Histórias pueris, talvez. Pelo meio,
há comércio também: filmes, canecas, t-shirts,
mouse pads, posters, de tudo se vende aqui. Mas, num balanço final, Wotjek foi um bravo: divertiu mulheres e homens cansados de guerra, continua a ser recordado. Nessa recordação, juntaram-se os que viveram os horrores da guerra, mas também os que deles descendem, filhos e netos. A par disso, um urso perdido nos areais da Síria ou do Irão é motivo de orgulho para várias nações civilizadas: a Escócia e a Polónia, à cabeça; mas também o Canadá e a Inglaterra. Para um urso órfão, falecido aos 22 anos, não é um pequeno feito.
António Araújo
Muito me admira que os polacos com o fervor catolico que os caracteriza não tenham ainda um santuario como da virgem negradedicado a quem muito mais fez por merece-lo
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